Novos negócios abrem as portas no Centro apesar da onda de violência
Em meio aos problemas de segurança e dramas sociais, área central de São Paulo terá novos bares, restaurantes, hotéis, baladas e até um cineclube
O centro de São Paulo vive uma maré de notícias ruins. Nos últimos dias, donos de bares e restaurantes reclamaram do sumiço de clientes, após operações policiais dispersarem o “fluxo” da Cracolândia pela região — um exemplo é o Jaguar Bar, na Avenida Duque de Caxias, que anunciou o fechamento temporário. O problema se soma a outros, anteriores. A onda de roubos de celular (destaque na capa da Vejinha de 2 de março) mudou a rotina de quem mora ou trabalha por ali — a Praça da República é campeã nesse tipo de crime na cidade.
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Há ainda a disparada no número de pessoas em situação de rua. Nos dados da prefeitura, essa população cresceu de 24 344 para 31 884 na cidade, visivelmente concentrada nos bairros centrais. “É um problema social grave, que não se resolve apenas com a ação policial”, diz o delegado-geral Osvaldo Nico Gonçalves. “A Operação Caronte (com foco na Cracolândia) já prendeu 126 traficantes, estamos no caminho certo”, ele afirma.
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Na contramão das dificuldades, uma série de negócios criativos e descolados teima em abrir as portas no centro e revitalizar a região. “Acreditamos em uma retomada em 2023. Muitos prédios e comércios estão ficando prontos”, aposta Leo Henry, sócio dos bares Térreo e Infini. São novos bares e restaurantes, hotéis remodelados, espaços para eventos (no topo de um prédio histórico), baladas, editoras e o inclassificável Cineclube Cortina (foto abaixo), que mistura tudo: cinema, shows, festas, bar, restaurante e outros usos. “Estamos retomando um território da cidade”, diz o sócio Paulo Vidiz. Conheça as histórias a seguir.
O estacionamento virou cinema
O Cineclube Cortina transformou um antigo estacionamento na República em um destino único na cidade: uma mistura de cinema, casa de shows, restaurante, bar e espaço de festas, entre outros usos. No andar de baixo (foto maior) vai funcionar um cinema diferente: o público paga quanto quiser pelo ingresso, senta em espreguiçadeiras de tecido e assiste aos filmes tomando drinques criados pela premiada bartender argentina Chula Barmaid. “Nosso modelo de negócio não será dependente da bilheteria”, explica o sócio Marcelo Sarti.
Nos bastidores
Além dos filmes (terças, quartas, sábados e domingos), o ambiente terá shows (quintas), festas (sextas) e eventos. A apresentação de estreia terá Arnaldo Antunes pela primeira vez no palco com a filha Celeste, no dia 28. No andar de cima (foto menor) fica o restaurante arejado, com pé-direito alto e frente aberta para a Rua Araújo — a poucos metros do estrelado A Casa do Porco. Tem um balcão para 23 lugares e referências ao mundo do cinema, como banquetas típicas das produções e uma prateleira de fitas VHS para os clientes verem filmes.
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O cardápio, elaborado por Daniela França Pinto e Fernanda Camargo (dos menus do Riviera, Blue Note e outros endereços de destaque), será baseado nos imigrantes. Terá desde sanduíches árabes (um sabi de cordeiro com pão feito na casa) e japoneses (o tamago sando, popular no país asiático) até um “bolo ralado” de origem judaica. “Abrir um espaço no centro é uma maneira de lutar pela região”, diz o sócio Paulo Vidiz. “A Rua Araújo, na altura próxima ao Copan, já era badalada. Estamos no trecho perto da Praça da República, reconquistando um território.”
Rua Araújo, 62, República. Ter. a dom. (a partir de 26/7), fecha seg. @cineclubecortina.
A República vista do alto
No topo do histórico Edifício Esther, o Esther Rooftop, comandado por Olivier Anquier, vai ganhar um “anexo” dedicado a casamentos e eventos. O salão terá 270 metros quadrados e deve abrir as portas em agosto.
Com vista para a Praça da República, a nova casa (que vai se chamar Esther Eventos) terá terraço e área interna para até 150 pessoas. “Não vou dizer que estamos no paraíso”, afirma Olivier, sobre o atual cenário de violência na região. “Mas essa questão não é uma particularidade do centro. Estou há 41 anos em São Paulo e sempre ouvi falar do centro de forma negativa — e injusta. Se você for para Paris, Roma ou Barcelona e ficar com o celular na mão, dou cinco minutos para que seja roubado”, ele diz. “Moro aqui no centro e ando a pé sem segurança”, conta.
