Prédios altos ao longo de grandes avenidas e em áreas próximas a transporte mudam o horizonte, e revisão do Plano Diretor volta a discutir se eles vão para o miolo dos bairros
Desde 2014, 741 empreendimentos foram lançados em áreas que permitem prédios até quatro vezes mais altos
Quem passa hoje por grandes avenidas, como Rebouças e Radial Leste, duas das mais movimentadas da cidade, e vê suntuosos, grandes e médios edifícios sendo construídos onde pouco tempo antes havia imóveis degradados ou terrenos vazios depara com um lento e gradual movimento que começou em 2014. Criados pelo Plano Diretor daquele ano, que será revisado em 2021, os chamados Eixos de Estruturação da Transformação Urbana — nome técnico para os locais com grande oferta de transporte no entorno — são extensas áreas demarcadas pela prefeitura ao longo das quais as incorporadoras podem levantar edifícios até quatro vezes mais altos que o permitido anteriormente.
A ideia do instrumento urbanístico, disposto em 6% do território da capital, é preservar o miolo dos bairros e incentivar a ocupação imobiliária nas áreas mais movimentadas, promovendo, portanto, adensamento onde há mais infraestrutura. Para isso, as construtoras precisam cumprir uma série de exigências, como aumentar o tamanho da calçada e instalar comércios no térreo, em vez de muros. O incentivo ao uso misto — residencial e comercial — e o desincentivo à utilização do carro (na maioria das vezes o número de vagas não pode ser maior do que uma por unidade) também são duas importantes inovações da medida.
Entre 2014 e 2018, 14 000 apartamentos foram entregues sem garagem na capital, contra 194 unidades entre 2009 e 2013. Desde 2014, 741 empreendimentos foram lançados nessas áreas, representando mais de 1,5 milhão de metros quadrados. Cerca de 30% desses lançamentos receberam aprovação em 2020 e ainda não ficaram prontos.
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A lógica é a seguinte: quanto mais pessoas viverem perto de vias estruturadas, com transporte na porta, menos dependentes de carros, próprios ou compartilhados, elas ficarão. Moradora de Osasco, a secretária Anelise Barreto de Araújo, 34, gasta cerca de 2 000 reais por mês com transporte por aplicativo para ir e voltar para a Vila Olímpia, onde trabalha. Antes da pandemia ela encarava transporte público diariamente, mas há mais de um ano tem evitado pegar ônibus e trem cheios.
“Hoje deu até vontade de chorar quando vi o preço da corrida: 115 reais só de ida. Imagina a volta! Tive de pegar o trem mesmo. Mas ainda bem que essa fase está acabando e em agosto eu me mudo para perto de um metrô”, comemora. Prestes a se mudar para o Ipiranga, ela vai pagar menos de prestação do apartamento do que gasta com Uber.
“Vou morar a 500 metros da Estação Alto do Ipiranga. O financiamento vai partir de 1 800 reais por mês, menos do que minha fatura do cartão só com transporte”, comemora a secretária, que viverá em um apartamento de 60 metros quadrados. Apesar da construção do novo edifício, a região registra apenas nove empreendimentos licenciados próximo às avenidas e estações de transporte, todos a partir de 2017.
Atual recordista de empreendimentos aprovados ao longo de suas vias, com 133 desde 2014, a região da Penha, que engloba os dois lados da Radial Leste e bairros grandes, como Vila Matilde, vai ver 65 prédios ser levantados por seus distritos nos próximos anos.
“Mas ainda é muito pouco. Você vê o boom de construções que ocorreu no Tatuapé e no Belém, a partir do governo da Marta Suplicy, em 2001, mas a Penha não teve a mesma atenção”, afirma o engenheiro Gustavo Feola, diretor-geral da Gustavo Feola Negócios Imobiliários e autor do livro Vendendo Terrenos, Colecionando Histórias (Editora Laços, 2015). “A Penha era um bairro extremamente forte, com seu comércio local fortalecido, mas hoje caiu muito. O centro da Penha é um bairro meio morto. Você até consegue ver novos prédios em bairros que dizem ser a Penha, como Cangaíba e Vila Ré, mas são outros distritos. Penha é Penha.”
Enquanto a modificação da lei beneficia a chegada de novos moradores a determinadas áreas da cidade e é objeto de desejo de muitos como esperança de revitalização, há quem se queixe da mudança gradual da rotina. Além do entorno das grandes avenidas, os incentivos municipais englobam áreas próximas a terminais de metrô e ônibus.
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Perto da Estação Vila Madalena, há pelo menos seis grandes prédios sendo erguidos, o que acarreta transtornos a habitantes que estavam até a década passada habituados a ver pouco movimento pelas estreitas ruas do pedaço. “Fomos obrigados a conviver com barulho excessivo das obras, sombras enormes sobre as nossas casas e o fim das vilas que existiam por aqui”, diz o publicitário Cassio Calazans de Freitas, 63, nascido e crescido por ali e presidente da Sociedade Amigos de Vila Madalena (Savima).
