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“Era constrangedor”, diz ex-diretor do Masp sobre doação de obras falsas

Biografia vai contar história do marchand e leiloeiro Renato Magalhães Gouvêa, ex-diretor e associado vitalício do museu

Por Pedro Carvalho
Atualizado em 27 Maio 2024, 21h26 - Publicado em 14 out 2022, 06h00
Renato Magalhães Gouvêa.
Renato Magalhães Gouvêa.  (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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O marchand e leiloeiro Renato Magalhães Gouvêa, 93, é uma espécie de Forrest Gump das artes plásticas. Ex-diretor e associado vitalício do Masp, autor dos mais glamorosos leilões de quadros da história de São Paulo, ele participou de episódios que vão desde a compra do Abaporu (diretamente das mãos de Tarsila do Amaral) até anedotas que envolvem a rainha Elizabeth II, da Inglaterra. A típica “vida que daria um livro”, enfim, deu: Maestro, de Rogério Godinho (Matrix, 79 reais), com lançamento marcado para novembro.

O senhor se interessou por arte após uma colega da escola lhe enviar um bilhete: “Como você sabe se um quadro é bom ou ruim?”. Já saberia responder? Era uma menina mais velha, bailarina, pianista. Eu tinha 13 anos. Não dá para responder dessa forma, como se servisse para qualquer quadro. Precisa do quadro para dar a opinião. Primeiro, claro, é necessário ter certeza de que é verdadeiro. Eu era quem ajudava os juízes a decidir se um quadro era verdadeiro ou falso. Meu escritório era homologado pelo Instituto de Resseguros do Brasil para dar esse tipo de laudo.

O senhor menciona no livro que no Palácio dos Bandeirantes havia várias obras falsas. Ainda tem? Nunca mais voltei lá, mas deve ter. Menos, porque o governo criou um grupo para cuidar do acervo. Eu tinha muito contato com o governador Paulo Egydio (1975-1979) e fiz o primeiro livro sobre o acervo. Quando fui ver a coleção, comecei a achar os falsos, um atrás do outro. Muita coisa falsa. Entre eles, uma réplica de La Madonna della Seggiola, de Rafael, instalada no quarto que hospedaria o (ex-presidente francês) Giscard D’estaing. Todo mundo sabe que o original está na Galeria Uffizi, na Itália, e é um tondo (um quadro redondo). O daqui era retangular. O (Pietro Maria) Bardi (fundador do Masp, amigo e ex-sócio de Renato) tirava o maior sarro dessa história.

Quem tinha vendido ao Palácio? O Palácio não comprava nada. Ganhava de marchands, de famílias… No Masp acontecia o mesmo. Tivemos de criar um departamento para a diretoria não devolver diretamente os quadros, para evitar constrangimento com os doadores. Às vezes, era um sujeito importante e dava problema.

Há uma história de um quadro falso da senhora Lili Penteado (viúva de Armando Álvares Penteado, cuja fortuna deu origem à Faap) que mudou a história do Masp? Era um Modigliani falso. Tivemos de dizer isso à dona Lili, o que abalou a relação dela comigo e com o Bardi. A Europa inteira sabia que um milionário de São Paulo tinha comprado um Modigliani falso. O Bardi chegou a dar à Lili o endereço do falsificador. O Masp iria se mudar para o prédio da Faap (o museu ficava na Rua Sete de Abril). Fui o diretor desse convênio. O dinheiro para terminar o prédio era da dona Lili. Mas um grupo fez a cabeça dela e o testamento do Armando não foi cumprido. Eu, como diretor, guardava esse testamento, que dedicava a fortuna dele à arte. Esse grupo quis fazer uma universidade no prédio. Eu e o Bardi decidimos sair fora. O quadro foi só a gota de água.

O senhor deixou a diretoria do Masp quando Heitor Martins virou presidente, em 2014. Gosta da atual gestão? O Heitor trouxe uma diretoria nova. Na antiga, poucos se doavam ao museu. A maioria nem ia lá. O Heitor é um sujeito muito capaz. Mas é, também, um pouco afastado do tema da arte. É um grande comerciante. Por isso, quando se interessou pelo cargo, achamos uma ótima solução: “Ele saberá arranjar dinheiro para o Masp não fechar”. Mas, se pegar as exposições que fazíamos antigamente, dão de 10 a 0 nas atuais. A ligação do Bardi com o exterior era enorme, fizemos exposições até de Michelangelo.

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Por que o museu teve tantos problemas financeiros? O Masp foi construído com as “cantadas” do (jornalista e empresário Assis) Chateaubriand, que usava os Diários Associados para pressionar pelas doações. A primeira diretoria era rica, colocava dinheiro no museu. Depois que ele e o Bardi morreram (em 1968 e 1999), as coisas mudaram. Chegou-se a uma situação em que não tinha água nos banheiros, uns quinze anos atrás. A diretoria da época não colocava dinheiro nem ia atrás de doações. Não tinha bons produtos (exposições), havia uma laje que ameaçava ceder… Dinheiro não entrava, só saía.

O senhor e o Pietro compraram o Abaporu de Tarsila? No livro, ela o teria vendido por 22 000 dólares. Se arrependem de tê-lo revendido (avaliada em 40 milhões de dólares, a obra está na Argentina)? Compramos o quadro na fazenda dela, em Sorocaba. O Bardi comprou, depois vendeu ao (galerista) Érico Stickel, que vendeu ao (empresário) Raul Forbes, que o comercializou na Argentina. O Bardi não tinha esse negócio de arrependimento. Ele achou que vendeu por um bom preço, ponto. Sabia que a Tarsila seria a mais importante (daquela geração de pintoras), mas ele era muito objetivo.

Na época da fundação do Masp, os banqueiros paulistas financiavam a arte. A atual geração das finanças, chamada de “pessoal da Faria Lima”, não tem mais interesse pelo tema? Antes, havia um dono do banco. Hoje, não tem mais um sujeito que seja o dono. Além disso, eles realmente não têm interesse pelo tema. São raríssimos. Isso quando não aparece um Edemar Cid Ferreira, que compra tudo de arte e depois dá um tombo no mercado e vai preso. Antes do escândalo, ele me chamou ao escritório dele, na Avenida Paulista, uma sala de muito mau gosto… Como um homem que compra tanta arte e tem uma sala tão cafona? Queria fazer um fundo de investimento em arte. Não topei.

Antes da entrevista, o senhor disse que cuidou de um objeto da rainha Elizabeth II. Qual foi a história? Quando ela esteve no Brasil, em 1968, andou a cavalo em um sítio próximo à minha chácara, em Campinas. Ela simpatizou com um cavalariço, senhor Hélio, e enviou a ele um par de abotoaduras. Os donos do sítio vieram dizer que era um engano: os objetos teriam sido mandados para eles. O senhor Hélio, sem saber como agir, me ligou. Aconselhei: diga que entregou a um amigo que mora longe. Acabei tendo de guardá-las. Depois, achamos uma carta da embaixada que confirmava que elas pertenciam ao senhor Hélio. Após a morte dele, dei-as aos filhos.

Acha que atuais expoentes da arte brasileira serão valorizados no futuro? No meu entender, o mercado de arte contemporânea vai cair na hora que o foco virar para outra coisa. Vão sobrar dois ou três. A (Adriana) Varejão, por exemplo, acho que aquilo que faz não vale o que se cobra. A questão de preço não é por quanto você vende, mas por quanto o cara consegue vender depois. A primeira venda é fácil.

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Publicado em VEJA São Paulo de 19 de outubro de 2022, edição nº 2811

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