Novos negócios abrem as portas no Centro apesar da onda de violência

Em meio aos problemas de segurança e dramas sociais, área central de São Paulo terá novos bares, restaurantes, hotéis, baladas e até um cineclube

Por Humberto Abdo e Pedro Carvalho
Atualizado em 27 Maio 2024, 21h47 - Publicado em 8 jul 2022, 06h00
Três homens brancos de barba e cabelos escuros dentro de uma sala de cinema. O que está sentado faz carinho em uma cachorrinha sentada, cujo pelo é uma mescla de branco e caramelo
Marcelo Sarti, Paulo Vidiz e Rapha Barreto (com a mascote Bel), do Cineclube Cortina: estacionamento virou cinema. (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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O centro de São Paulo vive uma maré de notícias ruins. Nos últimos dias, donos de bares e restaurantes reclamaram do sumiço de clientes, após operações policiais dispersarem o “fluxo” da Cracolândia pela região — um exemplo é o Jaguar Bar, na Avenida Duque de Caxias, que anunciou o fechamento temporário. O problema se soma a outros, anteriores. A onda de roubos de celular (destaque na capa da Vejinha de 2 de março) mudou a rotina de quem mora ou trabalha por ali — a Praça da República é campeã nesse tipo de crime na cidade.

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Há ainda a disparada no número de pessoas em situação de rua. Nos dados da prefeitura, essa população cresceu de 24 344 para 31 884 na cidade, visivelmente concentrada nos bairros centrais. “É um problema social grave, que não se resolve apenas com a ação policial”, diz o delegado-geral Osvaldo Nico Gonçalves. “A Operação Caronte (com foco na Cracolândia) já prendeu 126 traficantes, estamos no caminho certo”, ele afirma.

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Na contramão das dificuldades, uma série de negócios criativos e descolados teima em abrir as portas no centro e revitalizar a região. “Acreditamos em uma retomada em 2023. Muitos prédios e comércios estão ficando prontos”, aposta Leo Henry, sócio dos bares Térreo e Infini. São novos bares e restaurantes, hotéis remodelados, espaços para eventos (no topo de um prédio histórico), baladas, editoras e o inclassificável Cineclube Cortina (foto abaixo), que mistura tudo: cinema, shows, festas, bar, restaurante e outros usos. “Estamos retomando um território da cidade”, diz o sócio Paulo Vidiz. Conheça as histórias a seguir.

O estacionamento virou cinema

O Cineclube Cortina transformou um antigo estacionamento na República em um destino único na cidade: uma mistura de cinema, casa de shows, restaurante, bar e espaço de festas, entre outros usos. No andar de baixo (foto maior) vai funcionar um cinema diferente: o público paga quanto quiser pelo ingresso, senta em espreguiçadeiras de tecido e assiste aos filmes tomando drinques criados pela premiada bartender argentina Chula Barmaid. “Nosso modelo de negócio não será dependente da bilheteria”, explica o sócio Marcelo Sarti.

Equipe do cinema, homens e mulheres brancas, alguns sentados e outros em pé
A equipe do Cortina: os sócios Rapha Barreto (com a mascote Bel), Paulo e Marcelo, as programadoras Juli Baldi (música) e Leticia Santinon (cinema), as chefs-consultoras Fernanda Camargo e Daniela França Pinto, e a bartender-consultora Chula; ao lado, o balcão do restaurante. (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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Nos bastidores

Restaurante do Cortina, um balcão marrom com várias cadeiras altas. Uma funcionária trabalha no balcão
Restaurante: decoração em referência ao cinema. (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Além dos filmes (terças, quartas, sábados e domingos), o ambiente terá shows (quintas), festas (sextas) e eventos. A apresentação de estreia terá Arnaldo Antunes pela primeira vez no palco com a filha Celeste, no dia 28. No andar de cima (foto menor) fica o restaurante arejado, com pé-direito alto e frente aberta para a Rua Araújo — a poucos metros do estrelado A Casa do Porco. Tem um balcão para 23 lugares e referências ao mundo do cinema, como banquetas típicas das produções e uma prateleira de fitas VHS para os clientes verem filmes.

