Febre eletrônica: festas itinerantes se multiplicam na cidade
Noites de música “techno” ressurgem após a pandemia, viram bons negócios para DJs e empresários e atraem um público jovem, diverso e cada vez mais numeroso
Na cena meio pós-apocalíptica, jovens dançam até o sol raiar entre escombros de uma fábrica abandonada no Centro de São Paulo. A trilha sonora que embala a pista é a música eletrônica. A iluminação em cores neon completa o ambiente catártico da Mamba Negra, festa que naquela noite sacudia a Fabriketa, um espaço no Brás.
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A cada novo encontro, a localização muda, mas a batida é a mesma. “É onde me sinto muito mais à vontade para usar roupas que gosto e experimentar estéticas diferentes”, diz a atendente e criadora de conteúdo Rebecca Smalls, 22. Nos últimos meses, ela passou a ir a eventos itinerantes como a Mamba Negra, a ODD, a Carlos Capslock e a Blum e se apaixonou pela cena.
“Mudei meu visual e me descobri”, conta. A cena de festas eletrônicas independentes não é nova em São Paulo, mas ganhou fôlego recentemente. Ela começou a se aquecer no início dos anos 2010. Pioneiro no gênero, o DJ Renato Cohen foi um dos primeiros a ter reconhecimento global na área.
Em 2013, o jornal inglês Financial Times o elegeu um dos 25 brasileiros mais influentes do mundo, ao lado de Neymar e Gisele Bündchen. “Na época, não existia uma cena como a atual. Era restrita a clubes e inferninhos. Os DJs eram residentes (fixos) das casas. Depois é que surgiram as festas itinerantes”, ele diz. “Mudou por causa da internet, que consegue reunir muita gente”, afirma.
Hoje a cidade vê a consolidação dos projetos criados na última década. Além das festas citadas, outras que se destacam são a Selvagem, a Gop Tun e a Tesãozinho Inicial. Todas celebram uma explosão de público nos últimos meses, após a volta dos eventos presenciais com a vacina contra a Covid-19.
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A Gop Tun, por exemplo, começou em 2011 com encontros para 300 pessoas. Hoje, recebe 2 500 frequentadores em uma noite normal. Em abril, inaugurou um novo formato, o Gop Tun Festival, que teve 7 000 convidados. O evento, no Estádio do Canindé, reuniu 43 artistas em quatro pistas.
O mesmo ocorreu com a Selvagem, também criada em 2011, que se expandiu para o Rio de Janeiro e criou o Carnaval Selvagem para 8 000 festeiros — inicialmente, ela recebia 400 pessoas.
A Mamba Negra também voltou com fervor após o controle da pandemia. Quando nasceu, em 2013, reunia cerca de 400 fãs. Após a retomada das festas, em dezembro de 2021, o número subiu para 4 000. O salto se deve em parte a um burburinho na mídia e nas redes sociais sobre as festas. A Mamba Negra chegou a ser citada por uma participante do Big Brother Brasil 2022, na Globo.
“As pessoas estavam com saudade, viviam comentando na internet e esperando a volta dos encontros”, diz Carol Schutzer, a Cashu, cocriadora da festa. “Quando voltou, quem tinha ouvido falar e nunca tinha ido resolveu conhecer. Teve um boom de público, muita gente nova”, conta.
O termo “techno” normalmente é usado para se referir a esse tipo de evento, mas a rigor define apenas um gênero específico da música eletrônica, de ritmo acelerado e melodia monótona. As festas abrangem um leque maior de estilos, que inclui misturas musicais e varia de acordo com os BPMs (batidas por minuto) dos DJs.
Os ingressos chegam a 200 reais, mas políticas adotadas pelos organizadores garantem entrada gratuita a pessoas trans, com deficiência ou em vulnerabilidade financeira. “O ‘techno’ representa a diversidade. É um lugar político”, afirma Rebecca.
Os paulistanos preparam looks para a ocasião. A maioria veste trajes pretos, em uma estética grunge ou futurista, com rasgos propositais, penteados extravagantes e indispensáveis óculos escuros. Mas não existe código de vestimenta, a regra é ser você mesmo. É também comum a “montação”, ou seja, fantasiar-se com trajes criativos e bastante elaborados (veja ao final da matéria).
Para o cocriador da Selvagem, Augusto Olivani, conhecido como Trepanado, o boom dos eventos se divide em dois momentos. “Entre outubro de 2021 e abril passado, teve uma euforia completa. Os ingressos esgotavam muito rápido, as pessoas queriam tirar o atraso do confinamento”, ele conta. “Depois, surgiram novos eventos. Com a maior oferta, o pessoal deixa para decidir em cima da hora”, diz.
“Houve um claro aumento do público jovem. Quem entrou na pandemia com 16 anos se tornou maior de idade e passou a frequentar as festas”, acrescenta DJ Davis, um dos fundadores da ODD.
