Cinco mulheres mostram que o protagonismo feminino nas cozinhas profissionais é questão de tempo
No concorrido universo da gastronomia ainda dominado por homens, essas profissionais erguem bandeiras do feminismo, antirracismo e diversidade
O caminho entre a mulher e o fogão de casa está livre. Dentro do restaurante, a história é outra. No Brasil, 7% dos endereços renomados têm comando feminino, de acordo com o site especializado Chef’s Pencil (2022). São poucas, mas juntas elas fazem barulho — na verdade, um panelaço. Em São Paulo, cada vez mais refeições de qualidade chegam às mesas pelas mãos delas.
Prova disso é que quase 50% dos indicados deste ano aos prêmios da VEJA SÃO PAULO COMER & BEBER que consagram pessoas (e não lugares) são indicadas, com “a”. Além de quebrarem barreiras estabelecidas desde o francês Auguste Escoffier, responsável por organizar a brigada com hierarquia e rigidez militar do século XIX, até o papa da gastronomia Paul Bocuse — ele nunca teve uma cozinheira em seus negócios segundo o documentário À Procura de Chefs Mulheres (2016) —, os punhos levantam bandeiras como feminismo, diversidade, ancestralidade, antirracismo e alimentação sem veneno.
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“Brilhantes e corajosas, as mulheres estão envolvidas com causas. Isso contribui para a gastronomia. Sou fã de muitas e não é só por sororidade”, endossa a chef Bel Coelho. Entre as representantes desse universo feminino e plural da cozinha estão Bela Gil, Cafira Foz, Amanda Vasconcelos e Ieda de Matos.
Veterana do fogão apesar de ter apenas 43 anos, Bel coleciona experiências dentro e fora do país. Após se formar em Nova York, estagiou no Fasano e trabalhou no extinto Laurent, de Laurent Suaudeau, e no D.O.M., de Alex Atala. Uma indicação de Atala a levou a chefiar o extinto Madelleine, restaurante avant-garde da alta cozinha na Vila Madalena. Tudo antes dos 25 anos. Com essa idade, Bel havia aberto um bufê e comandou o extinto Sabuji, de 2004 a 2005.
Nesse endereço dos Jardins, ganhou o título de chef revelação no lançamento da categoria pelo guia anual de gastronomia da Vejinha, em 2004. A inquietação a levou a estudar em Paris, e, de lá, rodou por outros países até chegar à Espanha, onde trabalhou em endereços estrelados como o El Celler de Can Roca. Bel conta que passou a confiar no seu próprio taco (ou seria colher?) com o Clandestino, projeto do coração que surgiu no andar de cima do Dui, outro de seus restaurantes.
Fechado esse endereço, levou a iniciativa à Vila Madalena, onde serviu jantares esporádicos de 2010 a 2020. A chef homenageou dos Orixás aos seis biomas brasileiros. Quer mais: “Volto no ano que vem se tudo der certo”. A ideia é ter menu degustação três vezes por semana no próprio Edifício Copan, no Centro, sede do Cuia Restaurante e Bar (ex-Cuia Café), melhor restaurante Bom e Barato do COMER & BEBER 2021.
Se por um lado a trajetória de sucesso rompeu a bolha masculina da gastronomia, por outro, o gênero não a livrou de sofrer assédio. “Político famoso que era cliente me perguntou se tinha atenção da mídia pela minha beleza. Um chef francês me prensou por trás de uma bancada e ainda disse que brasileira não merece respeito. Para sobreviver no setor hostil, tive de ignorar ou dançar com o machismo. Mas cheguei a um ponto em que não preciso mais reproduzir modelos violentos.”
“Alice Waters, chef americana que revolucionou a cozinha usando orgânicos, é uma inspiração para mim. Apesar de ser da mesma geração e muito minha amiga, a Helena Rizzo, do Grupo Maní, é uma referência de técnica e criatividade. A Paola Carosella, do Arturito e da La Guapa Empanadas, me traz confiança com a forma com que ela se coloca no mundo” – Bel Coelho
Esse ambiente descompensado foi o motivo que fez Bela Gil, 34, atual chef revelação do COMER & BEBER, resistir a ingressar no ramo. Até 2021, o trabalho frente à alimentação saudável e consciente da baiana com diplomas internacionais permeou livros, cursos, consultorias, programas no canal pago GNT e o Instagram — são 1,5 milhão de interessados em churrasco de melancia e muito mais. “Pensar em estar na cozinha de um restaurante não me agradava em nada.”