Rua Basílio da Gama, 29, República, ☎ 3256- 1009. estherrooftop.com.br.
Casa reaberta
O restaurante Clandestino, da chef Bel Coelho, que fechou na Vila Madalena em 2020, tem reinauguração prevista para outubro na Vila Buarque. A casa seguirá a filosofia de “lixo zero” e menus inspirados em ingredientes brasileiros, mas deve ganhar um bar na parte da frente.
Em 270 metros quadrados, ficará no térreo de um edifício em processo de retrofit — o endereço ainda é segredo. “Teremos de pensar em questões de segurança, senão o cliente não aparece”, ela diz. “Fico incomodada que as pessoas se afastem do centro. Quero trabalhar para que voltem a enxergar melhor a região”, afirma. A chef também tem o Cuia, restaurante no Copan.
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Hotel, bar e tuk-tuk
O histórico Hotel Marabá, na Avenida Ipiranga, voltou a funcionar em abril com 171 quartos e sob administração do Grupo Fábrica de Bares, dono do vizinho Bar Brahma. “Seremos um hotel associado ao calendário de eventos da cidade, para turistas que vêm para o Carnaval, por exemplo”, diz Cairê Aoas, CEO do grupo.
Com a proposta de se tornar também o “hotel oficial” do Bar Brahma, os sócios prometem criar ambientes e decorações que remetam à tradicionalíssima marca, como um hotel temático. “Sou otimista sobre o centro. Acredito que em 2023 teremos uma onda transformadora, com novos espaços de entretenimento, cultura e gastronomia”, ele afirma. “Não teríamos investido no setor hoteleiro se não fosse nesta região, porque sabemos a força que ela tem”, diz.
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De qualquer forma, o grupo providenciou serviços extras para manter a tranquilidade dos hóspedes, como seguranças para acompanhá-los no caminho do hotel para o bar, e vice-versa. “Nosso plano é criar um traslado com carrinhos do tipo tuk-tuk, para trajetos até locais como Copan, Teatro Municipal e Sesc 24 de Maio.”
Avenida Ipiranga, 757, centro, ☎ 94827-0507. ♿ marabahotel.com.br.
À base de plantas
Aberto há dois meses no Hotel Selina Aurora, na República, o bar de drinques LoHi é uma criação da dupla Thiago Maeda e Thiago Pereira, que apostou no veganismo ao criar o cardápio — totalmente plant-based, na linguagem moderninha. “As pessoas que frequentam o centro vão atrás de propostas com as quais se identificam. Quando chegamos, ficou claro qual era o nosso público”, diz Maeda.
Com a Cracolândia em evidência no noticiário, eles criaram estratégias para driblar a sensação de insegurança dos clientes. “Temos um grupo de WhatsApp com outros comerciantes da região. Todos se ajudam para saber o que acontece nas ruas próximas. Também temos segurança privada para manter a tranquilidade”, ele conta. “Tenho visto uma presença mais ostensiva da polícia. Mas, na porta, os seguranças avisam: ‘Não fique com celular na rua’.”
Avenida Vieira de Carvalho, 99, centro, ☎ 4934-4653. ♿ Ter. e qua. 21h/3h; qui. a sáb. 21h/4h; fecha dom. @lohi.sp.
Sotaque gaúcho na Vila Buarque
Com influência gaúcha na carta de drinques e no cardápio, o Bêrga Bar abriu as portas há quatro meses na Vila Buarque (ao lado do Bao Bar), sob o comando de três porto-alegrenses. “Quando cheguei a São Paulo, fui morar em Perdizes. Descobri o centro aos poucos”, conta Eddie Hoffmann, um dos donos. “Discutimos a questão da segurança no bar desde o início. O centro é uma ‘correria’ diferente… Um dia, uma pessoa entrou rapidamente (no salão) e em segundos conseguiu roubar um celular. Desde então, fomos obrigados a colocar um segurança na porta e não tivemos mais problemas”, ele conta.
