Tombamentos são recheados de casos controversos, polêmicos e pitorescos
Brigas a respeito da preservação de bens agitam a Justiça e conflitam até com licitações da prefeitura
Durante as pesquisas de doutorado, o arquiteto João Bittar Fiammenghi conheceu a obra de Ivone Macedo Arantes, uma ex-funcionária da prefeitura que projetou o crematório Jayme Augusto Lopes, conhecido como Crematório da Vila Alpina, na Zona Leste. Ao saber que o espaço não era tombado, Fiammenghi resolveu elaborar um pedido aos órgãos de preservação do patrimônio. Em janeiro, o Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) abriu um processo de tombamento, o que impede qualquer intervenção no local sem o aval do departamento. Ocorre que a estrutura faz parte dos 22 cemitérios que foram concedidos à iniciativa privada no ano passado para a melhoria dos serviços funerários municipais — que sofrem, entre outras coisas, com as longas filas do limitado crematório. O processo pode, no mínimo, atrasar as obras previstas (veja mais abaixo). “Há um senso comum de que a preservação vai contra ‘o mercado’. Mas acredito que seja o contrário: se mais tombamentos fossem levados adiante, os arquitetos atuariam de maneira até melhor na cidade”, justifica Fiammenghi.
A lista dos cerca de 4 200 lugares tombados pelo Conpresp em São Paulo é recheada de casos controversos, polêmicos e até pitorescos (como o alambrado do estádio do Juventus, na Mooca, e um posto de gasolina na Aclimação). Não raro, eles terminam na Justiça, quando a decisão do órgão técnico não agrada a uma parte envolvida. Um exemplo recente se desenrola no Clube Pinheiros, na Zona Oeste. Desde 2018, a diretoria tenta reformar o glamoroso salão de festas da agremiação. O assunto acabou judicializado após o questionamento de sócios que queriam manter o espaço como está, pelo valor arquitetônico e cultural (veja mais abaixo). Em outro caso, o Sindicato dos Metroviários de São Paulo abriu um processo para tombar o prédio que ocupou durante trinta anos na Zona Leste, mesmo prestes a se mudar dali porque uma construtura pagou 14,4 milhões pelo imóvel (veja mais abaixo). Na Vila Mariana, apesar de conquistarem o tombamento da maior parte da Chácara das Jaboticabeiras, moradores recorreram à Justiça e à prefeitura para questionar o próprio decreto de preservação, que deixou de fora um trecho pedido (veja mais abaixo).
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Os exemplos mostram como o assunto costuma ser espinhoso. “A relação da sociedade com o tombamento é controversa. Várias pessoas o utilizam para interesses privados e não públicos”, diz o arquiteto e urbanista Silvio Oksman, ex-membro do Conpresp. Alguns processos são abertos apenas para evitar a construção de um empreendimento na região, ou após brigas de vizinhos — que normalmente pedem que a casa do outro seja tombada, o que torna qualquer reforma uma maratona burocrática. “Há casos que servem como instrumento de revanchismo. Infelizmente, (o tombamento) virou até isso”, diz o advogado Orlando Correa da Paixão, que até o dia 17 era diretor do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da prefeitura — a saída teria sido motivada por rusgas com a secretária de Cultura, Aline Torres, após o processo que solicitava a preservação do anexo do Espaço Itaú de Cinema e do Café Fellini, na Rua Augusta, ficar quatro meses em análise e uma construtora anunciar a compra do imóvel. Paixão nega a demora — segundo ele, tramitavam mais de 600 pedidos no órgão — e nega que seja esse o motivo da saída.
