Dark kitchens na cidade: comida de grife, fumaça e casos de confusão
Locais de compartilhamento de cozinhas de restaurantes se multiplicam pela capital, mas esbarram em falta de lei específica
Elas chegaram para ficar. As primeiras dark kitchens começaram a ser instaladas na capital pouco antes da pandemia. Com as necessárias restrições impostas pela crise sanitária, essas cozinhas profissionais, montadas em espaços compartilhados entre vários restaurantes, como um coworking ou um condomínio, estouraram junto com o imenso aumento do delivery de refeições.
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Nesses locais, sem mesas, toalhas, talheres nem equipe de atendimento, a produção é entregue da porta para fora, e um motoboy faz o papel de garçom no transporte dos pratos — em alguns casos, ainda que raros, a retirada pode ser feita pelo cliente. Essa, porém, não é uma operação barata para os interessados em ingressar no negócio.
A locação de um espaço de 30 metros quadrados, por exemplo, pode sair a partir de 5 000 reais por mês, mais as despesas rateadas entre os locatários (água, luz, vigilância) e, em muitos casos, uma taxa de 1% sobre o faturamento bruto do negócio. Quanto maior o espaço e mais cara a região, claro, mais alto será o aluguel mensal.
Estima-se que na capital existam pelo menos trinta desses espaços compartilhados. Na mesma velocidade com que as dark kitchens apareceram e se tornaram um fenômeno recente, surgiram os problemas relacionados a elas. Variam de incômodo aos vizinhos à falta de uma regulamentação municipal.
Para a prefeitura, hoje, essas cozinhas compartilhadas não estão diretamente classificadas na legislação do município. Por causa do limbo jurídico, uma das empresas, a Kitchen Central, entrou na Justiça questionando o fato de ter sido multada pela subprefeitura da Lapa por causa do ruído excessivo e ter seu alvará cassado, ao mesmo tempo que recebeu parecer do próprio órgão afirmando que as atividades ali estão legalizadas.
Enquanto o setor permanece em uma zona cinzenta político-administrativo-legislativo, sobram reclamações de pessoas que dormem e acordam com cheiro de fumaça proveniente de algumas cozinhas industriais.
“O ronco do exaustor não tem hora para começar nem para acabar. Sem falar na fumaça, que, quando o vento está na direção da minha casa, vai parar diretamente na sala. Os motoqueiros, coitados, não têm onde ficar e ocupam toda a calçada e os imóveis ao lado. Muitos andam na contramão e representam perigo para pedestres”, diz o economista aposentado Maurício Rodrigues, 71, morador da Vila Romana, ao lado de uma unidade da Kitchen Central, a mesma que foi alvo da prefeitura e promotora de uma ação judicial.
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Procurada, a empresa, que possui onze condomínios de cozinhas na cidade, não concedeu entrevista e afirmou em nota que tem cumprido em suas unidades com todas as regulações aplicáveis.
A 11 quilômetros dali, no Jardim da Glória, entre a Vila Mariana e o Ipiranga, as reclamações começaram bem antes de a primeira fumaça sair pela chaminé do futuro hub da Smart Kitchens, uma empresa mineira que desembarcou há pouco mais de dois anos na capital.
“Aqui ouvimos picapaus, maritacas e grilos. A rua é estreita, tem duas mãos e teremos um fluxo de carros, motos e caminhões que a via não comporta”, afirma a advogada Carla Lascala, que entrou com uma representação no Ministério Público para barrar a empreitada, ainda sem sucesso. “Eu pago 9 000 reais por ano de IPTU e com certeza haverá desvalorização do meu e dos nossos imóveis. Por que eles não se instalaram na Avenida Ricardo Jafet, a duas quadras de onde querem?”, questiona Carla.
“Eles estão com um pré-temor. O planejamento da exaustão foi feito no sentido oposto do prédio em questão. Eventualmente vai ter cheiro, como uma lanchonete ou padaria de bairro produz, mas nos parâmetros normais”, diz o empresário Gustavo Nogueira, um dos sócios da empresa, que possui outras quatro unidades na cidade. “Além disso, nossos entregadores não ficarão na rua, pois temos uma área na frente do imóvel, de 300 metros quadrados”.
