Museu Judaico abre as portas com Torá do século XVI e vista para o centro
Depois de quase dez anos de obras, o MUJ será inaugurado no domingo (5) e terá exposições, café e preciosidades no acervo
Quem passa pela Rua Martinho Prado, no centro da capital, certamente se impressiona com a imponente construção de traços arredondados, com detalhes arquitetônicos bizantinos, no número 128 da via. Datada de 1932 e com 2 495 metros quadrados, ela renasce agora Museu Judaico (MUJ), que abre para o público neste domingo (5). Trata-se da primeira instituição do gênero em São Paulo — há entidades semelhantes nas cidades do Rio de Janeiro e Recife.
Para o leitor melhor se situar, os fundos e a lateral da edificação ficam na Rua Avanhandava, cerca de um minuto a pé de onde estão concentrados os restaurantes do Grupo Famiglia Mancini. Suas instalações incluem além da antiga sinagoga Beth-El, com projeto assinado pelo arquiteto Samuel Roder (1894-1985) e agora restaurada pelo escritório A2, de Adriana Ozaki, um anexo em área contígua, de autoria de Botti Rubin. Com mais de 1 000 metros quadrados, esse novo espaço dispõe de um paredão de vidros acústicos, através do qual é possível contemplar, quase sem ruídos, o vaivém frenético no Viaduto Martinho Prado e na Avenida Nove de Julho.
A construção do MUJ teve início em 2012 e sua inauguração foi por vezes adiada. Em 2016, devido à não finalização da reforma. Em 2020, por causa da pandemia. O valor investido na empreitada é de 60 milhões de reais, incluindo os gastos com obras, infraestrutura e a manutenção futura do museu. A soma teve como fonte pessoas físicas, mas também empresas, via Lei Rouanet. O governo da Alemanha, por meio de um programa internacional de revitalização de sinagogas, também contribuiu com 200 000 euros, nos valores de hoje, cerca de 1,2 milhão de reais.
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“Não é um museu para somente a comunidade judaica, mas também para ela”, afirma Felipe Arruda, diretor executivo do MUJ. O presidente da instituição, Sergio Simon complementa: “Aqui, não vamos somente olhar para o passado. Queremos bolar um futuro melhor para a sociedade”. Completa a trinca Roberta Sundfeld, diretora do acervo.“Fizemos um crowdfunding para comprar os dois projetores responsáveis pela materialização do videomapping na cúpula. A cada cota adquirida, a pessoa podia enviar uma foto de um ancestral que era imigrante”, explica ela em tom animado.
“Teremos aqui uma área educativa. Tive a ideia de criá-la quando fui ao Museu Judaico em Viena e vi uma atividade com crianças que nasceram em países árabes falando sobre os preconceitos que sofriam na Áustria”, pontua Simon. Os estereótipos que pairam sobre a comunidade judaica também vão ser debatidos ali. Em uma área expositiva, que funciona em uma espécie de saguão, no térreo, três telas exibem vídeos com depoimentos de pessoas que tentam definir o que é ser judeu ou judia, a exemplo da cantora Assucena Assucena, da banda As Bahias e a Cozinha Mineira. Se você não vê complexidade nisso, talvez seja porque associa essa determinação estritamente à religião. Não é bem assim.
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“O clássico é dizer que judeu é o filho de uma mãe judia. Mas há várias formas de se converter. Então, não podemos dar a essa pergunta uma resposta absoluta. Na Antiguidade, havia uma identificação étnica, mas houve vários outros povos que se juntaram à comunidade. Todo mundo acha que judeu é branquinho, de cabelo preto, mas em Israel 30% são negros. Ninguém fala disso”, explica Simon. Ele ainda aponta outras variáveis: “Isso também pode passar pela nacionalidade, ligada à Israel, mas não é uma regra. A definição, na verdade, não existe, é uma ilusão”, conclui. Junto à área dos toaletes no Museu Judaico, há uma placa com os seguintes dizeres: “Fique à vontade para utilizar o banheiro com o qual você se identifica.” Parece um detalhe, mas é um sinal evidente do público amplo que a instituição deseja alcançar.
