Pérola Byington muda para novo prédio, perto da Cracolândia, e amplia atendimento
Maior hospital para mulheres da América Latina sai da Bela Vista para edifício mais moderno, implanta melhorias e deve ajudar na revitalização da região
Aos 12 anos, enquanto passeava com o cachorro em uma rua de São Sebastião, no litoral de São Paulo, A.C. foi abordada por um homem, levada a um imóvel vazio nas redondezas e estuprada. A mãe dela procurou uma delegacia e, algumas semanas depois, a menina descobriu que estava grávida. Foi encaminhada ao Hospital Pérola Byington, na capital, onde, assim como 334 mulheres apenas no ano passado, seria submetida a um aborto legal.
+ Prefeitura recicla projeto para repaginar região do Parque Dom Pedro II
Principal centro de referência em saúde da mulher na América Latina, em funcionamento desde 1959 na Bela Vista, a instituição vai mudar de endereço em setembro. Passará para um prédio próprio e mais moderno nos Campos Elíseos, justamente na rua onde até março ficava o fluxo da Cracolândia — e deve ter impacto na recuperação da região.
O Pérola Byington não é o único hospital para vítimas de violência sexual na cidade, mas é o maior deles. No ano passado, atendeu 3 033 mulheres nessa situação. Em 2022, até maio, tinha recebido 1 458, nem todas para a realização de abortos legais — que, no Brasil, são permitidos em casos de estupro (não há necessidade de boletim de ocorrência ou autorização judicial), de gravidez que traga risco de vida à mulher ou de anencefalia fetal.
O hospital se destaca em três especialidades, todas voltadas às mulheres: oncologia, reprodução e vítimas de violência sexual — nessa última, também são atendidos meninos de até 14 anos. “Existem vítimas de todas as idades, desde bebês com 6 meses até idosas de quase 90 anos”, afirma Daniela Pedroso, psicóloga da instituição.
Esse tipo de atendimento, que faz do Pérola um hospital simbólico da cidade, ajuda as vítimas a conseguirem voltar às atividades cotidianas. “Uma pergunta comum é se elas vão esquecer o que aconteceu. Não existe um tratamento para isso, é um evento traumático. Mas fazemos elas entenderem que a vida pode e deve continuar, apesar da violência sexual. Ela vai conseguir ressignificar o que aconteceu. Esquecer, não”, explica Daniela.
+ Temporada de dança reúne dezenas de espetáculos até o fim do ano em SP
No novo prédio, que terá mais de 50 000 metros quadrados, a instituição deve ampliar a capacidade de atendimento em 25% nessa área ao longo do tempo, de acordo com a Secretaria Estadual de Saúde. Nos atendimentos oncológicos, a expectativa é de um crescimento de 66%. O sonho da casa própria do Pérola começou a tomar forma em 2013, quando foi anunciada uma parceria público-privada (PPP) pelo então governador Geraldo Alckmin (à época no PSDB) para concretizar a ideia.
A obra só saiu do papel em 2019, após um processo que envolveu desapropriações e cessões de terrenos. O Pérola deixará de pagar 4 milhões de reais por ano em aluguel, valor que será revertido para a assistência à saúde, segundo o governo. A construção custou 245 milhões. Do lado privado da PPP está a Inova Saúde, especializada na administração e gestão hospitalar. É um braço da Construcap, que ganhou um chamamento público e será responsável, até 2035, pela infraestrutura, a administração e os serviços não relacionados à assistência à saúde.
O atendimento médico será gerido por uma organização social, o Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo (Seconci-SP), que tem contrato de cinco anos. A Secretaria de Saúde terá o papel de avaliar a produtividade e a qualidade dos serviços. “Nossa cobrança será para termos o maior número de pessoas acolhidas”, afirma Jean Gorinchteyn, o titular da pasta.
O novo prédio terá 166 leitos, quarenta a mais que o anterior. Dez deles serão de UTI. Além da maior capacidade, o Pérola vai ganhar novidades tecnológicas. Um exemplo é a farmácia automatizada, onde um robô separa os medicamentos e informa quais deles o paciente deve tomar a cada horário. Uma cápsula pneumática envia as medicações ao andar da internação. “Serão três minutos entre a prescrição e a chegada do remédio”, diz Vinícius Battistella, diretor da Inova Saúde.