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Além da procura pelas festas, também aumentou a busca por cursos de DJ. O Senac-SP, que oferece oficina e formação na área, viu o impacto da tendência. Segundo um levantamento da instituição, o interesse cresceu mais de 80% neste ano em relação a 2021. Dos últimos quatro anos, 2022 teve o maior número de alunos do segmento no estado — houve um aumento de 23% em comparação a 2019.
A fundadora e organizadora da Blum, Nicolli Penteado, conhecida como Nikkatze, começou a dar aulas de DJ durante a pandemia. Hoje, ensina a mais de 100 alunos e tem na atividade uma das principais fontes de renda. “Na pandemia, usamos muito a internet. Muita gente quenão entendia de techno começou a acessar as lives e a acompanhar o movimento”, ela explica.
Com mais público, vieram mais responsabilidades. Entre elas, a necessidade de controlar o uso de drogas, um hábito comum nas noites techno. “A redução de danos se tornou uma necessidade”, diz Nikkatze. “Vimos que poderíamos perder o controle do público. O consumo de substâncias não é legalizado, mas precisamos entender que ele vai acontecer e aceitar que é um problema de saúde pública”, diz.
Na Blum, a estratégia consiste em uma estrutura — apelidada de T.E.C.O., ou Tenda Especializada em Cuidar da sua Onda — com ambulatório, enfermeiro, psiquiatra e psicólogo. “Não é questão de fazer apologia. É aceitar que existe o problema e evitar que se torne algo pior”, completa a DJ.
As festas ainda oferecem água e frutas ao amanhecer — é comum deparar com festeiros comendo bananas e mexericas às 7 da manhã em meio à pista. Outro obstáculo tem sido levar os eventos aos espaços públicos. “O processo com a prefeitura está dificultoso ‘nas entrelinhas’”, afirma Pedro Athie, membro do coletivo organizador da Tesãozinho Inicial. “Há uma burocracia para aprovar os eventos e eles podem negar o pedido sem dar justificativas”, ele diz.
Desde o ano passado, a festa só é realizada em ambientes fechados. Nas redes sociais, frequentadores “das antigas” também reclamam que o sucesso levou a uma mudança da proposta original das festas para a adoção de modelos “mais comerciais”. Os organizadores e DJs rebatem o argumento e dizem que a curadoria musical se mantém a mesma.
“Os estilos se mesclaram com o tempo, é difícil dizer onde acaba uma coisa e começa outra”, diz Renato Cohen. “Não acho que as festas são baseadas só em gênero musical. É a estética, o jeito de se comportar, a linguagem”, afirma.
Caio Taborda, um dos fundadores da Gop Tun, também acredita que a proposta musical não mudou desde a criação. “A festa tem credibilidade e carinho do público porque enxerga o quão real o movimento é. Ela acredita nisso e se empenha para ser um agente transformador da cena”, ele diz.
Além do evento, a Gop Tun se tornou um selo musical, com 25 artistas e 36 discos lançados. A marca é um exemplo de como a cena se tornou um polo criativo de cultura em São Paulo — e de como a brincadeira de fazer festas independentes virou um grande negócio na cidade.
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Moda e “montação” na pista
Há quem recorra ao pretinho básico, mas o público da cena eletrônica se diferencia pela “montação”. Tanto os artistas que se apresentam no palco quanto os festeiros na pista usam e abusam da criatividade para apresentar os looks mais inusitados da noite.
“Ao conviver nesses espaços com pessoas que experimentam no visual, consegui acessar a estética com a qual me identifico”, diz a frequentadora Rebecca Smalls.
Um dos amigos com quem vai às festas é o modelo e técnico de suporte Leonardo Santos, 22. “Gosto de mesclar as roupas. Na Mamba, vou meio gótico suave. Nessas festas você tem total liberdade para expressar a forma como gosta de se vestir, se portar e ser”, ele afirma.
Festas em dezembro
Sangramuta — Sangrita Fimdyanus Delash. No Estúdio Lâmina, Av. São João, 108 — 41 — Centro Histórico de São Paulo. Sex. (2), 23h/7h. A partir de R$ 20. shotgun.live
Blum Festival Waverão. Na Fabriketa, R. do Bucolismo, 81 — Brás, São Paulo. Sáb. (3), 23h/9h. De R$ 80 a R$ 200. shotgun.live
Festa de Lançamento Gop Tun Festival 2023. R. Dr. Moisés Kahan, 136 — Várzea da Barra Funda. Sáb. (3), 20h. De R$ 70 a R$ 250. ingresse.com
Selvagem 10 Anos — SP. Barra Funda, São Paulo. Sáb. (17), 23h59h/8h. A partir de R$ 100. ingresse.com
Mamba Negra 1000x Mais Eu Mesma. Na Fabriketa, R. do Bucolismo, 81 — Brás, São Paulo. Sáb. (17), 21h/10h. A partir de R$ 85. shotgun.live
Tesãozinho Inicial na Rua. Local a ser anunciado. Dom. (18).
Publicado em VEJA São Paulo de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818
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