Acolher para libertar
Rogério de Oliveira fala sobre os desafios de coordenar uma associação LGBTQIA+
Coordenar uma associação LGBTQIA+ significa encarar desafios diários. Recebemos muitos pedidos de ajuda e não conseguimos atender a todos e todas que nos procuram. Talvez essa felicidade em poder contribuir com nossa sociedade, com essas pessoas tão vulneráveis, poderia ser ainda mais completa, mas, ao mesmo tempo, quanto mais se luta, mais bons combates buscamos ao longo da vida.
Durante a pandemia de Covid-19, trabalhamos diariamente no auxílio de nossa comunidade. Fornecemos cestas básicas, máscaras, álcool em gel, insumos de prevenção, copos de água e marmitas para a população em situação de rua. Mapeamos os pontos de circulação da comunidade LGBTQIA+ e também atendemos a população local, na região central de São Paulo. Todo trabalho é realizado em conjunto com a equipe do Casarão Brasil, formada por psicólogos, assistentes sociais, advogados, pedagogos e voluntários.
O projeto vive de doação e alguns projetos contam com suporte financeiro governamental em período predeterminado. Recentemente, acolhemos trinta mulheres travestis na Zona Sul da cidade. É um acolhimento por tempo indeterminado, para que essas mulheres possam se organizar, realizar tratamentos de saúde, buscar trabalho e ter uma moradia com qualidade. No local, oferecemos alimentação de qualidade, atendimento psicológico, assistencial, e realizamos rodas de conversas, oficinas, workshops e capacitações para qualificação profissional. O referido imóvel foi reformado e adaptado para o acolhimento de mulheres travestis e transexuais.
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Muitas mulheres são brasileiras, mas também acolhemos refugiadas e imigrantes. Mulheres vindas da Venezuela, Argentina, Colômbia, Equador. Mas recebemos também pedidos de acolhimento de pessoas advindas de países como Marrocos e Tunísia, uma realidade cada vez mais presente, e brasileiras que querem retornar ao Brasil.
Um caso marcante foi de uma mulher trans que saiu do interior de São Paulo para ser cabeleireira na Espanha e chegando ao local foi obrigada a trabalhar como profissional do sexo, teve seu passaporte e documentos retidos. Conseguiu pedir ajuda ao consulado, morou conosco durante alguns meses e retornou para sua cidade. Outro caso marcante foi de um jovem gay, marroquino, que teve a orientação sexual descoberta por seu irmão e solicitou socorro via nossas mídias sociais. Em países árabes como Marrocos, a homossexualidade é crime, pode ser punida com penas severas.
Muitas vezes vou até o aeroporto com a nossa psicóloga para recepcionar as pessoas. Uma barreira é o idioma, muitas pessoas ficam em situação de rua, sem trabalho ou renda e são direcionadas para um acolhimento municipal. É um trabalho desafiador. Você precisa tomar decisões rápidas para salvar as pessoas que estão correndo risco de morte. Por outro lado, é muito gratificante quando você volta a encontrar essas pessoas.
Elas e eles se sentem seguras e seguros no Brasil, um país com muitas dificuldades, mas acolhedor. Que felicidade terem enxergado em você um porto seguro no momento que mais precisaram. Ver essas pessoas conseguindo falar e se expressar em português é a melhor parte. Assim, podem voltar a sonhar e ser livres.
A curadoria dos autores convidados para esta seção é feita por Helena Galante. Para sugerir um tema ou autor, escreva para hgalante@abril.com.br
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Publicado em VEJA São Paulo de 01 de fevereiro de 2023, edição nº 2826