Enquanto sobram reclamações de vizinhos aos empreendimentos, urge na prefeitura e na Câmara Municipal a necessidade de uma regulamentação para o setor. Na quarta (18), o Legislativo marcou uma audiência pública para receber todas as partes interessadas no assunto. “Precisamos aprovar rapidamente uma mudança na Lei de Uso e Ocupação do Solo, criando essa figura de atividade condominial não residencial”, afirma o vereador Paulo Frange (PTB). “O passo seguinte, o da regulamentação, vai definir o que pode e o que não pode, como o recuo das edificações para os prestadores de serviço estacionarem, além do tratamento de produção de odores, ruídos e resíduos, entre outros.”
Um dos principais vetores dos negócios, os entregadores deverão ter um capítulo especial na regulamentação da lei. “Muitos não têm como se higienizar, precisam urinar no viário e muitos locais não possuem espaços para recebê-los. Tudo precisará ficar bem claro”, diz o vereador Rodrigo Goulart (PSD), que é dono de restaurantes na cidade e convocou a audiência pública.
Longe de serem apenas problemas, as dark kitchens são também soluções. Um dos mais tradicionais endereços italianos de São Paulo, o Vinheria Percussi serviu a última refeição em 31 de dezembro de 2021, porque o prédio que ocupava foi vendido a uma incorporadora. Em vez de desaparecer, a marca continua viva e atendendo a clientela conquistada ao longo de 36 anos.
A chef Silvia Percussi e o irmão Lamberto Percussi, responsável pela administração e pelos vinhos, transferiram o restaurante para uma unidade da Smart Kitchens, em Pinheiros. “Antes, a locomotiva do negócio era o salão. O delivery funcionava como um valor agregado. Não sabíamos se dava lucro. Agora, que estamos full time nas entregas e temos uma estrutura enxuta, sim”, afirma o restaurateur.
Ele percebe uma nítida evolução do negócio. “Fechamos o mês passado no azul, bonitinho. Tivemos a Páscoa, que é uma data importante, e ajuda muito”, comemora. No caso deles, uma mudança radical no processo refere-se às despesas. Anteriormente, o restaurante ocupava imóvel de 750 metros quadrados e dispunha de 27 funcionários. Hoje, fica em um espaço de 48 metros quadrados e conta com sete colaboradores, dois deles responsáveis pelo atendimento e administração.
Outro cuidado que visa ao barateamento da operação é o uso de um sistema de entrega próprio, de uma empresa contratada pelo restaurante, mesmo quando o pedido vem de aplicativos como o iFood. Nesse curto espaço de tempo, Percussi já descobriu os pratos favoritos do público. A campeã de vendas é a lasanha, seguida do ravióli de búfala e de carnes como o brasato e a paleta de cordeiro desossada e assada.
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“Dentro do delivery tem uma divisão. É possível pedir porções ou encomendas para quantidades maiores”, explica. O pico de atendimento é sempre aos sábados e domingos, quando saem, em média, sessenta pedidos. Mas não são todos os clientes que se enquadram e se adaptam às dark kitchens.
“Quando meus sócios falaram de abrir mais um Matilda, eu disse: ‘Estou fora. Não quero ouvir falar nesse lugar’”, esbraveja Renata Vanzetto sobre a unidade exclusiva de delivery que o Grupo EME, formado pelas casas Ema, MeGusta, Muquifo, Mé Taberna, Mi.Ado, Mico, do qual ela é uma das donas, além do Matilda.
A recusa pela versão só delivery tem uma explicação. “É um lugar longe e não consigo acompanhar de perto a preparação da comida. Me sinto meio mal com isso. Não amo porque sou centralizadora, gosto de ir aos meus restaurantes e ter contato com a minha equipe. Há funcionário lá que nunca vi.”
