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Peças da Santa Ifigênia e 30 grupos de WhatsApp: a criação do Inspire, o respirador da USP

Desde março, professores da Poli coordenam uma equipe de 200 pesquisadores, a maioria voluntários, para criar um ventilador de baixo custo

Por Guilherme Queiroz
Atualizado em 17 set 2020, 17h42 - Publicado em 17 set 2020, 16h14

Há cerca de um mês, no dia 13 de agosto, a Anvisa liberava a USP a produzir o respirador Inspire. O projeto inovador foi resultado da união de uma equipe de cientistas brasileiros que queriam criar um aparelho respiratório de baixo custo para ajudar pacientes com a Covid-19. Do sonho inicial à autorização, um trajeto árduo foi percorrido.

Desde março, Marcelo Zuffo, 51, e Raul González Lima, 59, ambos professores da Poli, coordenam juntos a empreitada que criou um ventilador com componentes nacionais. A ideia era que o item custasse aproximadamente R$ 1 000. Deu certo, mas o preço ficou um tanto mais salgado: R$ 4 700. Ainda assim, muito mais barato que outros produtos disponíveis no mercado, que custam a partir de R$ 15 000.

Até a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foram muitos os testes e os passeios pela Rua Santa Ifigênia em busca de componentes. O projeto custou cerca de R$ 7 milhões, dinheiro arrecadado a partir de doações da iniciativa privada. O time contou com cerca de 200 pesquisadores, a maioria deles trabalhando de forma voluntária.

Sair do papel

Tudo começou no dia 19 de março. A diretora da Poli, Liedi Bernucci (a primeira mulher a assumir o cargo), solicitou que os pesquisadores da faculdade desenvolvessem soluções para a crise da Covid-19. “A gente vinha pensando na possibilidade de fazer um ventilador de baixo custo. Me convenceram a tentar apesar das dificuldades que poderíamos ter para aprovação”, lembra Lima.

O projeto foi construído ao redor de um item facilmente encontrado em qualquer ambulância brasileira. O ambu, conhece? É aquele reanimador manual, que substitui o boca a boca para levar oxigênio ao pulmão de um paciente. A ideia parece simples: automatizar o objeto. “É um equipamento de suporte à vida clássico”, diz Zuffo.

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“No dia 21 de março já estávamos trabalhando 8 horas no projeto”, lembra Lima. No terceiro dia a equipe tinha protótipos sendo testados em pulmões artificiais. Os primeiros órgãos vivos vieram na primeira quinzena de abril, em uma parceria com a Faculdade de Medicina Veterinária. “Foram os suínos. Existe uma semelhança com o sistema respiratório humano, eles têm reações respiratórias ainda mais abruptas do que nós, o que ajudou a criar um bom modelo para os estudos clínicos”, comenta o professor Raul Lima.

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Pouco tempo depois o equipamento era colocado pela primeira vez em humanos, no dia 22 de abril. Quatro pacientes do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP foram ventilados com o item e os resultados foram satisfatórios. No dia 15 de maio a equipe pediu a autorização da Anvisa para a fabricação e distribuição do item. 

A liberação veio em 13 de agosto. “Ao longo daqueles meses eles foram pedindo vários testes. Mecânicos, de compatibilidade eletromagnética, análise de riscos, foi algo longo e meticuloso”, lembra Lima.

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Tudo nacional, com destaque para a Santa Ifigênia

“A memória da placa, por exemplo, é fabricada em Atibaia. A bateria é automotiva. A exceção são alguns semicondutores que só são encontrados na China”, diz o professor Marcelo Zuffo. “Uma das premissas do projeto era montar um ventilador que pudesse ser fabricado localmente por conta da queda da cadeia de suprimentos que se verificou nos últimos meses”, complementa Raul.

