Continua após publicidade

Choro

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 17h42 - Publicado em 15 out 2011, 00h51

Toca o interfone. O porteiro quer saber se o motoboy da farmácia pode subir. Sim, claro. Daí a pouco soa a campainha da porta de serviço e é ele, um rapaz alto, com o capacete pendurado no braço e a encomenda da farmácia na mão. Tenho de conferir a nota, dar-lhe o cheque, assinar o protocolo, e é tudo; ele sai, vai esperar o elevador no hall, encosto a porta. Só encosto, porque pretendo abrir o pacote e jogar a embalagem na lixeira. Quando abro a porta, ele ainda está lá, e chora alto.

+ Ivan Ângelo: Às vezes complica 

+ Amor à primeira vista, por Matthew Shirts

Vacilo um instante, golpeado pela cena; não tenho coragem de invadir sua intimidade; cerro discretamente a porta, sem fechar, e fico protegido, esperando que o elevador chegue e me liberte daquele estupor, o sofrimento de um desconhecido.

Tento rapidamente me lembrar de algum detalhe do breve momento em que estivemos juntos, algo que me teria escapado ao trocarmos o pacote por papéis, qualquer coisa que me teria avisado de que iria ocorrer algo desconcertante, íntimo, no final daquela relação efêmera e prosaica, um detalhe como mãos trêmulas ou voz embargada. Mesmo que tivesse notado, poderia interpretar tais detalhes como prenúncio de choro, em encontro tão rápido? Sem saber como eram a sua voz ou as suas mãos nos bons e nos maus momentos?

Continua após a publicidade

Não, não houve sinais; reconstruo a cena: abro a porta, rapaz de fino trato e traços, o pacote, a caneta dele, o cheque, o papel para o visto, a caneta de volta, aceita uma água, não obrigado, então obrigado, boa tarde, com licença — e só.

O elevador tarda, tento parecer inaudível, respiração de pessoa escondida. Pela fresta ouço um soluço alto, entrevejo um soco na parede, não um soco com os nós dos dedos, mas um golpe com a lateral da mão fechada, testa encostada na parede. Decido-me: vou lá.

+ Ivan Ângelo: Muitos Prazeres

Uma vez vi meu pai chorando. Não vi, ouvi. Coragem não tive de ir lá, passar a mão na cabeça dele. Creio que não seria isso que faria se tivesse ido lá; teria encostado nele, acho que teria chorado junto. Era menino muito pequeno e estava assustado porque tinha ouvido as duas pancadas com que ele havia matado nosso cãozinho, doente terminal de raiva. Eu estava deitado, meus irmãos dormiam, e eu não conseguia dormir porque desconfiava que aquilo ia acontecer, desconfiava daquele buraco aberto no quintal para plantar um pé de mamão. Ele havia esperado a madrugada a fim de nos poupar de algum sofrimento, mas eu ouvi as pancadas, e o ouvi enterrá- lo, e depois ele entrou na cozinha e ficou lá sem acender a luz, e daí a pouco ouvi os soluços dele, por um tempo que não acabava mais. Era a primeira vez que o via chorar, a primeira vez que via um homem chorar. De manhã ele disse que o cachorro tinha fugido. Fui olhar o mamoeiro plantado e nunca disse a ele que sabia.

Continua após a publicidade

Vou lá, mas fazer o quê? Num segundo ensaio a pergunta ao motoqueiro: posso te ajudar? Depois oferecer uma limonada, talvez; de qualquer forma não deixá-lo descer naquele instante, não seria seguro que ele entrasse de moto no trânsito violento da cidade com aquele transbordamento de si mesmo.

Abro a porta já falando “amigo”, e nesse momento eu o vejo entrar pela porta do elevador com sua dor escondida pelo capacete. Percebo na hora que havia colocado o capacete para que os passageiros não vissem que estivera ou estava chorando. Não atende ao meu chamado, a porta automática se fecha.

Corro a olhá-lo da varanda. Sai do prédio, sobe na sua moto, dá a pedalada de partida do motor e segue ereto, rosto indevassável, como qualquer motoqueiro sem sofrimento. Faz aquele bamboleio na curva e é absorvido de novo pelo anonimato.

 

Publicidade

Essa é uma matéria fechada para assinantes.
Se você já é assinante clique aqui para ter acesso a esse e outros conteúdos de jornalismo de qualidade.

Domine o fato. Confie na fonte.
10 grandes marcas em uma única assinatura digital
Impressa + Digital no App
Impressa + Digital
Impressa + Digital no App

Informação de qualidade e confiável, a apenas um clique.

Assinando Veja você recebe semanalmente Veja SP* e tem acesso ilimitado ao site e às edições digitais nos aplicativos de Veja, Veja SP, Veja Rio, Veja Saúde, Claudia, Superinteressante, Quatro Rodas, Você SA e Você RH.
*Para assinantes da cidade de São Paulo

a partir de R$ 39,90/mês

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.