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Febre eletrônica: festas itinerantes se multiplicam na cidade

Noites de música “techno” ressurgem após a pandemia, viram bons negócios para DJs e empresários e atraem um público jovem, diverso e cada vez mais numeroso

Por Mattheus Goto
2 dez 2022, 06h00

Na cena meio pós-apocalíptica, jovens dançam até o sol raiar entre escombros de uma fábrica abandonada no Centro de São Paulo. A trilha sonora que embala a pista é a música eletrônica. A iluminação em cores neon completa o ambiente catártico da Mamba Negra, festa que naquela noite sacudia a Fabriketa, um espaço no Brás.

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A cada novo encontro, a localização muda, mas a batida é a mesma. “É onde me sinto muito mais à vontade para usar roupas que gosto e experimentar estéticas diferentes”, diz a atendente e criadora de conteúdo Rebecca Smalls, 22. Nos últimos meses, ela passou a ir a eventos itinerantes como a Mamba Negra, a ODD, a Carlos Capslock e a Blum e se apaixonou pela cena.

Imagem mostra espaço com luzes laranjas e multidão
Explosão do techno: cena eletrônica atinge novos patamares. (Cognição Eletrônica/Divulgação)

“Mudei meu visual e me descobri”, conta. A cena de festas eletrônicas independentes não é nova em São Paulo, mas ganhou fôlego recentemente. Ela começou a se aquecer no início dos anos 2010. Pioneiro no gênero, o DJ Renato Cohen foi um dos primeiros a ter reconhecimento global na área.

Em 2013, o jornal inglês Financial Times o elegeu um dos 25 brasileiros mais influentes do mundo, ao lado de Neymar e Gisele Bündchen. “Na época, não existia uma cena como a atual. Era restrita a clubes e inferninhos. Os DJs eram residentes (fixos) das casas. Depois é que surgiram as festas itinerantes”, ele diz. “Mudou por causa da internet, que consegue reunir muita gente”, afirma.

Imagem mostra DJ de camisa estampada tocando em palco
“Houve um boom, os ingressos esgotavam muito rápido. Então surgiram novas festas.” Augusto Olivani, DJ e cocriador da Selvagem. (Cognição Eletrônica/Divulgação)

Hoje a cidade vê a consolidação dos projetos criados na última década. Além das festas citadas, outras que se destacam são a Selvagem, a Gop Tun e a Tesãozinho Inicial. Todas celebram uma explosão de público nos últimos meses, após a volta dos eventos presenciais com a vacina contra a Covid-19.

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A Gop Tun, por exemplo, começou em 2011 com encontros para 300 pessoas. Hoje, recebe 2 500 frequentadores em uma noite normal. Em abril, inaugurou um novo formato, o Gop Tun Festival, que teve 7 000 convidados. O evento, no Estádio do Canindé, reuniu 43 artistas em quatro pistas.

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Imagem mostra quatro homens em quarto, sentados
“A festa tem credibilidade do público e se empenha para ser um agente transformador da cena.” Caio Taborda, da Gop Tun, de branco na foto. (Leo Martins/Veja SP)

O mesmo ocorreu com a Selvagem, também criada em 2011, que se expandiu para o Rio de Janeiro e criou o Carnaval Selvagem para 8 000 festeiros — inicialmente, ela recebia 400 pessoas.

A Mamba Negra também voltou com fervor após o controle da pandemia. Quando nasceu, em 2013, reunia cerca de 400 fãs. Após a retomada das festas, em dezembro de 2021, o número subiu para 4 000. O salto se deve em parte a um burburinho na mídia e nas redes sociais sobre as festas. A Mamba Negra chegou a ser citada por uma participante do Big Brother Brasil 2022, na Globo.

“As pessoas estavam com saudade, viviam comentando na internet e esperando a volta dos encontros”, diz Carol Schutzer, a Cashu, cocriadora da festa. “Quando voltou, quem tinha ouvido falar e nunca tinha ido resolveu conhecer. Teve um boom de público, muita gente nova”, conta.

O termo “techno” normalmente é usado para se referir a esse tipo de evento, mas a rigor define apenas um gênero específico da música eletrônica, de ritmo acelerado e melodia monótona. As festas abrangem um leque maior de estilos, que inclui misturas musicais e varia de acordo com os BPMs (batidas por minuto) dos DJs.

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Os ingressos chegam a 200 reais, mas políticas adotadas pelos organizadores garantem entrada gratuita a pessoas trans, com deficiência ou em vulnerabilidade financeira. “O ‘techno’ representa a diversidade. É um lugar político”, afirma Rebecca.

Imagem mostra cinco pessoas em pé, vestindo roupas coloridas
“O techno representa a diversidade. As festas são um lugar político.” Rebecca Smalls, criadora de conteúdo, de branco na foto. (Ligia Skowronski/Divulgação)

Os paulistanos preparam looks para a ocasião. A maioria veste trajes pretos, em uma estética grunge ou futurista, com rasgos propositais, penteados extravagantes e indispensáveis óculos escuros. Mas não existe código de vestimenta, a regra é ser você mesmo. É também comum a “montação”, ou seja, fantasiar-se com trajes criativos e bastante elaborados (veja ao final da matéria).

Para o cocriador da Selvagem, Augusto Olivani, conhecido como Trepanado, o boom dos eventos se divide em dois momentos. “Entre outubro de 2021 e abril passado, teve uma euforia completa. Os ingressos esgotavam muito rápido, as pessoas queriam tirar o atraso do confinamento”, ele conta. “Depois, surgiram novos eventos. Com a maior oferta, o pessoal deixa para decidir em cima da hora”, diz.

