“A rede médica atual é como um naufrágio do Titanic”, diz presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia
Em campanha pela prevenção do câncer de mama, Guilherme Novita afirma que remédios do sistema público estão defasados e que o SUS parou no tempo
Presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia regional de São Paulo (SBM-SP), Guilherme Novita mobiliza médicos especialistas em doenças mamárias para o Outubro Rosa, campanha mundial feita para incentivar o diagnóstico precoce e tratamento adequado do câncer de mama.
Nos demais meses, o trabalho continua: enquanto desmente mitos sobre a doença nas redes sociais, o grupo busca alternativas para divulgar a importância dos exames periódicos e facilitar o acesso da população mais pobre a medicamentos.
Quais são as iniciativas da SBM hoje?
Nossa função é fiscalizar. Não é papel da sociedade dar tratamento e remédios, não porque não mereçam, mas porque não temos essa capacidade. Mesmo assim, conseguimos pressionar a Saúde e temos feito um trabalho de formiguinha.
Fizemos uma campanha para mulheres do SUS, em teoria as mais necessitadas. Demos roupas pós-cirúrgicas e especialistas em micropigmentação doam a algumas delas o procedimento (para desenhar mamilo e aréola). Também queremos oferecer consultas gratuitas de mastologistas. Se tenho horários ociosos no fim de semana — e todo mundo tem —, não custa nada atender mais gente.
O que precisa mudar na dinâmica do SUS ao atender essas pacientes?
No posto de saúde, o maior gargalo no câncer de mama inicial é o tempo. A demora é de pelo menos sessenta dias até conseguir tratamento, e isso altera as chances de cura. É um mês para marcar uma coisa, depois mais dois para outra…
E no caso das pacientes com cânceres mais avançados?
Esse é o segundo gargalo, mais grave, pois elas precisam de medicações. Hoje o que você tem na rede privada e pública é ridiculamente desigual, uma coisa absurda. É como o naufrágio do Titanic: quem fizer parte da primeira classe terá mais chances de sair vivo do que quem está na terceira.
E nossa legislação é burocrática para aprovar remédios. O SUS parou bastante no tempo nesse sentido, tem medicações há dez anos no mercado que ainda não foram incorporadas.
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Os casos aumentaram na pandemia?
Vários hospitais no ano passado fecharam tudo para atender exclusivamente casos de Covid. Para as pacientes do SUS, como o sistema opera no limite, não dá para tirar esse represamento de casos, que ainda vão aparecer. O ponto pior é que veremos tumores detectados em estágios mais avançados da doença. Há necessidade de o sistema público fazer uma força-tarefa.
Viver em cidades grandes, com ritmo mais estressante, influencia o desenvolvimento do câncer de mama?
Isso é lenda urbana, assim como dizer que a torre de celular e o desodorante podem causar câncer. Existem muitas teorias sobre o câncer ser causado pela tristeza e ansiedade. Não tem nada a ver.
Essa fala se transforma em uma penalidade a mais para a mulher, ela sente como se tivesse causado isso a si mesma. Mas ninguém vê sobreviventes de campos de concentração com mais câncer que os outros. Pessoas com depressão também não.
Quais são os mitos mais comuns sobre a doença?
Cada hora surge uma nova, já culparam até o micro-ondas e a prótese de silicone. Na época em que a Angelina Jolie tirou as duas mamas foi uma febre, mulheres chegavam ao consultório apavoradas e achavam que essa era a solução para nunca ter câncer. Mas nem a cirurgia preventiva zera essa probabilidade.
A alternativa foi ótima no contexto da atriz, pois a mãe e a tia materna dela morreram jovens pela doença e ela tinha uma mutação que levava a um risco alto ainda jovem.
“Dizer que stress causa câncer de mama é lenda urbana. Teorias como essa criam uma penalidade a mais para a mulher”
Muitos dos casos são hereditários?
É verdade que existem mutações com padrão hereditário e aquelas que tiveram casos na família entre parentes próximos têm um risco maior. Mas 80% das pessoas que tratamos não têm casos na família.
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Além dos exames periódicos, quais hábitos ajudam a prevenir a doença?
O principal fator é o peso. O câncer precisa do hormônio feminino para crescer, por isso ocorre mais em mulheres. A gordura é rica nessa substância. Também desaconselhamos o uso de medicações antienvelhecimento à base de hormônios, propagandeadas como solução para melhorar tônus muscular, diminuir gordura e aumentar libido. O uso desses anabolizantes em busca da juventude eterna é perigoso.
Surgiram mais casos entre as jovens?
O número praticamente dobrou nos últimos dez anos e continua sendo baixo se comparado com o público de maior risco: a mulher de 45 a 60 anos. Como o câncer se alimenta um pouco do metabolismo, os casos das jovens são mais agressivos. Existem fatores que levam ao aumento global entre elas: a menor quantidade de filhos por mulher, a gravidez mais tardia e a menstruação em idade mais jovem (que a introduz mais cedo à vida adulta hormonal).
Qual é a influência da gravidez?
A mulher passa a gestação e o período de amamentação com uma dose baixa de hormônio feminino. A gravidez causa um efeito protetor, e hoje temos como padrão a queda na taxa de natalidade. As famílias têm um ou dois filhos e normalmente postergam a gravidez. Então vai ter de recomendar que todos tenham múltiplos filhos para evitar a doença? Não, são avanços da sociedade e não vamos voltar atrás. Só temos de manter essas mulheres com saúde.
O autoexame também é recomendado aos homens?
Tem gente que fala “tem um nódulo de 2 centímetros aqui, não deve ser nada”, mas chega ao médico e na verdade já mede 6. Hoje nós preferimos falar em consciência mamária: não é normal aparecer qualquer caroço e, se aparecer, procure um médico. Entre os homens, essa doença é muito rara e mais fácil de detectar.
Como os homens podem ajudar suas esposas durante o tratamento?
Nem todas têm essa presença importante, já vi situações dramáticas em que o homem resolve se divorciar. São poucos maus exemplos. Tem de segurar a mão, o apoio da família é fundamental. A mulher se preocupa com a família, muitas vezes o medo maior dela é deixar os filhos sem mãe.
O modelo de campanha com foco em outubro desestimula a divulgação sobre a doença pelo resto do ano?
É bom ter um mês de memória, mas, se a pessoa só fizer exames em outubro, está fazendo um serviço ruim. As campanhas precisam ter depoimentos de tratamentos que deram certo, focar demais em mortalidade afasta muita gente.
No Google, 90% do que aparece é desgraça. Tenho pacientes que não vão ao médico porque têm medo de descobrir e ter de fazer mastectomia (a retirada cirúrgica das mamas). Temos de explicar que é curável na maioria das vezes. A mulher precisa continuar a viver tudo o que teria antes do tratamento.
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Publicado em VEJA São Paulo de 6 de outubro de 2021, edição nº 2758