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Ainda à procura de um mínimo consenso, Simon, Roberta e Arruda, que não se identifica com uma religião, apontam um traço comum à comunidade: o gosto pelo debate de ideias. Essa ação se materializa em uma abordagem, com múltiplas linguagens, nas quatro exposições que podem ser vistas com a abertura do museu. Vida Judaica, mostra de longa duração, traz algumas festas importantes no calendário dessa cultura milenar. É o caso do núcleo dedicado ao Pessach, também chamado de Páscoa Judaica, momento em que é celebrada a libertação desse grupo do Egito, em 1446 a.C., onde era mantido em escravidão. Inclui, por exemplo, o registro em vídeo da preparação de pratos como guefilte fish, bolinho de peixe apreciado pelos judeus do centro e leste europeus durante a celebração da data. Também tem longa duração a mostra Histórias Trançadas, que apresenta os fluxos migratórios judaicos para o Brasil ao longo de 500 anos.
A arte contemporânea também é contemplada no MUJ. Em Da Letra à Palavra, Lena Bergstein e Sergio Fingermann selecionaram obras de 32 artistas, como Arthur Bispo do Rosário e Beatriz Milhazes. Destaque para o diálogo entre os trabalhos de Ruth Tarasantchi e Rosana Paulino. A primeira, remexendo na história do Holocausto, já que viveu em um campo de concentração na Itália, e a segunda, revisitando a escravidão de pessoas negras no Brasil. Também está em cartaz no museu a mostra A Inquisição dos Judeus Novos no Brasil: 300 Anos de Resistência.
Ainda entre os outros atrativos do Museu Judaico está a reserva técnica, que será aberta à visitação e possui mais de 2 000 itens, a maior parte vinda de doações da comunidade judaica. Entre eles estão o fragmento datado do século XVI de uma Torá, livro sagrado, assim como a reprodução de uma versão que pertenceu ao imperador Pedro II. A peça mais antiga da coleção é um mapa de cerca de 1630 representando o Brasil Holandês.
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No conjunto, há também talheres com insígnias nazistas, usados no campo de concentração de Auschwitz. Também data do período do Holocausto, o diário de Lori Dublon, com 28 páginas e escrito por uma garota de 14 anos. Da mesma forma, como a jovem alemã Anne Frank, Lori, que vivia na Bélgica, registrou suas impressões daquele período entre 1941 e 1942. Ela narra os momentos anteriores, de vida normal, ida ao cinema e paqueras, para trazer em seguida a necessidade dela e da família de se esconderem. A perseguição nazista é debulhada ainda na já citada exposição Vida Judaica, com objetos e uma instalação em vídeo. O MUJ, que conta ainda com um café, com vista para o Viaduto Martinho Prado sobre a Avenida Nove de Julho e menu assinado pela equipe da delicatessen Kez, tem planos para uma festa literária e um festival de cinema de humor judeu em 2022.
Parte essencial a ser descrita na instituição é o prédio da sinagoga que compõe o MUJ, assim como a história da construção. O templo, que não terá atividades religiosas, foi erguido a pedido das tradicionais famílias Lafer, Klabin e Teperman e integra um conjunto de sinagogas que nos fim dos anos 20 foi erguido além das fronteiras dos bairros que acolheram essa comunidade no início da imigração.
“A Sinagoga Beth-El (Sinagoga Israelita Aske na zi) foi a primeira sinagoga a ser fundada fora do fernando moraes Bom Retiro, mas não a primeira a ter seu edifício concluído. Sua pedra fundamental foi lançada em 1928, mas suas instalações somente foram finalizadas em 1932. Três anos antes, em 1929, era concluído o edifício da comunidade sefardita, o qual funcionava na Rua da Abolição, no bairro da Bela Vista”, assinala Myriam Szwarcbart, pesquisadora que busca financiamento para um guia com a história de setenta sinagogas da capital paulista.
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Os traços da arquitetura bizantina do templo Beth-El, incomum em São Paulo, por sua vez, foram estudados pela professora Anat Falbel, da Faculdade de Engenharia Civil, Arqui tetu ra e Urbanismo da Unicamp. Ela afirma que o prédio guarda semelhanças com outros templos judaicos em diferentes cidades dos Estados Unidos.
Em Chicago, onde existia uma dessas sinagogas, Alfred S. Alschuler (1876-1940), autor do projeto, datado de 1924, justificou a escolha: “Os arquitetos e construtores de Constantino e Justiniano foram inspirados pelas artes e estilos das raças subjugadas pelo Império Romano, sendo razoável assumir que o desenvolvimento do estilo da arquitetura bizantina tomou e incorporou os temas existentes de origem judaica”. São detalhes como esse que fazem valer ainda mais a visita. A entrada ao MUJ é no esquema “pague quanto puder”. O preço sugerido é de 20 reais. Aos sábados, a visitação é gratuita.
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Publicado em VEJA São Paulo de 08 de dezembro de 2021, edição nº 2767