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O cardápio, elaborado por Daniela França Pinto e Fernanda Camargo (dos menus do Riviera, Blue Note e outros endereços de destaque), será baseado nos imigrantes. Terá desde sanduíches árabes (um sabi de cordeiro com pão feito na casa) e japoneses (o tamago sando, popular no país asiático) até um “bolo ralado” de origem judaica. “Abrir um espaço no centro é uma maneira de lutar pela região”, diz o sócio Paulo Vidiz. “A Rua Araújo, na altura próxima ao Copan, já era badalada. Estamos no trecho perto da Praça da República, reconquistando um território.”

Rua Araújo, 62, República. Ter. a dom. (a partir de 26/7), fecha seg. @cineclubecortina.

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A República vista do alto

Olivier no anexo do Rooftop. Um homem de meia-idade e branco com um dos braços estendidos, mostrando a vista abaixo
Olivier no anexo do Rooftop: eventos e casamentos. (Leo Martins/Veja SP)

No topo do histórico Edifício Esther, o Esther Rooftop, comandado por Olivier Anquier, vai ganhar um “anexo” dedicado a casamentos e eventos. O salão terá 270 metros quadrados e deve abrir as portas em agosto.

Com vista para a Praça da República, a nova casa (que vai se chamar Esther Eventos) terá terraço e área interna para até 150 pessoas. “Não vou dizer que estamos no paraíso”, afirma Olivier, sobre o atual cenário de violência na região. “Mas essa questão não é uma particularidade do centro. Estou há 41 anos em São Paulo e sempre ouvi falar do centro de forma negativa — e injusta. Se você for para Paris, Roma ou Barcelona e ficar com o celular na mão, dou cinco minutos para que seja roubado”, ele diz. “Moro aqui no centro e ando a pé sem segurança”, conta.

Rua Basílio da Gama, 29, República, ☎ 3256- 1009. estherrooftop.com.br.

Casa reaberta

O restaurante Clandestino, da chef Bel Coelho, que fechou na Vila Madalena em 2020, tem reinauguração prevista para outubro na Vila Buarque. A casa seguirá a filosofia de “lixo zero” e menus inspirados em ingredientes brasileiros, mas deve ganhar um bar na parte da frente.

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A chef Bel Coelho, uma mulher branca, magra, de cabelos lisos, compridos e castanhos sentada com uma tigela marrom em uma das mãos
Bel: da Vila Madalena para a Vila Buarque. (Flora Vieira/Divulgação)

Em 270 metros quadrados, ficará no térreo de um edifício em processo de retrofit — o endereço ainda é segredo. “Teremos de pensar em questões de segurança, senão o cliente não aparece”, ela diz. “Fico incomodada que as pessoas se afastem do centro. Quero trabalhar para que voltem a enxergar melhor a região”, afirma. A chef também tem o Cuia, restaurante no Copan.

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Hotel, bar e tuk-tuk

O histórico Hotel Marabá, na Avenida Ipiranga, voltou a funcionar em abril com 171 quartos e sob administração do Grupo Fábrica de Bares, dono do vizinho Bar Brahma. “Seremos um hotel associado ao calendário de eventos da cidade, para turistas que vêm para o Carnaval, por exemplo”, diz Cairê Aoas, CEO do grupo.

Cairê Aos, um homem branco e magro, de cabelos curtos e barba escuros, em frente ao Hotel Marabá, encostado na parede
Cairê: otimismo sobre o futuro da região. (Leo Martins/Veja SP)
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Com a proposta de se tornar também o “hotel oficial” do Bar Brahma, os sócios prometem criar ambientes e decorações que remetam à tradicionalíssima marca, como um hotel temático. “Sou otimista sobre o centro. Acredito que em 2023 teremos uma onda transformadora, com novos espaços de entretenimento, cultura e gastronomia”, ele afirma. “Não teríamos investido no setor hoteleiro se não fosse nesta região, porque sabemos a força que ela tem”, diz.

