Questionada no STF, lei que prevê “água da casa” divide opiniões
Confederação do Turismo alega possível prejuízo com a norma, que foi promulgada em 2020, mas está suspensa desde o ano passado
Sancionada pelo então prefeito Bruno Covas em setembro de 2020, uma lei obriga bares e restaurantes a oferecer água filtrada gratuitamente aos clientes, mas a medida durou pouco até ser suspensa por decisão judicial, nunca “pegou” de fato na cidade e agora foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). A água da casa é comum em países como Estados Unidos e França e obrigatória por lei no Distrito Federal desde 1998 e no estado do Rio de Janeiro desde 2015, mas em São Paulo é alvo de críticas de donos de restaurantes, que apontam possível prejuízo.
Ir a um restaurante e pedir água da casa, muitas vezes, causa estranhamento nos garçons, que olham sem entender e questionam a gerência sobre a possibilidade ou não da oferta. Em alguns locais, finalmente o garçom traz um copo d’água filtrada, sem cobrança. Em outros, como o Le Chef Boucher, no MorumbiShopping, onde a garrafa de água, com ou sem gás, custa 8 reais, a bebida gratuita foi negada por uma garçonete a esta repórter em dezembro, sob a justificativa de que a lei que obrigava o oferecimento gratuito não estava mais em vigor. De fato, não está.
A norma, fruto de um projeto de lei dos vereadores Xexéu Tripoli (PSDB) e Adolfo Quintas (PSD), foi sancionada em setembro de 2020, mas sua vigência só começou um ano depois. Ao sugerir o projeto, Tripoli usou como justificativa a diminuição do uso de garrafas plásticas, por conta do impacto que o material gera ao meio ambiente. A Confederação Nacional do Turismo (CNTUR) ajuizou uma ação no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) para questionar a lei, e a norma foi declarada inconstitucional em junho de 2022. A prefeitura recorreu e o caso chegou ao STF em fevereiro.
Enquanto corre o processo, os estabelecimentos podem negar água gratuita. Wilson Luiz Pinto, presidente-executivo da CNTUR e dono do restaurante Guanabara, no Centro, afirma que o poder público não pode fazer a exigência. “A gente não é contra restaurantes que forneçam água gratuitamente, somos contra a obrigatoriedade”, diz. “Se for obrigado, vou ter que ter um filtro, e tem a conta de água da Sabesp, além de deixar de vender a garrafa. Se virar algo comum, daqui a pouco vou ter que dar o almoço de graça e a sobremesa vai ter que estar inclusa”, alfineta. Em relação aos danos ao meio ambiente, ele sugere que sejam dados incentivos à indústria para produzir garrafas de vidro ou latas, em vez de a cobrança recair sobre os comerciantes.
A rede de bistrôs Le Jazz, que tem seis pontos na cidade, oferece água filtrada gratuitamente desde 2009, quando foi inaugurada a primeira unidade, e também optou pela prática na recém-inaugurada Le Jazz Boulangerie. Mesmo assim, o sócio Gil Leite critica a lei por interferir nas decisões dos empresários. “A gente decidiu fazer essa gentileza porque combina com o nosso conceito, já estávamos abrindo um restaurante francês, e sempre admiramos essa prática nos estabelecimentos da França”, lembra ele, que afirma deixar de vender em média 6 000 garrafinhas por mês. “Mas o Estado, que mal oferece água para as pessoas nas casas, cobrar por isso e determinar que o empresário tem que dar água de graça, acho absurdo.”
Os clientes do Fitó, em Pinheiros, também podem beber água à vontade sem pesar no bolso. A proprietária Cafira Foz afirma que para ela é natural oferecer bebida filtrada a seus clientes. “A água nunca foi paga aqui, mas tem com gás à venda. No Fitó a gente pratica a cultura da hospitalidade da abundância. Mas há lugares e lugares, nem todos são grandes, algumas pessoas estão abrindo agora. Entendo algumas questões colocadas, não a reivindicação para não ter água, mas para ter alguns subsídios do município.” Além da rede Le Jazz e do Fitó, entre os restaurantes que ofertam água filtrada sem cobrança estão o Teus, em Pinheiros, e o A Baianeira, com unidades na Barra Funda e no Masp.
Igor Britto, diretor de relações institucionais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), diz que é “uma vergonha” que o país precise de leis para obrigar empresários a fazerem tal fornecimento aos clientes. “Essa oferta é o mínimo do marco civilizatório entre empresários e comunidade, especialmente com seus consumidores. Os empresários pagam muitos impostos, têm vários custos, pagam salários, mas qual é o problema de ter a cultura de gentileza? É um absurdo, em 2023, com tanta campanha global para redução de plástico, ver uma entidade que representa uma categoria empresarial na maior metrópole do país fazendo um movimento contrário, incentivando essa venda”, critica.
A questão é inédita no STF. Em 2018, um processo relativo a uma lei semelhante de Serra (ES) chegou à Corte, mas o mérito não foi analisado por questões formais. Não há prazo para que o caso da lei paulistana seja julgado. A decisão dos ministros valerá apenas para São Paulo, mas vai nortear decisões em todos os tribunais do país sobre leis parecidas.
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Publicado em VEJA São Paulo de 22 de março de 2023, edição nº 2833