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A Tal Felicidade

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Também há felicidade no morro

Stefano Volp, escritor e roteirista, autor do livro "Homens Pretos (Não) Choram", acredita que super-heróis existem, e que eles vêm da periferia

Por Stefano Volp em depoimento a Helena Galante
Atualizado em 17 dez 2021, 09h38 - Publicado em 17 dez 2021, 06h00
Retrato de Stefano Volp. Ele é um homem negro, de barba escura e cabelo crespo platinado. Ele usa uma camiseta estampada de botões e um brinco em cada orelha. No pano de fundo é possível ver plantas e um girassol
Eduardo Volp: os verdadeiros super-heróis vêm da periferia. (Victor Vieira/Divulgação)
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Na era do medo da romantização de temas sensíveis, é preciso dizer, sem medo, que também há beleza em ser ou ter sido um garoto preto, pobre e morador da periferia. Há felicidade também. Rios de felicidade.

Quando eu tinha 8 anos, faltava água no morro toda semana. Naqueles dias, eu me lembro de que meu pai incorporava o herói da madrugada e se juntava a vários outros homens, os chamados pais de família, que conectavam canos e bombas pelas ladeiras não asfaltadas na tentativa de puxar a água que corria livre no asfalto. Às vezes algumas mulheres se juntavam, às vezes minha mãe. Mas era como se aquela tarefa fosse feita para os homens, assim como muitas outras.

+A felicidade segundo Sigmund Freud

No dia seguinte, quando eu acordava, tínhamos água. Na casa não havia torneiras e o chuveiro era um latão de água com um caneco para quem quisesse se banhar. Mas havia felicidade aos montes. Às terças, era divertido espalhar água e sabão no piso do banheiro, deslizando com os pés para todos os lados como se eu calçasse um par de patins que meus pais não poderiam comprar. Era divertido dar banho nos brinquedos, ou entrar às escondidas na cisterna cheia e brincar de se afogar no Titanic, ou de banheira do Gugu com as irmãs. Até quando a água acabava outra vez e os grandes galões de água se esvaziavam era legal, porque entrávamos neles e rolávamos morro abaixo sem medo de ser feliz.

Nossa casa na Rua Sainha era pequena, mas cabiam quase três delas no quintal. Na minha cabeça, todo aquele espaço protegido por cercas de arame farpado se transformava em um mundo infinito, onde, com ajuda da minha fértil imaginação, eu podia ser quem eu quisesse.

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Eu e minhas irmãs costumávamos brincar de “vida real”. O primeiro passo dessa brincadeira imaginativa consistia em uma reunião para decidirmos quão ricos seríamos no futuro. Definíamos tudo. Qual de nós teria um carro, de qual cor, marca, quantos filhos, onde moraríamos, em qual escola particular estudaríamos, faculdade, cônjuges, tudo. Com tudo definido, começávamos a performar pelo quintal por mais ou menos uma hora como seria a vida. Às vezes, em meu futuro, eu escolhia ter outro gênero, e pedia segredo às minhas irmãs. Gostava da liberdade de também ter um marido e filhos assim como elas. Havia tanta felicidade em imaginar o futuro sem julgamentos!

Pois é. Um dia desses, perguntei à minha mãe como foi que ela conheceu o meu pai. Passamos a tarde conversando e ouvi histórias inéditas sobre a juventude dela, sobre o nosso passado. No meio dessa farofa de lembranças, uma pergunta perfurou minha mente e eu realmente não sabia a resposta. Era mais ou menos assim: “Mãe, quando a gente morava no morro, tinha bandidagem, boca de fumo, essas coisas?”.

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Toda criança tem uma forma muito peculiar de enxergar o mundo e encontrar a felicidade. Às vezes é como se os olhos delas tivessem filtros capazes de transformar a realidade em algo menos perigoso, menos ameaçador, mais divertido. E, para uma grande parte das pessoas que, assim como eu, cresceu na periferia e passou a ocupar o mundo do asfalto, ironicamente tudo parece mais perigoso, mais ameaçador e, sim, menos divertido.

Porque a resposta para a minha pergunta é óbvia, mas acontece que quando os seus pais blindam você e ensinam a não ter medo de usar a imaginação para crescer, as vielas mais sombrias podem se transformar em caminhos tranquilos, as casas mais humildes em antigos castelos, as espumas puídas em camas confortáveis e as cisternas sujas em oceanos gelados.

+Memória: Leonardo Gola (1974-2021), fundador do bar Ó do Borogodó

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É preciso dizer, sem medo, que a vida no topo do morro também é bonita. E que é de lá que vêm os verdadeiros super-heróis.

Stefano Volp (@volp___) é escritor e roteirista, autor de Homens Pretos (Não) Choram. Fundou a editora Escureceu, voltada para a publicação de livros clássicos de autores negros.

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