O drama de famílias que recorreram ao novo programa de internação
Governo estadual pôs em prática, na semana passada, o tratamento involuntário para os viciados em crack
Mais do que qualquer estatística relacionada ao aumento do consumo de crack em São Paulo, o retrato da dimensão devastadora do problema estava no rosto ansioso e no olhar triste de dezenas de mulheres à espera, na semana passada, de atendimento no Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod), no Bom Retiro. Ali, o governo estadual, com base na legislação federal aprovada sobre o assunto desde 2001, pôs em prática o novo programa de internação involuntária para os viciados, quando recomendada por médicos e desejada por familiares, e compulsória, nas situações em que o dependente já não consegue compreender o que se passa ao seu redor e corre sério risco de morrer.
Nesses casos mais delicados, um advogado ou promotor encaminha o pedido a um juiz de plantão no Cratod, que pode ordenar (ou não) o início do tratamento à força. Se a resposta for “sim”, os pacientes serão encaminhados a centros especializados, que contam com 991 leitos em São Paulo (352 deles na capital), somando-se as redes estadual e municipal. Outras 66 vagas devem ser criadas nas próximas semanas, segundo promessa do governador Geraldo Alckmin. Até a última quinta (24), o novo serviço no Cratod havia recebido 127 pessoas. Esses atendimentos resultaram em dezoito internações involuntárias e apenas uma compulsória. Quase todas as pessoas que procuraram o centro eram mulheres. A maioria, de origem bem humilde. Em comum, elas traziam histórias tocantes da destruição de filhos, marido e irmãos — causando o desmoronamento de lares e famílias — em consequência do vício demoníaco.
Batiam àquela porta como uma das últimas esperanças de recuperação de seus parentes, depois de anos de tentativas frustradas e incontáveis recaídas. O estado de desespero e os pedidos de ajuda dessas pessoas são um forte argumento para justificar a necessidade de internação contra a vontade dos usuários. Há, é verdade, os que se opõem à medida, muitos deles, como definiu o jornalista Rogério Gentile em um artigo publicado na Folha de S.Paulo, com “o discurso politicamente correto dos românticos do crack”, imaginando que os zumbis que perambulam dia e noite pelas ruas da cidade, devastados pela droga, ainda têm alguma condição de cuidar da própria vida.
No entendimento da maioria dos estudiosos do problema, a medida representa o primeiro grande passo para oferecer um tratamento digno e uma chance de salvação aos que forem internados. “Países como Suécia e Estados Unidos dispõem de dispositivos semelhantes”, afirma o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, fundador da Uniad — serviço na Vila Clementino especializado em drogas, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) — e uma das maiores referências sobre o assunto no Brasil. “Há casos em que a família não tem alternativa”, completa. Segundo dados recentes da Unifesp, um em cada 100 adultos fez uso da droga nos últimos doze meses. Uma “pipada” (gíria para se referir ao fumo da droga) basta para desencadear o vício, e três anos de consumo são suficientes para deixar o usuário gravemente doente.
Como efeitos colaterais, há ainda a dissolução dos laços familiares, o envolvimento em crimes e a queima total de bens, próprios e alheios, vendidos a qualquer preço, para bancar o consumo da pedra. Instáveis e violentos, os escravos do crack colecionam histórias de sumiços, roubos, facadas, tentativas de suicídio e agressões a filhos e parceiras. Nas reportagens abaixo, algumas dessas esposas, mães e irmãs contam detalhes dos dramas que as levaram ao Cratod.
+ Em vídeo: ex-viciados em crack falam sobre sua recuperação
+ “Não quero que meu pai morra na rua”
+ “Perdi tudo por causa do vício do meu garoto”
+ “Meu irmão sofreu quatro overdoses”
+ “Mãe, posso sair para fumar maconha?”
+ “Resgatei meu primogênito do viaduto”
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+ “Meu marido fuma na frente da nossa menina de 6 anos de idade”
+ “Ela tremia e tinha taquicardia”