E outra preocupação da chef ainda são os custos. Sócio de Renata e responsável pela parte administrativa do EME, Guilherme Meirelles, o Guiba, concorda que existam despesas elevadas porque esse tipo de modelo de negócios teve uma enorme demanda na pandemia e continua. “Existiu um boom e todo mundo queria ter uma dark kitchen. Paga-se mais caro por isso, o que diminui um pouco a rentabilidade”, explica Meirelles. Tanto que o Matilda foi para Santo Amaro porque era a única unidade da Kitchen Central com espaço disponível. “Ainda não dá para falar se é um bom negócio. É uma oportunidade para testar esse tipo de expansão”, acredita.
Além da dark kitchen, cada restaurante do Grupo EME tem delivery próprio. Sucesso consolidado durante a pandemia, a lanchonete Matilda é mesmo a que mais se beneficia das entregas em domicílio. “As duas unidades (físicas) têm bom faturamento com o delivery, cerca de 50% do total”, contabiliza Meirelles.
A escolha de montar o Mico como um menu árabe não foi ao acaso. “Esse tipo de culinária viaja bem e foi uma sugestão do iFood”, conta Renata. Assim, o projeto da casa aberta no fim de março previa uma área para a cozinha de entregas. “Começamos há três semanas o delivery, que vem crescendo”, diz Meirelles esperançoso.
Gigante do food service na capital, a Cia Tradicional ingressou no universo das dark kitchens com a montagem de uma grande cozinha profissional no bairro de Pinheiros, em janeiro de 2021. “A plataforma Devoro nasceu para reunir todas as nossas marcas em um único lugar”, conta João Adas, CEO da holding que tem os estabelecimentos Astor, Pirajá, Lanchonete da Cidade, Bráz Trattoria, Bráz Elettrica, Bráz Pizzaria (somente vinhos) e ICI Brasserie.
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Para ampliar ainda mais o leque de opções de quem quer comida em casa, há outros três parceiros, o fast-food árabe Shuk, a Confeitaria Dama e a sorveteria Bacio de Latte. No predinho de 250 metros quadrados, trabalham 25 funcionários em dois turnos. A rotina de produção começa às 8 horas e se encerra à meia-noite.
Nesse intervalo, a equipe comandada por Edivaldo Silva Filho, sob a supervisão de Fernando Jurado Bonciani — sim, são dois chefs na dark kitchen —, trabalha para atender a meta de 7 000 pedidos por mês até dezembro. Embora tenha aluguéis e imóveis mais caros que outros bairros mais distantes, a escolha de Pinheiros não foi por acaso. “A Cia TC tem uma presença massiva neste bairro há mais de vinte anos, com praticamente todas as nossas marcas e uma clientela fiel a elas”, garante Adas.
Outro cuidado é o atendimento num raio de até 7 quilômetros. “Acima dessa distância, a comida pode ter a qualidade comprometida”, atesta o executivo. Os chamados pratos de panela desbancaram os hambúrgueres na preferência do público. No topo da lista de pedidos de comida na caixinha de papel, estão o picadinho, o estrogonofe, o filé à parmigiana e a feijoada. “Durante a semana, tem ainda os pê-efes do Pirajá, como os bifes acebolado e à milanesa”.
A Devoro também funciona como cozinha central para as casas do grupo. Alguns itens e pratos são previamente preparados em Pinheiros e mandados aos restaurantes e bares numa otimização de tarefas e custos. É o caso de massas frescas, como a lasanha, servida na Bráz Trattoria, do Shopping Cidade Jardim. “Trouxemos para cá tudo da trattoria: o masseiro (Adilson Pereira de Sousa) e máquina, além de um forno para assar os pães. Sobrou mais espaço na cozinha do restaurante, que é estreita e comprida”, conta Adas.
Além do delivery próprio, a Devoro usa aplicativos especializados. Mas há o cuidado de ter motoboys de uma empresa parceira e não de apps. Com a ação, o CEO acredita haver um controle maior dos pedidos, assim como uma redução de custos. “Nossa relação com os entregadores é transparente”, diz.
Para esses profissionais, mantém uma sala com banheiro. “Nós oferecemos café, água e aquecemos as marmitas deles. Até miojo preparamos quando pedem”, diz. Adas só faz mistério quanto ao faturamento da empresa, mas garante que é um bom negócio.
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Publicado em VEJA São Paulo de 25 de maio de 2022, edição nº 2790