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De qualquer forma, o grupo providenciou serviços extras para manter a tranquilidade dos hóspedes, como seguranças para acompanhá-los no caminho do hotel para o bar, e vice-versa. “Nosso plano é criar um traslado com carrinhos do tipo tuk-tuk, para trajetos até locais como Copan, Teatro Municipal e Sesc 24 de Maio.”

Avenida Ipiranga, 757, centro, ☎ 94827-0507. marabahotel.com.br.

À base de plantas

Aberto há dois meses no Hotel Selina Aurora, na República, o bar de drinques LoHi é uma criação da dupla Thiago Maeda e Thiago Pereira, que apostou no veganismo ao criar o cardápio — totalmente plant-based, na linguagem moderninha. “As pessoas que frequentam o centro vão atrás de propostas com as quais se identificam. Quando chegamos, ficou claro qual era o nosso público”, diz Maeda.

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Dois homens, um branco e outro com traços asiáticos, atrás de um balcão de um bar, com várias garrafas ao fundo
Pereira e Maeda: estratégias para a segurança. (Rubens Kato/Divulgação)

Com a Cracolândia em evidência no noticiário, eles criaram estratégias para driblar a sensação de insegurança dos clientes. “Temos um grupo de WhatsApp com outros comerciantes da região. Todos se ajudam para saber o que acontece nas ruas próximas. Também temos segurança privada para manter a tranquilidade”, ele conta. “Tenho visto uma presença mais ostensiva da polícia. Mas, na porta, os seguranças avisam: ‘Não fique com celular na rua’.”

Avenida Vieira de Carvalho, 99, centro, ☎ 4934-4653. Ter. e qua. 21h/3h; qui. a sáb. 21h/4h; fecha dom. @lohi.sp.

Sotaque gaúcho na Vila Buarque

Com influência gaúcha na carta de drinques e no cardápio, o Bêrga Bar abriu as portas há quatro meses na Vila Buarque (ao lado do Bao Bar), sob o comando de três porto-alegrenses. “Quando cheguei a São Paulo, fui morar em Perdizes. Descobri o centro aos poucos”, conta Eddie Hoffmann, um dos donos. “Discutimos a questão da segurança no bar desde o início. O centro é uma ‘correria’ diferente… Um dia, uma pessoa entrou rapidamente (no salão) e em segundos conseguiu roubar um celular. Desde então, fomos obrigados a colocar um segurança na porta e não tivemos mais problemas”, ele conta.

Leo Mereu, Mark Fernandes e Hoffmann, três homens brancos e morenos, de roupas escuras, em frente a um estabelecimento. Um deles está sentado
Leo Mereu, Mark Fernandes e Hoffmann: segurança na porta. (Leo Martins/Veja SP)

O movimento de clientes caiu durante as recentes operações na Cracolândia, segundo Hoffmann. “A rua ficou vazia, parecia que as pessoas não queriam mesmo sair. Houve dias em que quisemos fechar o bar mais cedo. Mas sentimos que tudo voltou ao normal”, diz.

Rua Doutor Cesário Mota Júnior, 281, Vila Buarque. Qua. e qui., 18h/0h; sex., 12h/15h e 18h/0h; sáb., 12h30/16h e 18h/1h; dom., 12h30/17h; fecha seg. e ter. @bergabar.

“O caminho é ocupar as ruas”

“O centro resume São Paulo, as contradições estão todas aqui”, diz o empresário Leo Henry, dono dos bares Térreo, no Largo do Arouche, e Infini, “escondido” nos fundos do restaurante La Casserole — e que chega a ter filas de até três horas.

+Infini, bar “escondido” no La Casserole, finalmente é aberto ao público

Henry, dono de dois bares, sentado colocando um drinque vermelho de uma jarra de vidro em um copo de vidro. Ele é branco, magro, de cabelos e barba escuros. Sorri para a foto e está sentado dentro de um de seus bares, repleto de luzes azuis
Henry, dos bares Térreo e Infini: resistência. (Leo Martins/Veja SP)

As casas são exemplos de resistência em um período turbulento na região. “Tínhamos um grupo de cinco parceiros com comércios no Arouche e, de todos, só nós continuamos abertos. Até o Jaguar (bar na Avenida Duque de Caxias) anunciou o fechamento temporário”, ele diz. “Durante as ações na Cracolândia, tivemos queda no número de clientes. Mas, como morador, não passei a andar menos por aqui”, conta. “A única vez em que fui assaltado foi na Avenida Paulista. Sigo achando que esta é uma região que vale a pena, e o caminho é as pessoas ocuparem as ruas. Ainda existe um movimento que aposta no centro.”