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Ao estrear no Camélia Òdòdó, cujas pedidas vegetarianas como bobó de cogumelo são feitas na Vila Madalena com ingredientes orgânicos e de assentamentos, Bela se propôs a fazer diferente. Faz valer a filosofia ao montar uma equipe afirmativa e contratar pessoas pretas e LGBTQIA+. Ideias e sugestões são bem-vindas: “A hierarquia é mínima. Há posições estabelecidas, mas todos dão opinião. Isso deixa tudo mais alegre. O Camélia é um filho do meu jeito de enxergar a vida”.
“Me inspiro na (nutricionista) Neide Rigo pela criatividade infinita e o uso mais belo dos ingredientes da biodiversidade brasileira, e na minha avó, dona Nair, pela paixão que ela tem em alimentar as pessoas. Também todas as mulheres que mantêm e constroem tradições alimentares com suas técnicas únicas e ingredientes específicos: cozinheiras de terreiro, baianas de acarajé, líderes quilombolas e indígenas” – Bela Gil
A diversidade é premissa de Cafira Foz, 38, no Fitó, em Pinheiros, endereço de cardápio piauiense moderno indicado a bom e barato no ano da inauguração, em 2017. “Quero que as pessoas se reconheçam ali”, explica a cearense que sentiu falta de ver nordestinas na concorrência enquanto planejava o restaurante.
Criada em Teresina pelos avós maternos, foi acolhida em São Paulo pelo tio e pelo primo aos 27 anos. Sem dinheiro, fez bicos variados. “Vivia no perrengue. Quando meu ex-companheiro me deu o conforto de uma casa, eu pude parar e pensar. Então, entrei em depressão e fomos a Lyon, onde fiquei emocionada ao perceber que a minha grande busca talvez estivesse na cozinha”, lembra.
No restaurante em sociedade com Tomás Foz, que segue no negócio apesar do fim do relacionamento, ela tenta proporcionar aos colaboradores auxílios que não teve: plano de carreira para o time de funcionárias cis, trans e de pessoas não binárias, além de facilitar o acesso à terapia e à prática de exercícios físicos. “Não é para ser legal. Legal seria se não precisasse me impor para que outras mulheres pudessem trabalhar. É necessidade.”
“É lindo ver o modo com o qual a pesquisadora Neide Rigo trata os ingredientes do Brasil. Adoro aprender com ela. Sou fã da Irina Cordeiro. Ela foge do caminho tradicional da cozinha e coloca em evidência toda a potência nordestina. Ieda de Matos é uma mulher baiana incrível que me apresentou a cozinha da Chapada Diamantina. É espetacular a sua pesquisa e trajetória” – Cafira Foz
Segundo estudo feito pelo instituto Ipsos no movimento Juntas na Mesa, criado pela marca de cerveja Stella Artois para promover equidade de gênero por meio de capacitação on-line e gratuita, disponibilização de crédito e ações de visibilidade, um terço das participantes da pesquisa diz não conseguir crescer na gastronomia por não serem ouvidas pelos chefes homens.
Mesmo quando os papéis se invertem, a desvalorização reaparece. Ao abandonar arquitetura no último ano e parar de visitar obras, Amanda Vasconcelos, 31, pensou que tinha deixado essa questão para trás. “Achei que tendo meu próprio negócio isso não aconteceria. A maioria dos clientes são respeitosos, mas após ver o resultado dessa pesquisa lembrei de alguns casos”, diz. “Teve um homem que passou a mão em mim enquanto eu fechava a conta e um cliente que só parou de gritar comigo quando dei o telefone para o meu ex-namorado.” Nascida no Acre, Amanda aterrissou em São Paulo para estudar sem saber fritar um ovo.
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Empolgada com os ingredientes típicos que trazia na mala ou recebia dos pais, aprendeu a cozinhar. Primeiro, para si mesma, depois, para amigos em encontros que viraram eventos. O projeto pulou para um ponto fixo, a Casa Tucupi, na Vila Mariana, que se tornou uma embaixada do estado nortista. No menu, há clássicos como a baixaria, pê-efe de cuscuz desmontado acompanhado de ovo e carne moída que serve para cortar a larica após os agitos e a bebedeira da madrugada de Rio Branco.
A novidade é que Amanda oferece os sabores do Acre em mais um endereço. Em soft opening no Bixiga, o bar Sobrado Tucupi usa as frutas de lá para drinques. Embora o cargo de chef tenha certo glamour, o empreendedorismo feminino no ramo muitas vezes tem como pontapé a necessidade.
Não raro mulheres sentem dificuldade de se enxergar como empreendedoras. “Não foram ensinadas que têm direito a esse espaço. É como se carregassem o ônus de tocar o negócio e pagar as contas, mas sem o status de empreendedoras”, explica Patricia Ellen, ex-secretária de desenvolvimento econômico de São Paulo, presidente da Systemiq Brasil e cofundadora da Aya Earth Partners.