Não é difícil imaginar, de qualquer forma, as pressões que sofrem os departamentos de proteção ao patrimônio em uma cidade com o ímpeto imobiliário de São Paulo. No ano passado, o Conpresp fez um único novo tombamento na capital: o das luminárias ornamentais da Light, instaladas no Centro entre 1920 e 1940. Também considerou como bem imaterial a Novena do Carmo, da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, na Sé. Por outro lado, o balanço anual do órgão indica 127 “intervenções realizadas”, das quais 59% foram construções, demolições, manutenções e outras reformas pedidas por empresas em imóveis já tombados ou áreas vizinhas. “Às vezes, você pede um tombamento e, quando vê, o lugar está sendo demolido. Parece até que os empresários estão sendo avisados e que quem deveria cuidar está fazendo o contrário”, afirma a advogada Celia Marcondes Smith, vice-presidente da Appit (Associação dos Proprietários, Protetores e Usuários de Imóveis Tombados).
Nos últimos anos, mudanças na composição desses órgãos tornaram a presença de advogados maior que a de arquitetos, urbanistas e engenheiros. Dos nove conselheiros do Conpresp, cinco são advogados. O conselho informa que “independentemente da formação, todos têm responsabilidade e comprometimento com a preservação do patrimônio”. Também afirma que o número de processos no órgão aumentou após a aprovação do Plano Diretor, em 2014, que incentivou a construção de prédios em eixos de transporte público e provocou uma corrida por pedidos de autorização das incorporadoras. “Nada é feito que não esteja absolutamente dentro da lei”, afirma o Conpresp.
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Qualquer pessoa pode fazer um pedido de tombamento, daquilo que bem desejar. Ela precisará justificar o motivo pelo qual considera que o bem deva ser preservado. “A solicitação pode ser até escrita à mão em um papel de pão”, diz Paixão, ex-diretor do DPH. Para que o pedido se torne um processo, porém, é preciso passar pelo crivo de órgãos como o DPH e o Conpresp. O tombamento — seja de uma obra de arte, fotografia, móvel, casa, prédio, rua, bairro ou até de um prato típico, — busca evitar que algo seja destruído ou descaracterizado. Os órgãos técnicos avaliarão se o bem é importante para a memória paulistana e se precisa ser preservado. Em caso afirmativo, legislação específica é criada para a proteção. Se alguém danificar um patrimônio tombado, corre o risco de pagar uma multa que pode chegar ao valor integral do bem.
Quando o caso envolve uma mentalidade imobiliária mais moderna, porém, a judicialização dá lugar a uma união entre os interesses dos empresários e a preservação da memória. “Está totalmente fora de moda dilapidar o patrimônio histórico”, diz Maurício Bianchi, vice-presidente de Tecnologia e Qualidade do Sinduscon-SP (representante das construtoras). “Ter um bem preservado agrega valor a um empreendimento”, afirma o engenheiro. Bianchi atuou na construção do complexo Cidade Matarazzo, na região da Avenida Paulista, onde diversos cuidados foram tomados para preservar a igreja de Santa Luzia. Construída em 1922 pelo arquiteto italiano Giovanni Battista Bianchi, a estrutura é tombada pelo Condephaat e passou nove meses sustentada por pilares de 31 metros de altura durante as obras para que permanecesse no local.
O exemplo, porém, parece exceção. A regra ainda são as intermináveis querelas entre empresas que reclamam da tutela do estado, órgãos públicos atolados em processos duvidosos e moradores sempre descontentes com as mudanças do bairro. “As áreas tombadas da nossa região vivem ameaçadas pela voracidade do mercado”, alerta a arquiteta Eliana Menezes, presidente da Associação dos Moradores da Vila Mariana. Entre tantos tombamentos ruidosos, espera- se que os mecanismos de proteção ao patrimônio consigam realmente preservar o que é importante para a cidade, sem se perder nos labirintos de pedidos sem sentido.
Pinheiros: sócios X direção
Há cinco anos, o Esporte Clube Pinheiros tenta reformar o salão de festas (foto acima) para transformá-lo em um espaço de usos diversos. Um imbróglio nos órgãos de defesa do patrimônio, porém, impede que obras sejam feitas ali. Em março de 2018, o Conpresp abriu um processo de tombamento do salão, projetado nos anos 1950 por Gregori Warchavchik, pioneiro da arquitetura modernista no Brasil. Na prática, é um “tombamento provisório”, porque submete quaisquer reformas à avaliação do departamento. Em junho de 2018, no entanto, o próprio clube solicitou que o pedido de preservação fosse reconsiderado.