O movimento de clientes caiu durante as recentes operações na Cracolândia, segundo Hoffmann. “A rua ficou vazia, parecia que as pessoas não queriam mesmo sair. Houve dias em que quisemos fechar o bar mais cedo. Mas sentimos que tudo voltou ao normal”, diz.
Rua Doutor Cesário Mota Júnior, 281, Vila Buarque. ♿ Qua. e qui., 18h/0h; sex., 12h/15h e 18h/0h; sáb., 12h30/16h e 18h/1h; dom., 12h30/17h; fecha seg. e ter. @bergabar.
“O caminho é ocupar as ruas”
“O centro resume São Paulo, as contradições estão todas aqui”, diz o empresário Leo Henry, dono dos bares Térreo, no Largo do Arouche, e Infini, “escondido” nos fundos do restaurante La Casserole — e que chega a ter filas de até três horas.
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As casas são exemplos de resistência em um período turbulento na região. “Tínhamos um grupo de cinco parceiros com comércios no Arouche e, de todos, só nós continuamos abertos. Até o Jaguar (bar na Avenida Duque de Caxias) anunciou o fechamento temporário”, ele diz. “Durante as ações na Cracolândia, tivemos queda no número de clientes. Mas, como morador, não passei a andar menos por aqui”, conta. “A única vez em que fui assaltado foi na Avenida Paulista. Sigo achando que esta é uma região que vale a pena, e o caminho é as pessoas ocuparem as ruas. Ainda existe um movimento que aposta no centro.”
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Térreo. Largo do Arouche, 77, República. Qua. e qui., 19h/0h; sex. e sáb., 19h/1h; dom., 16h/22h; fecha seg. e ter. @terreobar. Infini. Largo do Arouche, 346, República. Qua., 19h/0h; qui., 19h/1h; sex. e sáb., 19h/2h; fecha dom. a ter. @infini.bar.
Novo point do amor
Após arrecadar 1 milhão de reais em uma campanha que vendeu “cotas para sócios” da casa, Facundo Guerra se prepara para terminar o projeto da Love Cabaret, que deve abrir em outubro no espaço da antiga Love Story. “Foi um voto de confiança”, diz o empresário, que mantém diversos negócios no centro. “A região ficou mais perigosa, toda semana vejo alguém ter o celular roubado”, ele afirma. No Bar dos Arcos (sob o Teatro Municipal), do qual também é sócio, uma equipe de segurança acompanha os clientes até os carros. “Aumenta o custo de operação”, diz.
Rua Araújo, 232, República. @love.cabaret.
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A força da Praça Roosevelt
Reinaugurado no aniversário de São Paulo após 26 anos fechado, o Cine Bijou, na Praça Roosevelt, mantém uma programação voltada para os filmes nacionais e de arte. “Ainda não temos ‘cacife’ para abrir todos os dias da semana, mas já participamos de festivais e conseguimos manter a operação mesmo sem patrocínios”, conta Ivam Cabral, produtor teatral que fundou o espaço junto com Rodolfo García Vázquez.
A boa localização ajuda a atrair o público, apesar dos problemas de segurança na região. “As notícias sobre o centro não abalaram o nosso funcionamento, porque as pessoas estão sempre pela praça. Aqui já é um espaço ocupado e ressignificado”, ele diz. “Este é um dos segredos: colocar uma mesa na calçada e acender uma luz, para ocupar a rua. É a melhor forma de prevenir assaltos.”
Praça Franklin Roosevelt, 172, Consolação, ☎ 3258-6345. ♿ Ter. a dom. @satyrosbijou.
De Portugal ao Arouche
Fundada em 2005, a Tinta da China é uma das maiores editoras de Portugal — tem no portfólio autores populares como Ricardo Araújo Pereira. Em 2012, a marca abriu um escritório no Rio de Janeiro para publicar livros no Brasil.
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Em junho, mudou-se para o Largo do Arouche, onde fica a Associação 451, que vai administrar a parte brasileira do negócio. “O centro vive um momento crítico, a segurança piorou. Quando marco um café, oriento a pessoa a não usar o celular na rua”, diz Paulo Werneck, diretor da 451. “É um momento ‘vai ou racha’: ou fazemos do centro novamente a nossa casa, ou o entregamos à degradação completa”, ele acredita. @quatrocincoum.
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Publicado em VEJA São Paulo de 13 de julho de 2022, edição nº 2797