Aprendi muito de cozinha na infância ao ver minha avó Ioleta e as mulheres da família preparando as comidas do dia a dia. Maria Helena Serrano, amiga e confeiteira à frente do café Quinto Pecado, na Vila Mariana, me inspira e abriu o seu espaço para eu fazer meus primeiros eventos. Outra referência é Ana Luiza Trajano, pela ampla pesquisa de ingredientes brasileiros no Instituto Brasil a Gosto” – Amanda Vasconcelos
Os desafios de se consolidar na profissão, especialmente como autodidatas, são maiores para mulheres negras. Ieda de Matos, 50, que o diga. A baiana não seguiu o desejo do pai, que era ver os catorze filhos como agricultores. Seu coração palpitava pelo conselho da Tia Maria: dedicar-se aos estudos. Aos 33 anos, deixou o sertão da Chapada Diamantina rumo à capital paulista.
Após receber negativas para vagas de emprego, finalizou o supletivo e fez história na família ao ser a primeira a ingressar na faculdade. “Vim da agricultura de subsistência. Aos 17, comecei a cozinhar. Mas a mulher preta precisa de um papel para provar o profissionalismo. Então me formei em gastronomia com 42 anos”, diz. A chef começou a achar seu lugar ao investir num food truck. Na cozinha sobre rodas, expediu por três anos pratos de sua região natal no Butantã.
Para defender suas raízes, mergulhou no resgate da culinária patrimonial e da influência africana nos pratos baianos. A busca reverberou em receitas como o baião de dois e o godó de banana verde (guisado de carne com a fruta), que ganharam um cantinho fixo em Pinheiros e foram bem-aceitos. “Conquistamos um público interessado em comida com história. Parte se tornou amigo.” Em algumas situações, os elogios não acertaram a mira. “Falaram para eu avisar a chef que a comida estava maravilhosa e parabenizaram meu marido e meu filho, me ignorando.” A visibilidade melhorou ao vencer o reality Fora da Rota.
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Promovido pela Stella Artois, tinha como prêmio a chefia do restaurante temporário Portinha Artois, em Higienópolis. A participação na série Iron Chef, da Netflix, foi outra conquista. Rendeu aulas e palestras que traçaram outro rumo para o Casa de Ieda. Desde março, ela, o parceiro, José, e o filho Everton recebem a freguesia só nos fins de semana. “Muitas vezes chorei no banheiro do meu restaurante. Mas me fortaleci e cheguei à conclusão de que esse lugar me pertence. Empoderada é a palavra. Ainda mais de dread”, declara Ieda com a certeza de que a sua resistência é coletiva.
“Leila Carrero me motiva pela pesquisa de cozinha patrimonial no restaurante Dona Mariquita (Salvador). Benê Ricardo (1944-2018) é referência por ter sido a primeira negra a frequentar um curso superior de gastronomia. Ana Célia. Preta e iabassê do terreiro Gantois, leva a herança africana para o restaurante Zamzibar, frequentado por artistas como Caetano e Gil” – Ieda de Matos
Um menu de protestos
Numa oposição ao termo comfort food, de receitas que ativam a memória afetiva, o circuito Uncomfortable Food, da Stella Artois, deseja provocar. Cada restaurante comandado por uma embaixadora do Juntas na Mesa acrescentará por um mês ao menu uma composição autoral que coloca no prato os desconfortos vividos pelas cozinheiras na profissão.
Bela Gil e Bel Coelho desenvolveram juntas a musse de chocolate acompanhada de curau, banana caramelizada, gelatina de mel da espécie uru çu-amarela e telha de especiarias. Batizada de quebrando barreiras, poderá ser provada tanto no Camélia Òdòdó (Rua Girassol, 451B, Vila Madalena) quanto no Cuia Restaurante e Bar (Avenida Ipiranga, 200, Edifício Copan, Centro). O Fitó (Rua Cardeal Arcoverde, 2773, Pinheiros), de Cafira Foz, terá o baião de todas. Criado a quatro mãos com Kátia Barbosa, do Aconchego Carioca, no Rio de Janeiro, leva feijão-manteiguinha de Santarém, abóbora assada, tomatinhos defumados e queijo de coalho crocante.
A Casa Tucupi (Rua Major Maragliano, 74, Vila Mariana) completa os endereços paulistanos na ação com o chamado nem tudo são flores. Para sentir os obstáculos das mulheres, o comensal deve quebrar a tuile de tucupi para enfim saborear o pirarucu com caldo de cogumelo yanomami e purê de banana-da-terra. Confira as datas da ação, que rola também em outras cidades do Brasil com as chefs Kátia Barbosa, Andressa Cabral, Bruna Martins, Kalymaracaya Nogueira, Michele Crispim e Nara Amaral, no site stellaartois.com.br/menu.
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Publicado em VEJA São Paulo de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812