“Houve um claro aumento do público jovem. Quem entrou na pandemia com 16 anos se tornou maior de idade e passou a frequentar as festas”, acrescenta DJ Davis, um dos fundadores da ODD.

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Além da procura pelas festas, também aumentou a busca por cursos de DJ. O Senac-SP, que oferece oficina e formação na área, viu o impacto da tendência. Segundo um levantamento da instituição, o interesse cresceu mais de 80% neste ano em relação a 2021. Dos últimos quatro anos, 2022 teve o maior número de alunos do segmento no estado — houve um aumento de 23% em comparação a 2019.

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A fundadora e organizadora da Blum, Nicolli Penteado, conhecida como Nikkatze, começou a dar aulas de DJ durante a pandemia. Hoje, ensina a mais de 100 alunos e tem na atividade uma das principais fontes de renda. “Na pandemia, usamos muito a internet. Muita gente quenão entendia de techno começou a acessar as lives e a acompanhar o movimento”, ela explica.

Com mais público, vieram mais responsabilidades. Entre elas, a necessidade de controlar o uso de drogas, um hábito comum nas noites techno. “A redução de danos se tornou uma necessidade”, diz Nikkatze. “Vimos que poderíamos perder o controle do público. O consumo de substâncias não é legalizado, mas precisamos entender que ele vai acontecer e aceitar que é um problema de saúde pública”, diz.

Imagem mostra mulher de camisa rosa, com calça preta
“É preciso aceitar que o problema (do consumo de drogas nas festas) existe e evitar que se torne algo pior.” Nicolli Penteado, fundadora da Blum. (Ligia Skowronski/Divulgação)

Na Blum, a estratégia consiste em uma estrutura — apelidada de T.E.C.O., ou Tenda Especializada em Cuidar da sua Onda — com ambulatório, enfermeiro, psiquiatra e psicólogo. “Não é questão de fazer apologia. É aceitar que existe o problema e evitar que se torne algo pior”, completa a DJ.

As festas ainda oferecem água e frutas ao amanhecer — é comum deparar com festeiros comendo bananas e mexericas às 7 da manhã em meio à pista. Outro obstáculo tem sido levar os eventos aos espaços públicos. “O processo com a prefeitura está dificultoso ‘nas entrelinhas’”, afirma Pedro Athie, membro do coletivo organizador da Tesãozinho Inicial. “Há uma burocracia para aprovar os eventos e eles podem negar o pedido sem dar justificativas”, ele diz.

Desde o ano passado, a festa só é realizada em ambientes fechados. Nas redes sociais, frequentadores “das antigas” também reclamam que o sucesso levou a uma mudança da proposta original das festas para a adoção de modelos “mais comerciais”. Os organizadores e DJs rebatem o argumento e dizem que a curadoria musical se mantém a mesma.

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“Os estilos se mesclaram com o tempo, é difícil dizer onde acaba uma coisa e começa outra”, diz Renato Cohen. “Não acho que as festas são baseadas só em gênero musical. É a estética, o jeito de se comportar, a linguagem”, afirma.

Caio Taborda, um dos fundadores da Gop Tun, também acredita que a proposta musical não mudou desde a criação. “A festa tem credibilidade e carinho do público porque enxerga o quão real o movimento é. Ela acredita nisso e se empenha para ser um agente transformador da cena”, ele diz.

Além do evento, a Gop Tun se tornou um selo musical, com 25 artistas e 36 discos lançados. A marca é um exemplo de como a cena se tornou um polo criativo de cultura em São Paulo — e de como a brincadeira de fazer festas independentes virou um grande negócio na cidade.

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Moda e “montação” na pista

Há quem recorra ao pretinho básico, mas o público da cena eletrônica se diferencia pela “montação”. Tanto os artistas que se apresentam no palco quanto os festeiros na pista usam e abusam da criatividade para apresentar os looks mais inusitados da noite.

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“Ao conviver nesses espaços com pessoas que experimentam no visual, consegui acessar a estética com a qual me identifico”, diz a frequentadora Rebecca Smalls.

Um dos amigos com quem vai às festas é o modelo e técnico de suporte Leonardo Santos, 22. “Gosto de mesclar as roupas. Na Mamba, vou meio gótico suave. Nessas festas você tem total liberdade para expressar a forma como gosta de se vestir, se portar e ser”, ele afirma.

Festas em dezembro

Sangramuta — Sangrita Fimdyanus Delash. No Estúdio Lâmina, Av. São João, 108 — 41 — Centro Histórico de São Paulo. Sex. (2), 23h/7h. A partir de R$ 20. shotgun.live

Blum Festival Waverão. Na Fabriketa, R. do Bucolismo, 81 — Brás, São Paulo. Sáb. (3), 23h/9h. De R$ 80 a R$ 200. shotgun.live

Festa de Lançamento Gop Tun Festival 2023. R. Dr. Moisés Kahan, 136 — Várzea da Barra Funda. Sáb. (3), 20h. De R$ 70 a R$ 250. ingresse.com

Selvagem 10 Anos — SP. Barra Funda, São Paulo. Sáb. (17), 23h59h/8h. A partir de R$ 100. ingresse.com

Mamba Negra 1000x Mais Eu Mesma. Na Fabriketa, R. do Bucolismo, 81 — Brás, São Paulo. Sáb. (17), 21h/10h. A partir de R$ 85. shotgun.live

Tesãozinho Inicial na Rua. Local a ser anunciado. Dom. (18).

Publicado em VEJA São Paulo de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818

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