Kleber Mendonça Filho: “Não é justo julgar o cinema nacional pelas sabotagens que ele sofreu”

Prestes a lançar 'Retratos Fantasmas', cineasta fala sobre impacto da verticalização em São Paulo e a retomada da política de cultura no governo Lula

Por Barbara Demerov
18 ago 2023, 06h00
Kleber Mendonça Filho, cineasta posta em área aberta
Kleber Mendonça Filho: “O respeito ao artista no Brasil vai voltar” (Victor Juca/Divulgação/Divulgação)
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Kleber Mendonça Filho, diretor de Aquarius e Bacurau, está em nova maratona. Seu mais recente longa, Retratos Fantasmas, acaba de ser exibido no Festival de Gramado e chega ao circuito comercial em 24 de agosto.

Ele viaja pelas memórias de Recife, sua cidade natal, e pelo próprio passado. Suas ligações com o cinema resultam em um documentário que ecoa com a situação atual de capitais como São Paulo, onde prédios dominam a paisagem enquanto espaços culturais lutam para sobreviver.

Retratos Fantasmas fala sobre o impacto dos cinemas e do Centro na memória de Recife. Essa é uma realidade que também podemos transportar para São Paulo?
É uma realidade mundial. Aplicável a lugares onde o mercado tem uma ação forte. O que vemos em São Paulo tem muitos paralelos com Recife. O que acontece na Cracolândia, por exemplo, é um problema muito grave que eu associo à cidade de São Paulo, fruto dos desdobramentos da desativação do Centro. No caso de Recife, São Paulo e Rio, especialmente após a pandemia, há uma percepção de que o Centro morreu. Mas o Centro está vivíssimo.

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Essa também é a sua história pessoal. Como conseguiu fazer com que o filme ganhasse apelo coletivo?
A sua história, a minha, em algum momento elas chegam a uma encruzilhada onde se atrelam à história de uma cidade. Se você mora em São Paulo, inevitável que sua trajetória se misture aos espaços, às manifestações políticas e à destruição que ocorre aos poucos, através de novos empreendimentos imobiliários que tendem a demolir o que existia antes. Tudo faz parte de uma história física que acaba te impactando. Se você quer contar sua própria história, acaba virando algo natural. Eu ia dizer “escrever”, mas eu não escrevi esse filme. Ele foi escrito durante a montagem, durante as minhas narrações.

Estamos a poucos metros do Anexo Itaú Augusta, que quase foi demolido para se tornar um prédio. Acha que o caso virou um exemplo de resistência?
Sim, porque é muito mais fácil, hoje, derrubar e fazer um prédio. Mas os ganhos serão temporários. É importante que a cidade veja o efeito duradouro de ter uma sala de convívio. O cinema tem um impacto positivo na rua, na calçada. É isso o que eu defendo. E não acho que é inviável comercialmente. Muitas vezes é inviável ter um cinema num shopping, onde as taxas são altíssimas. Mas é só uma lógica de cidade que já foi implantada na cabeça das pessoas.

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Você é curador de cinema do Instituto Moreira Salles (IMS), na Avenida Paulista. O que considera essencial ao montar uma programação?
É uma sala que fica em um centro cultural desenhado para ser um espaço aberto para a rua. Entra quem quer. O excelente desafio é montar uma seleção numa cidade que já tem programações variadas e, ainda assim, ser relevante. A programação nunca fecha os olhos para o cinema contemporâneo, mas a gente não vai dar todos os horários a um mesmo filme — isso nunca vai acontecer no IMS. A gente defende filmes e o foco é trazer o inesperado. Ele pode vir de acervos de dentro ou fora do Brasil ou cópias novas, porque essa é a essência de uma sala de repertório. É bem fácil a programação de uma sala ficar automática: o mercado te oferece tudo de bandeja e aí entra o que normalmente entraria.

Não sou contra o ‘Barbenheimer’, mas, a forma como tomou de assalto tantas salas, não acho isso bom. A diversidade tem como ser calibrada de maneira equilibrada

Sente que, com a dominância dos cinemas de shopping, é cada vez mais importante reforçar programações autorais?
Sim. Barbie é um fenômeno mundial, mas chegou a 2 000 salas do Brasil. É como se tivessem jogado um cobertor num país inteiro. Eu não sou contra Barbie nem contra o Barbenheimer — um fenômeno bem interessante —, mas, a forma como tomou de assalto tantas salas, não acho isso bom. A diversidade tem como ser calibrada de maneira equilibrada. Passei um tempo na França e eles exibem todos os filmes, mas não vejo uma ocupação tão maciça. Existem leis para proteger o mercado. Aliás, eu fui ver Barbie e Oppenheimer e gostei de ambos.

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Como manter o público desses filmes e fazê-lo se interessar pelo cinema nacional e autoral?
Com uma química que todo mundo está atrás, mas ela não é exata: é a oferta de bons filmes. Mas o que é um bom filme? Aquele que gera energia, interesse. Meu primeiro filme, Crítico (2008), foi visto por 790 pessoas nos cinemas. Isso não muda em nada a minha relação com ele. Meus outros projetos geraram uma energia e foram muito bem vistos. É o que todos nós queremos. É ruim você cair num vácuo e ninguém escutar. Estou feliz com o que eu acho que está acontecendo com Retratos; há uma energia em torno dele. E acho que, talvez, ele se beneficie do movimento Barbenheimer.

Estamos no oitavo mês do governo Lula. Dá para sentir efeitos na indústria cultural?
O primeiro impacto é a volta da dignidade. Você não tem mais de afirmar “eu sou artista” e esperar confronto. O governo está reconectando as máquinas que foram desconectadas desde o governo Temer. O desrespeito à cultura começou naquele governo e continuou com Bolsonaro. Senti isso viajando pelo exterior, porque tiveram algumas situações nas quais era o bem recebido e os representantes ficavam na mesa mais distante. Eu era o VIP e eles eram o pessoal da embaixada. Esse tipo de tratamento mostrou a discrepância que eu sentia no Brasil e no exterior. Agora, não. Hoje, existe um trabalho de reconstrução da política de cultura.

A cota de tela para produções nacionais deve ser retomada em breve. Qual a importância da medida?
Ela é essencial. O que vivemos hoje é uma tempestade que envolveu pandemia, engarrafamento de filmes, desprogramação do público, que demorou para voltar às salas, e uma completa falta de cota. Não é justo julgar o cinema brasileiro pelas sabotagens que ele sofreu. E a cota de tela foi uma delas. A gente estava com 13% de renda nas bilheterias em 2019 (um ano com Bacurau, A Vida Invisível e A Febre). Em termos de prestígio internacional, vimos os frutos de uma construção de muitos anos. Aí veio a pandemia e Bolsonaro. Mas a cota de tela vai voltar, assim como o incentivo e principalmente o respeito ao artista no Brasil.

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Publicado em VEJA São Paulo de 23 de agosto de 2023, edição nº 2855

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