+ “Meu legado será uma PGE mais progressista”, diz nova-procuradora geral
Há tecnologias semelhantes no setor de órteses e próteses, que vai rastrear os materiais para evitar perdas. Na nova sede, os atendimentos de reprodução humana, violência sexual e oncologia passam a funcionar em setores próprios, com acessos separados. “São três perfis diferentes, três sentimentos distintos. Fizemos entradas e alas para que não se cruzem, o que vai dar mais tranquilidade e bem estar às pacientes”, afirma Susana Cabarcos Pawletta, CEO da Inova Saúde.
O hospital não tem data exata para a inauguração, prevista para a primeira quinzena de setembro. Todos os 890 funcionários públicos da área médica que atuam no Pérola migrarão para a nova unidade. “O desafio será garantir o maior número de pessoas atendidas”, diz Maristela Honda, presidente do Seconci.
A construção, porém, não ocorreu sem críticas. Em 2013, Alckmin editou um decreto que declarou como “utilidade pública” os imóveis da Avenida Rio Branco, entre as alamedas Glete e Helvétia. A decisão autorizou o estado a fazer desapropriações. As remoções tiveram início em 2018 e atingiram cerca de 160 famílias, sob protestos de organizações que defendem o direito à moradia. Elas alegam que o governo não ofereceu destinação adequada às famílias e que não houve diálogo suficiente no processo.
O Ministério Público e a Defensoria ajuizaram uma ação alegando que as intervenções eram irregulares. O juiz de primeira instância e o Tribunal de Justiça negaram o pedido. O processo está no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Além disso, quem estiver no novo Pérola não deixará de notar a degradação do entorno. O hospital ocupa um quarteirão inteiro entre a Avenida Rio Branco, a Alameda Barão de Piracicaba, a Rua Helvétia e a Alameda Glete. Desde que foi anunciado, em 2013, era classificado como um complexo “dentro da Cracolândia”. Alckmin dizia que ajudaria a “requalificar” a área, discurso repetido pelos sucessores João Doria e Rodrigo Garcia.
Por décadas, a Cracolândia funcionou naquele trecho da Rua Helvétia e nas adjacências, onde a venda e o consumo de drogas aconteciam a céu aberto (veja o mapa abaixo). Em março, o “fluxo” migrou para a Praça Princesa Isabel, também vizinha do novo hospital. Depois, uma série de operações da Polícia Civil e da Guarda Civil Metropolitana expulsou os usuários e as pessoas em situação de rua da praça. Elas se dispersaram pelo Centro. Hoje, há uma concentração em outro trecho da própria Helvétia, entre a Avenida São João e a Rua Barão de Campinas.
+Assine a Vejinha a partir de 9,90.
No entorno do hospital, ainda são vistos dependentes químicos. O movimento se intensifica no fim de tarde e à noite, mas em concentração muito menor que antes de março, quando impossibilitava a passagem de pedestres e automóveis.
Em junho, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) sancionou um projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal que prevê a transformação da Praça Princesa Isabel em um parque. Essa sequência de ações, assim como a “limpeza da área” para que o hospital possa ser inaugurado pelo governo, motivou críticas de ativistas. “É um processo de tentar expulsar as pessoas daquela região, permitindo ganhos dos grandes empreendedores imobiliários”, diz Daniel Mello, da associação A Craco Resiste.
Alexis Vargas, secretário-executivo de Projetos Estratégicos do município, discorda da opinião. “O hospital faz parte de uma estratégia de requalificação urbana do território, assim como o Parque Princesa Isabel e as construções de habitações de interesse social”, ele afirma.
A almejada requalificação, de qualquer maneira, não será uma tarefa trivial. Na semana passada, o colégio Liceu Coração de Jesus, fundado há 137 anos e que seria “vizinho de trás” do novo Pérola, anunciou o fechamento devido às poucas matrículas por causa da insegurança. A prefeitura agora propõe um convênio para custear as mensalidades de 200 alunos.
Não há dúvida, porém, de que o novo Pérola seguirá ressignificando a vida de milhares de mulheres vítimas de violência. “Sou muito grata pelo tratamento do hospital. As profissionais foram muito acolhedoras comigo e com a minha mãe”, conta L.S., que sofreu um estupro de um vizinho aos 11 anos, em São Paulo. Acompanhada durante um ano no Pérola à época, a jovem voltou ao hospital aos 16 anos devido a uma depressão severa, consequência das memórias do abuso. “Restaram as cicatrizes. Mas, sem o Pérola, não estaria aqui nem para contar minha história”, diz.
+Assine a Vejinha a partir de 9,90.
Publicado em VEJA São Paulo de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804