Ele faz parte de um grupo de associações que defendem a suspensão da revisão do Plano Diretor devido à pandemia. “Não vejo motivo para essa pressa de fazer os ajustes agora. Do jeito que está (com audiências públicas on-line) não vai ter a participação da comunidade. Em dia normal já não tem muita, imagina com a pandemia. A gente acha que não há condições de fazer agora. A prefeitura poderia fazer depois de um ano.”
A gestão municipal descarta, por ora, qualquer suspensão. “O próprio Plano Diretor determina em seu artigo 4º que o Executivo faça uma revisão dos seus instrumentos urbanísticos em 2021. Qualquer descumprimento à determinação legal pode configurar improbidade administrativa. Ainda assim, para alterar o dispositivo do artigo, a gestão municipal precisaria submeter as alterações à sociedade, por meio de um processo participativo”, afirma a prefeitura, em nota.
Sem suspensão, a ordem na gestão de Ricardo Nunes (MDB) é tocar as audiências públicas e recolher as contribuições e sugestões de mudanças, que poderão ou não ser acatadas pelo Executivo. O martelo será batido no fim do ano. Algumas ideias já estão na pauta.
“Nos últimos anos, vimos grandes ofertas de estúdios e microapartamentos, de até 35 metros quadrados. Será que com a pandemia, com o pessoal de home office, ainda é a necessidade da cidade ter ofertas assim?”, questiona o secretário municipal de Licenciamento, Cesar Azevedo. “Com a desocupação das unidades comerciais, não seria o caso de mudar seu uso para residencial? A gente está num processo de revisão. Está pegando os ingredientes e colocando na mesa. A receita do bolo não está pronta. Vamos discutir. Vamos ver qual é a demanda. Nunca foi discutido na cidade uma agenda sanitária”, afirma, referindo-se à necessidade de a cidade se preparar para possíveis novas pandemias.
O número de vagas de garagem também será alvo de discussões. “A lei precisa de calibragem. A limitação de vagas acaba induzindo uma ocupação específica, juntamente com a diminuição do tamanho das unidades. As ofertas de um monoproduto, como o que temos visto, não são boas para o mercado. Os dispositivos adotados até aqui não foram suficientes para induzir uma transformação na cidade”, explica Claudio Bernardes, ex-presidente do Secovi, o sindicato das construtoras.
“Com a desocupação das unidades comerciais, não seria o caso de mudar seu uso para residencial?”
Cesar Azevedo
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Rei dos “apertamentos”, o presidente da construtora Vitacon, Alexandre Frankel, afirma que a demanda por espaços menores não vai diminuir. Das cerca de 4 000 unidades habitacionais construídas nos últimos cinco anos, 80% foram estúdios (antigas quitinetes) e apartamentos de até um dormitório. “Essa demanda vai continuar crescendo. O orçamento das pessoas continua limitado. É lenda o fato de que as pessoas em home office vão se mudar para apartamentos maiores. Uma coisa é querer e outra é poder.”
Outro ponto que estará na pauta de discussões é o sonho das construtoras de erguer empreendimentos maiores no miolo dos bairros. Desde 2014, a lei prevê limitação de até oito andares, o que encarece o preço dos imóveis e inviabiliza economicamente parte significativa das empreitadas nesses locais.
A lógica é estimular as construções nos eixos e deixar de produzir edificações que destoam do entorno, como o caso de um prédio de 168 metros de altura erguido no coração do Tatuapé. Com autorização anterior a 2014 e ainda em construção, o edifício é o segundo maior da cidade, só perdendo por poucos metros para um “vizinho” de bairro, esse localizado em uma área de eixo.
metros é a altura do maior prédio de São Paulo, ainda em construção, no Tatuapé
“Esse prédio do Tatuapé é um absurdo urbanístico”, atesta o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, ex-vereador pelo PT e um dos interlocutores do ex-prefeito Fernando Haddad na confecção do Plano de 2014. “Quando liberam o miolo dos bairros, como (o mercado imobiliário) está pretendendo mais uma vez, cria-se um impacto muito grande. A sombra pega um monte de casas em volta. O Plano estabeleceu uma área onde vai se verticalizar, mas de maneira uniforme, que são os eixos, não os miolos.”
A construção de prédios altos em grandes avenidas não representa necessariamente um conforto na hora de sair de casa. Na Rebouças, para citar uma delas, apesar do boom de novas edificações, a oferta de comércios e serviços ainda é baixa, o que fará com que os futuros moradores precisem se deslocar mais para comprar um pão na padaria, por exemplo.
“Precisamos achar instrumentos para levar esses serviços a essas pessoas”, reconhece o vereador Paulo Frange (PTB). “As pessoas querem ter o transporte na porta para ir trabalhar, mas precisam fazer o lazer a pé. Se o trajeto passa de 1 quilômetro, é longe. Que planos para elas teremos? Ainda não sabemos.”
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Publicado em VEJA São Paulo de 16 de junho de 2021, edição nº 2742