+Térreo Bar serve petiscos baratos e drinques no Arouche; leia a crítica

Térreo. Largo do Arouche, 77, República. Qua. e qui., 19h/0h; sex. e sáb., 19h/1h; dom., 16h/22h; fecha seg. e ter. @terreobar. Infini. Largo do Arouche, 346, República. Qua., 19h/0h; qui., 19h/1h; sex. e sáb., 19h/2h; fecha dom. a ter. @infini.bar.

Novo point do amor

Projeto do ambiente interno da Love Cabaret
Luzes, danças e fetiches: projeto 3D da Love Cabaret, renomeada como a “casa de todos os corpos”. (Divulgação/Divulgação)

Após arrecadar 1 milhão de reais em uma campanha que vendeu “cotas para sócios” da casa, Facundo Guerra se prepara para terminar o projeto da Love Cabaret, que deve abrir em outubro no espaço da antiga Love Story. “Foi um voto de confiança”, diz o empresário, que mantém diversos negócios no centro. “A região ficou mais perigosa, toda semana vejo alguém ter o celular roubado”, ele afirma. No Bar dos Arcos (sob o Teatro Municipal), do qual também é sócio, uma equipe de segurança acompanha os clientes até os carros. “Aumenta o custo de operação”, diz.

Rua Araújo, 232, República. @love.cabaret.

Facundo, um homem branco, magro e de cabelos escuros, encostado em uma parede de pedras
Facundo: 1 milhão de reais em “cotas para sócios”. (Julia Rodrigues/Divulgação)

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A força da Praça Roosevelt

Reinaugurado no aniversário de São Paulo após 26 anos fechado, o Cine Bijou, na Praça Roosevelt, mantém uma programação voltada para os filmes nacionais e de arte. “Ainda não temos ‘cacife’ para abrir todos os dias da semana, mas já participamos de festivais e conseguimos manter a operação mesmo sem patrocínios”, conta Ivam Cabral, produtor teatral que fundou o espaço junto com Rodolfo García Vázquez.

Ivam, no Cine Bijou: filmes nacionais e de arte
Ivam, no Cine Bijou: filmes nacionais e de arte. (Leo Martins/Veja SP)

A boa localização ajuda a atrair o público, apesar dos problemas de segurança na região. “As notícias sobre o centro não abalaram o nosso funcionamento, porque as pessoas estão sempre pela praça. Aqui já é um espaço ocupado e ressignificado”, ele diz. “Este é um dos segredos: colocar uma mesa na calçada e acender uma luz, para ocupar a rua. É a melhor forma de prevenir assaltos.”

Praça Franklin Roosevelt, 172, Consolação, ☎ 3258-6345. Ter. a dom. @satyrosbijou.

De Portugal ao Arouche

Fundada em 2005, a Tinta da China é uma das maiores editoras de Portugal — tem no portfólio autores populares como Ricardo Araújo Pereira. Em 2012, a marca abriu um escritório no Rio de Janeiro para publicar livros no Brasil.

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Werneck: “Fazer do centro a nossa casa de novo”
Werneck: “Fazer do centro a nossa casa de novo” (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Em junho, mudou-se para o Largo do Arouche, onde fica a Associação 451, que vai administrar a parte brasileira do negócio. “O centro vive um momento crítico, a segurança piorou. Quando marco um café, oriento a pessoa a não usar o celular na rua”, diz Paulo Werneck, diretor da 451. “É um momento ‘vai ou racha’: ou fazemos do centro novamente a nossa casa, ou o entregamos à degradação completa”, ele acredita. @quatrocincoum.

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Publicado em VEJA São Paulo de 13 de julho de 2022, edição nº 2797

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