Dora Mourão: “A Cinemateca é um patrimônio que precisa de continuidade”
Diretora-geral da Cinemateca Brasileira fala sobre o acervo de cópias digitais, o projeto de restauração de filmes e o diálogo com o governo Lula
Desde que assumiu a direção-geral da Cinemateca Brasileira, em março de 2022, Dora Mourão, 76 anos, se mostra cada vez mais empenhada em fazer tudo o que está ao seu alcance.
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E isso vai desde a criação de grandes projetos que visam a restaurar e duplicar o acervo de filmes antigos até cuidar do jardim da acolhedora sede de tijolinhos, na Vila Mariana. Dora celebra a procura do público e a pluralidade na programação das salas, mas não baixa a guarda no que diz respeito ao futuro daquele que considera um patrimônio nacional.
A programação da Cinemateca tem sido cada vez mais plural. Isso acontece desde a reabertura, com filmes do Mojica. Essa é uma das marcas da sua gestão?
A marca é trazer diversidade. Estamos em um momento em que o cinema está com dificuldade de público. Não é que nós queiramos cobrir as dificuldades das salas comerciais, mas a nossa preocupação é que os jovens, principalmente, tenham acesso a várias cinematografias para que entendam o que é o cinema na tela grande. É claro que damos visibilidade ao cinema clássico, mas não só ele. Interagimos a programação com obras contemporâneas, que também são fundamentais para nós.
Como define a visão estratégica da Cinemateca quanto à preservação e promoção do patrimônio cinematográfico nacional?
Todo filme brasileiro que é produzido com dinheiro público precisa entregar uma cópia para a Cinemateca. Essa é a função dela: preservação da memória. Só que não adianta preservar a memória sem difundir o acervo que temos, e é aí que entra a nossa programação diversa. Também trazemos filmes que estão fora do acervo. Uma das nossas últimas sessões na área externa foi com o documentário Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho. Tivemos um público de 500 pessoas. E Kleber vai nos doar uma cópia em 35 mm, o que é algo que não vem acontecendo muito.
A grande maioria das cópias de filmes que vocês recebem hoje é digital?
Sim, o que é um problema, pois ainda não existe o domínio da tecnologia que faça com que tenhamos a certeza de quanto tempo essa cópia digital vai durar. Mas é mais caro filmar em película. O filme está caríssimo. Inclusive, dentro do Projeto Viva Cinemateca, que é patrocinado pelo Instituto Cultural Vale, Shell e Itaú Unibanco, recentemente compramos mais de 400 rolos de película para a recuperação e a duplicação do nosso acervo em nitrato de celulose (esse material, que é extremamente delicado e demanda atenção especial, já provocou incêndios em parte do acervo da Cinemateca, sendo o último deles em 2021). São filmes bem antigos, que vão até os anos 1940 e serão ajustados às condições adequadas para serem difundidos.
“Ainda estamos esperando a aprovação do nosso orçamento para o ano que vem. E não saber se o orçamento será liberado na sua totalidade é um terror”
Além da entrada de patrocinadores para o Projeto Viva Cinemateca, como está o diálogo com o Ministério da Cultura e o governo federal?
Hoje existe um diálogo. A Cinemateca está vinculada à Secretaria do Audiovisual. Há uma relação muito tranquila com a Joelma Gonzaga, secretária do Audiovisual, e especialmente com Daniela Fernandes, diretora de Preservação e Difusão Audiovisual. Eu mando WhatsApp e ela responde de imediato, e isso nos tranquiliza, pois temos um interlocutor. Mas a luta continua. No momento, ainda estamos esperando a aprovação do nosso orçamento para o ano que vem pelo Congresso Nacional. E não saber se o orçamento será liberado na sua totalidade é um terror. A briga pela captação está mais acirrada. Nós já temos um valor definido no contrato de gestão com o MinC, mas também somos obrigados a captar mais recursos para o projeto dos nitratos, por exemplo. Agora, é óbvio que uma cinemateca não é a mesma coisa que a produção de um filme. É um patrimônio que precisa de continuidade.
Vocês ainda lidam com as consequências do período em que ficaram fechados e também do último incêndio?
A sede da Cinemateca ficou fechada por um ano e meio após o corte do governo, em 2020. O susto foi muito grande. Quando retornamos, fizemos o diagnóstico e estamos até hoje lutando. Alguns equipamentos não voltaram a funcionar. Também estamos praticamente sem espaço na Vila Mariana, pois tudo o que foi tirado da Vila Leopoldina após a enchente de 2020 e o incêndio de 2021 veio para cá. O prédio da Leopoldina, que pertence ao MinC, está sem uso. Precisamos decidir o que fazer com aquele espaço sem que onere o orçamento, mas não há previsão de construirmos algo lá. Na sede, possíveis projetos de ampliação serão feitos com captação.
Sobre o público que frequenta a Cinemateca, sente que a geração de jovens está cada vez mais presente?
Nós temos totens onde as pessoas deixam seus comentários e a gente analisa toda semana. A grande maioria dos comentários é sobre o espaço e a diversidade da programação. Notamos muito a presença de espectadores jovens, seja no dia a dia ou em eventos como a Mostra SP. É claro que o fato de as sessões serem gratuitas ajuda, mas há também a oferta da programação para diversos nichos.
A Cinemateca se tornou um novo polo de cinema na cidade?
Pelo público de 2023, já podemos falar isso. Só de espectadores, foram 72 000. E, ao todo, foram mais de 200 000 visitantes.
Além da preservação do acervo, o que está em seus planos para o futuro?
Já iniciamos neste ano e pretendemos continuar com a programação de cursos, porque a Cinemateca sempre foi um espaço de formação. Queremos dar um curso sobre preservação e restauro com um especialista da área que esteve envolvido no projeto de outras cinematecas no mundo, por exemplo. Isso é muito importante.
Está otimista com os próximos anos?
Eu quero e preciso estar otimista. É uma bucha de canhão, mas é uma bucha boa. É um legado que estamos deixando. Nunca sabemos o que vai acontecer no Brasil, mas estamos criando as bases necessárias para que essa continuidade não seja tão descontínua. É para isso que estou aqui. Vou lutar para que a Cinemateca não tenha mais tantos sustos como nos últimos anos.
Publicado em VEJA São Paulo de 22 de dezembro de 2023, edição nº 2873