A situação opõe o Ministério Público Estadual, defensor dos sócios que querem preservar o salão, e a atual diretoria do Pinheiros, que luta pela reforma. Sob anonimato, associados favoráveis ao tombamento alegam que não há fatos novos para justificar uma mudança de postura do Conpresp. A afirmação é rechaçada pela direção do clube. Ela entende que uma remodulação anterior teria aberto o caminho para a nova reforma. “O imóvel passou por alterações significativas dos elementos arquitetônicos na década de 60, quando foi feita a desapropriação (de parte da estrutura) para a passagem da avenida Faria Lima”, afirma Ivan Castaldi Filho, presidente do Pinheiros. “A Justiça vai determinar se o processo de tombamento será mantido ou se haverá uma perícia para avaliar se o projeto original foi descaracterizado”, completa Fernando Escudeiro, advogado do clube na disputa.
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A situação lembra a do quase vizinho Clube Paulistano, nos Jardins, cuja sede social também é assinada por Warchavchik. O espaço foi tombado em 2018, no mesmo processo que preservou o ginásio da instituição, do arquiteto Paulo Mendes da Rocha. A diretoria, porém, tem conseguido tocar reformas no local — com dose de paciência. “Fazemos os pedidos no Conpresp e aguardamos, já que os processos são um pouco lentos. Mas tudo o que apresentamos até agora foi aceito”, afirma Eder Ferreira, presidente do Paulistano.
Mudanças de decisões não são incomuns no Conpresp. Um dos casos mais recentes ocorreu no estádio do Canindé, em 2022. Mas, diferentemente da arrastada briga do Pinheiros, o intervalo entre o tombamento provisório e o arquivamento do processo foi de dois anos.
Nem depois da mudança
Mesmo tendo um acordo para sair do prédio que ocupa desde 1990, na Zona Leste, o Sindicato dos Metroviários de São Paulo luta para que a estrutura e a quadra de esportes sejam tombados. O sindicato não era dono do edifício de três andares, que pertencia ao Metrô. Em maio de 2021, a empresa Uni 28 SPE Ltda, um braço da Porte Engenharia, comprou o espaço por 14,4 milhões de reais. De lá para cá, sindicato e empresa travam uma guerra jurídica. Em maio, em um novo capítulo da disputa, abriu-se o processo de tombamento, após um questionamento do Ministério Público Estadual. A análise do Conpresp estava marcada para o dia 13, mas acabou adiada. A decisão sobre o tombamento deve sair no dia 27.
Após ser intimado pela Porte Engenharia a pagar 130 000 reais de aluguel por mês, o sindicato fez um acordo para deixar o local em 30 de março. Vai se mudar para o Belenzinho, também na Zona Leste. O acerto prevê um repasse de 500 000 reais aos metroviários, para ajudá-los na mudança. “O fato de sairmos do prédio não significa que abriremos mão do tombamento. Mas os interesses da especulação imobiliária estão atuando e não sabemos até onde isso vai interferir no julgamento”, diz Camila Lisboa, presidente do sindicato. Na argumentação dela, o tombamento é fundamental para preservar a memória sindical, e o prédio tem valor arquitetônico. A Porte informou que acompanha a evolução do caso.
Sem paz nos cemitérios
Em novembro, a prefeitura repassou os 22 cemitérios municipais da capital para a gestão privada. Em janeiro, após a assinatura dos contratos, os órgãos de defesa do patrimônio abriram processos para o tombamento de dois deles: o São Paulo, em Pinheiros, e o crematório da Vila Alpina, na Zona Leste.
Em tese, a análise não impede que obras sejam feitas nos locais. Mas qualquer intervenção passa a precisar do aval desses órgãos, o que costuma deixar o processo mais demorado. “É só uma camada de proteção”, diz o arquiteto João Fiammenghi, autor do pedido de tombamento na Vila Alpina.
