Vai passar: Becky Korich reflete sobre a dor, o tempo e a vida
Crônica da escritora Becky Korich reflete sobre a resiliência aos problemas da vida e em como a tristeza é combustível para o crescimento
Tem dias na vida que o tempo fica feio, nebuloso, cinzento. O coração se encolhe, o estômago fica embrulhado, as mãos, fracas, e a única vontade que você tem é de se recolher. Mas a vida manda você seguir.
E você é obrigado, com o estômago fraco, fazer cara de forte. A sorrir para o vizinho, mesmo que isso te cause ainda mais dor no coração, porque dói mais a dor sufocada, aquela que precisa se calar. E você é obrigado a digitar, assinar, dirigir, cuidar, tratar, levar o aspirador para o conserto, engolir, pagar, responder a mensagens, seguir em frente. Assim que é, o mundo não pode parar só por causa do nó no seu estômago e do seu coração estraçalhado.
Algumas dores chegam a arder, a queimar, como as paixões incendiárias que nos destroçam. Outras nos petrificam no gelo da desesperança. E na hora da dor não há nada a fazer senão aceitar a dor. Enquanto vive, a dor é soberana, e cada alma ferida é uma existência em si.
Mas tudo vai passar, você sabe, mesmo que não saiba como vai aguentar, se vai aguentar.
+Casarão dos Trovadores Urbanos, em Perdizes, vira a Casa do Afeto
E o tempo — às vezes amigo, às vezes cruel — faz com que algumas dores diminuam e outras aumentem. Mas o tempo não está nem aí para a sua dor e, embora ele pareça estar congelado, o relógio segue infalível. Porque o tempo não tem tempo para te esperar.
E então, fragilizado, você chora porque o motoqueiro encosta no espelho do seu carro, porque aquela música toca no rádio, porque a sua amiga não atende o telefone no minuto que você mais precisa dela, porque o botão da sua camisa caiu, porque o elevador está no último andar. Chora pelo mendigo que pede esmola.
E nessa mesma hora passam por você uma pessoa saudável correndo na rua, um casal apaixonado, amigos gargalhando, o que te dá a certeza de que só você tem problemas. Você chora mais ainda, lamentando as injustiças da vida, ofuscando as coisas boas que tem. E se esquece de que tudo vai passar, se entregando à eternidade que é cada minuto de sofrimento.
E quando vai buscar o aspirador do conserto, o homem te sorri com gentileza e, sem nenhuma lógica, a sua dor cede espaço a um milímetro de esperança. Mesmo sem sentido, é o primeiro raio de luz que aparece no seu dia escuro. E quando o motoqueiro pede desculpas por ter encostado no seu espelho, você vê que o mundo não é tão injusto assim. E sua amiga retorna a ligação, o que faz o seu estômago se desembrulhar e seu coração voltar a respirar um ar mais leve.
Mas aquela música volta a tocar no rádio e ela faz você lembrar que está triste. O farol fica vermelho e o tempo se fecha novamente. O mendigo passa pela sua janela, você abre e dá um trocado. Ele percebe suas lágrimas: “Deus te abençoe. Não chore não, madame”. Você chora mais, sem saber pelo quê. Ele insiste na sua janela, não para pedir, mas para dar, abrindo mão de outros trocados. Antes do verde do farol, ele te dá um grande sorriso, mais gengiva do que dentes, e diz: “A vida é muito bonita para você matar ela com sua tristeza”. Você chora de alegria e de tristeza ao mesmo tempo. Por você, que acha que está triste, e por ele, que acha que é feliz; por tudo que te falta, e por tudo que não falta a ele.
+Ressignificar emoções, dormir melhor, cuidar do intestino: o bem-estar
Você arrisca uma música tocante. E vence: ouve até o final com o coração inteiro e as mãos mais firmes. E percebe que o amargo nem sempre é tão amargo, que crescer às vezes dói. E agradece ao relógio que não te permitiu parar, à vida que te mandou seguir, ao vizinho que te obrigou a sorrir, ao aspirador que pediu conserto, e a tudo que mandou você viver.
E finca no peito a lição do poeta desdentado que te provou que a vida é muito bonita para ser desperdiçada com tristeza.
Vai passar, se você deixar, já passou.
A curadoria dos autores convidados para esta seção é feita por Helena Galante. Para sugerir um tema ou autor, escreva para hgalante@abril.com.br
+Assine a Vejinha a partir de 9,90.
Publicado em VEJA São Paulo de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812