E aí entra um endereço conhecido pelas suas bugigangas no coração da capital paulista: Rua Santa Ifigênia. “É um polo de inovação”, diz Zuffo. “A gente começou comprando pecinhas lá. Em Tokyo, existe o bairro dos nerds, Akihabara. Nós temos a nossa Akihabara brasileira”.

O professor desbravou as lojas especializadas em componentes específicos para criar os protótipos do Inspire. “Existem por exemplo, lojas de válvulas que estão ali há 60 anos. Eu sempre insisto com os meus alunos que tem que ir lá e meter as caras. É muito rico trocar ideia com o cara que vende aquela mesma peça há tanto tempo. Pena que é uma região tão degradada”, lamenta Marcela, que na semana passada deu outro pulo na Ifigênia para comprar mais alguns itens.

Dinheiro

Logo lá no começo, quando o respirador ainda nem tinha “pernas” próprias, o dinheiro para rodar as engrenagens contou com o apoio dos antigos estudantes da faculdade. “Nós temos na Poli a Associação dos Engenheiros Politécnicos, que congrega nossos ex-alunos. Eles começaram uma campanha com diversas empresas para captar recursos. Teve um dia que eles conseguiram centenas de doadores em 10 horas”, diz Zuffo.

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Além do dinheiro levantado, muitas empresas doaram matéria-prima para o projeto. Plástico, alumínio, baterias e outros materiais vieram em toneladas para um galpão na Cidade Universitária. Até a aprovação na Anvisa, o valor das doações, contando com os materiais (também obtidos com parcerias), alcançou cerca de 7 milhões de reais.

Não faltou gente

Imagine trinta grupos de WhatsApp, lotados de especialistas de diversas áreas, cada um dedicado ao estudo e desenvolvimento de um componente. Foi assim que o Inspire ganhou corpo. Cerca de 200 pesquisadores da USP e de outras instituições (Poli, Faculdade de Saúde Pública, Veterinária, Medicina, Marinha, Senai) se juntaram ao projeto. Dos 7 milhões de reais arrecadados, grande parte foi destinado aos insumos de fabricação, quase todos os envolvidos trabalharam de forma voluntária. “Tínhamos alguma contratação apenas no grupo que elaborava as placas e circuitos”, diz.

Como funciona

“Existe um cabo de guerra entre a Covid e o ventilador para pegar os alvéolos”, explica Marcelo Zuffo. Os alvéolos são pequenas estruturas redondas responsáveis pela troca de gases entre o corpo e o ambiente, levando oxigênio ao sangue.

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“Uma das estratégias é manter aberto os alvéolos: existe uma alteração no tecido pulmonar, que fica inflamado [com a Covid-19]. O ventilador tem a capacidade de recrutar alvéolos e depois mantê-los abertos, sem deixar a pressão no final da inspiração cair muito”, diz Raul Lima.

Para alcançar o objetivo, são várias as estratégias: o equipamento controla digitalmente variáveis como a frequência respiratória, monitora a pressão nas vias aéreas, identifica o nível de contração do diafragma e pode dar início a um ciclo respiratório automaticamente. Tudo ajustável pelos botões do equipamento e sua tela touch.

Produção

A vez agora é a da fábrica. Quem está montando o item é o Centro Tecnológico da Marinha, que fica dentro da Cidade Universitária, no Butantã. 1 000 unidades estão saindo do forno. “A faculdade de Saúde Pública está nos ajudando a fazer a triagem para instituições que precisam do equipamento”, explica Raul.

“A gente já recebeu 4 toneladas de alumínio”, diz Zuffo. Os insumos são recebidos pela Poli, que também faz a checagem dos itens. Depois de verificarem que está tudo em ordem, os componentes são encaminhados para a Marinha, que monta tudo.

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O aprimoramento do produto, no entanto, está longe de acabar. Dez respiradores seguem no Hospital do Coração. “Estamos tendo novas ideias. Mas cada coisa que queremos incluir ou mudar precisamos de autorização da Anvisa. O que não desanima, seguimos aqui”, finaliza Zuffo.

 

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