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Caso o Conpresp confirme as solicitações, o que não tem data para ocorrer, os endereços se juntam aos cemitérios da Consolação, dos Protestantes e da Ordem Terceira do Carmo, preservados desde 2017.
A justificativa das concessões era justamente melhorar o serviço funerário, alvo de investigação do Ministério Público pelo abandono dos espaços e pelas depredações frequentes.
Em nota, a prefeitura admite que processos de tombamento iniciados antes de uma concessão são “parte dos encargos assumidos pelas concessionárias”. Já nos processos citados, iniciados após a assinatura dos contratos, o município afirma que “serão analisados conforme o caso concreto”. Ainda segundo a prefeitura, o DPH e o Conpresp estão em contato com as concessionárias para orientá-las sobre os projetos de melhorias para os locais.
No momento, os cemitérios municipais estão em fase de transição da gestão. As concessionárias só assumirão integralmente o serviço em 7 de março.
Jabuticabas paulistanas
Aprovado em novembro de 2021, o tombamento da Chácara das Jaboticabeiras, na Vila Mariana, opôs moradores e uma construtora com interesse em construir no bairro. Apesar da vitória, o resultado do processo não agradou à turma da preservação. É que o tombamento (que contempla o quadrilátero entre a Avenida Conselheiro Rodrigues Alves e as ruas Domingos de Morais, Humberto 1º e Joaquim Távora) deixou de fora um trecho solicitado no pedido original. A brecha permitiu que prédios de dezesseis andares (ou 50 metros de altura) fossem projetados para a Rua Doutor Fabrício Vampré, o que sombrearia as árvores e praças tombadas. A construtora entrou na Justiça para que os prédios comecem a ser construídos. Do outro lado, moradores também recorreram aos tribunais — e ainda criaram um recurso no Conpresp para que o tombamento que eles mesmos pediram fosse reavaliado. “O valor histórico e paisagístico foi reconhecido. As regras devem ser pela preservação e não pela alteração”, afirma a arquiteta Maria Albertina Jorge Carvalho, do coletivo Chácara das Jaboticabeiras, que luta pelo tombamento total.
Da culinária ao samba
O samba paulistano, o virado à paulista, a Novena da Igreja do Carmo e até atividades de grupos teatrais são exemplos de patrimônios imateriais tombados em São Paulo. Esse tipo de reconhecimento busca preservar rituais, festas e manifestações culturais.
O tema tem situações curiosas. Em 2013, o Conpresp considerou o samba paulistano um bem imaterial da cidade. Três anos depois, o Condephaat, um órgão estadual, fez o mesmo com samba paulista. Ainda em 2016, foi a vez de o samba-rock ter o reconhecimento pelo município. Por fim, em 2021, as práticas carnavalescas em geral se tornaram um bem imaterial paulista.
Para o arquiteto Carlos Faggin, presidente do Condephaat, todos merecem o reconhecimento. “O samba paulista é diferente daquele cantado no Rio de Janeiro ou na Paraíba. Mas é diferente o samba do interior do estado”, diz.
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Outro caso pitoresco é o virado à paulista, único alimento considerado patrimônio imaterial do estado. A resolução do Condephaat, de 2018, não indica os ingredientes que deveriam ser usados no prato, mas informa que ele enaltece a “expressão da pluralidade e identidade cultural e da formação histórica e demográfica do estado de São Paulo”.
Em 2014, foram consideradas bens imateriais as atividades exercidas pelo conjunto de 22 trupes de teatro da capital, como a Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona (do dramaturgo Zé Celso Martinez Corrêa), Os Satyros, o Teatro da Vertigem e a Cia da Revista.
O reconhecimento imaterial mais recente foi o da Novena do Carmo, da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, na região da Sé, no Centro.
Publicado em VEJA São Paulo de 1° de março de 2023, edição nº 2830
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