De volta ao buraco: o que tem dado errado em projetos do tipo na cidade?
As consequências para a Linha 6 – Laranja e para a Marginal Tietê, os impactos políticos do caso e por que é preciso melhorar a fiscalização
Parecia a reprise de um filme de catástrofe. Na manhã de terça-feira (1º), as obras da Linha 6 – Laranja do metrô abriram uma cratera em plena Marginal Tietê, perto da Ponte do Piqueri, na Zona Norte. As análises mostram que a escavação de um duto de ventilação provocou a ruptura de uma galeria de esgoto da Sabesp que passava a 3 metros dali. O asfalto da superfície cedeu, “engolindo” a pista local da avenida no sentido da Rodovia Ayrton Senna. As imagens fizeram lembrar o traumático acidente de 2007, o pior da história do metrô paulistano, em Pinheiros, quando morreram sete pessoas. Desta vez, porém, não houve vítimas. Quatro funcionários caíram nos dejetos in natura trazidos pelo duto sanitário, que vinha do centro e seguia para a estação de tratamento de Barueri.
No meio do caminho, a cratera
Lançada em 2008, a Linha 6 – Laranja irá da Brasilândia à Estação São Joaquim, no centro. Sem nenhum trecho pronto, foi retomada em 2020. O acidente de terça (1º) interditou a pista local da Marginal Tietê.
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Os impactos para o futuro metrô ainda serão apurados. A Linha 6 – Laranja irá da Brasilândia, no extremo da Zona Norte, à Estação São Joaquim, no centro, onde vai encontrar a Linha 1 – Azul. O governo mantém a previsão de entrega para 2025, mas é natural que a promessa suscite dúvidas. A linha foi lançada em 2008, pelo ex-governador José Serra (PSDB). Inicialmente prometida para 2012, somente em 2013 um consórcio foi escolhido para construí-la, sob a liderança das construtoras Odebrecht, Queiroz Galvão e UTC Engenharia. As obras começaram em 2015. Veio a Lava-Jato, as construtoras ficaram sem crédito e desistiram da empreitada. Em 2018, Geraldo Alckmin, à época no PSDB, cancelou o contrato. O projeto acabou retomado em 2020, sob a batuta de João Doria (PSDB) e liderado pelo grupo espanhol Acciona, que comprou o direito de concessão das construtoras.
O buraco na marginal foi tapado com concreto — tecnicamente, “material rochoso e argamassa”, segundo os engenheiros que elaboraram a solução. A pista local segue interditada, enquanto a expressa voltou a ser utilizada na quarta-feira (2). Doria afirma que a “prioridade número 1” é normalizar a circulação de veículos na avenida, a maior da cidade. O secretário de Transportes Metropolitanos, Paulo Galli, prevê que a via vai ser totalmente liberada por volta do dia 12. “Em uma semana, o concreto usado para preencher a cratera teria condições de ter veículos passando por cima dele”, explica o engenheiro e consultor Paulo Helene, ex-professor da Escola Politécnica da USP e presidente do Instituto Brasileiro do Concreto. “Para que possa ser perfurado, porém, seriam no mínimo dois meses. Só então poderiam ser feitas novamente escavações para o metrô ou para que se restabeleça o duto de esgoto (os dejetos foram desviados para outro canal)”, explica o especialista — para ele, a solução adotada (o preenchimento com concreto) era mesmo a mais recomendada a ser feita.
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De saída, Doria formou um comitê para apurar as causas e responsabilidades, que teve a primeira reunião — com vinte autoridades ligadas ao tema — na tarde do acidente. O tom do governador tem sido o de cobrar soluções da Acciona e da Linha Uni, também à frente do projeto. Segundo ele, as empresas vão custear o reparo na via. O Ministério Público pediu informações sobre o caso e a Promotoria de Habitação e Urbanismo da capital abriu inquérito para apurar os danos urbanísticos e ambientais.
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Os impactos políticos já são visíveis. Atingido pelas imagens do acidente em plena tentativa de voo presidencial, Doria tem sido atacado pelos flancos à esquerda e à direita. O PT apressou-se em apontar o governador como responsável pelo problema. “É imprescindível investigação e responsabilização do governo Doria sobre o ocorrido”, postou no Twitter o perfil do diretório paulista do partido. Márcio França (PSB), provável concorrente de Rodrigo Garcia (atual vice de Doria) na corrida pelo Palácio dos Bandeirantes, chamou o caso de “incompetência inacreditável”.
Na Assembleia estadual, amplamente governista, o deputado bolsonarista Gil Diniz (sem partido, ex-PSL) tenta aproveitar o momento para um ataque legislativo. “Estou recolhendo as assinaturas necessárias para protocolar uma CPI para investigar a responsabilidade de João Doria em mais um desabamento em obras públicas em São Paulo! O governador tem de ser responsabilizado. Precisamos extinguir o PSDB do estado de São Paulo!”, vociferou o parlamentar. Deputado conservador na mesma Casa, Douglas Garcia (PTB) engrossou o coro: “Selo PSDB de qualidade: obras desabando na Marginal Tietê! Ano passado a ALESP autorizou João Dória (sic) a contratar um empréstimo BILIONÁRIO para melhorias no Metrô. Meu voto foi NÃO, por saber que este dinheiro seria malgasto. O tempo confirmou que eu acertei o voto”, publicou nas redes sociais. O vereador Rubinho Nunes (Podemos), ligado ao MBL, classificou de “oportunismo sem limites” a retomada da Linha 6 – Laranja. “A obra estava havia quase dez anos atrasada, mas chegou o ano eleitoral e o governador quis retomá-la às pressas. O resultado? Desabamento e cratera”, afirma.
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Em certa medida, o impacto político vai depender do prazo para que a Marginal Tietê seja liberada, ou seja, do volume de engarrafamentos que os paulistanos terão de aturar. A solução técnica adotada (o preenchimento com concreto) mostra que a prioridade é, mesmo, a liberação do trânsito. A CET explica que os veículos que chegam àquele trecho vindos das rodovias Dutra, Fernão Dias, Bandeirantes, Anhanguera e Castelo Branco serão direcionados para o Rodoanel e para o “minianel viário” formado pelas avenidas Salim Farah Maluf, Luiz Ignácio Anhaia Mello, Juntas Provisórias, Presidente Tancredo Neves e Bandeirantes — todas congestionadas mesmo em dias normais, o que indica que o acidente terá efeitos por toda a cidade (o rodízio foi suspenso).
Os recorrentes acidentes em obras do metrô — vale lembrar que, em 2021, um guindaste tombou na expansão do monotrilho da Linha 15 – Prata, na Vila Prudente, Zona Leste — sugerem que algo não tem funcionado nos projetos. Para os especialistas, não se trata de falta de competência técnica nem de problemas naturais do solo da cidade — como circulou no noticiário. “Lugares como Nova York e Londres também têm desafios na composição do subsolo, mas temos um nível de engenharia que dá conta disso”, afirma Helene. Para o engenheiro, o erro está na fiscalização. “Obras desse porte precisam de um órgão gestor com poder para interromper a construção se necessário”, ele avalia. “Instituições de controle e laboratórios públicos foram desmontados nas últimas décadas em São Paulo. Hoje, a fiscalização não tem a mesma capacidade técnica, além de se subordinar aos investidores que fazem as obras”, diz Helene. Nesse aspecto, o acidente atual volta a lembrar o de 2007 (veja no quadro abaixo). “Na época, percebeu-se a necessidade de colocar tirantes para segurar o túnel. Mas a concessionária decidiu continuar dinamitando e escavando”, lembra o especialista.
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A pior tragédia do metrô
No dia 12 de janeiro de 2007, a aposentada Abigail Rossi de Azevedo, de 75 anos, saiu pela manhã para uma consulta médica. O marido a esperou até as 15h30 na Estação Santo Amaro do metrô, na Zona Sul. Ela não voltou. Adepta da natação e de tomar um bom vinho após o almoço, dona Abigail foi uma das sete vítimas da cratera que se abriu naquele início de tarde nas obras da futura Linha 4 – Amarela, em Pinheiros. O desabamento fez surgir um buraco de 80 metros de diâmetro e 38 de profundidade, que engoliu caminhões, máquinas e pedestres que passavam perto dali — o caso da aposentada. Também danificou 99 casas do entorno e provocou um engarrafamento épico na capital. Pela extensão do dano e pelo número de vítimas, foi o pior acidente do metrô paulistano.
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O Ministério Público acusou de negligência catorze responsáveis pelo projeto. O consórcio da obra era formado pelas empresas Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez. Em 2016, a Justiça de São Paulo inocentou doze envolvidos. Outros dois processos foram extintos porque a própria acusação não via mais culpa nos acusados. O STJ ainda analisa recursos do caso.
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Publicado em VEJA São Paulo de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775