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Conheça as coleções escondidas que guardam livros raros em São Paulo

Tesouros estão em apartamentos particulares, sebo com hora marcada e salas restritas em bibliotecas públicas e incluem obra autografada por Machado de Assis

Por Júlia Rodrigues
Atualizado em 2 jan 2024, 14h11 - Publicado em 15 dez 2023, 06h00
Romulo e Patrícia: cerca de 22 mil livros  (Wanezza Soares/Veja SP)
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Quem caminha pela ruazinha de pouco mais de 200 metros de extensão, em meio às lojas e restaurantes descolados da Vila Madalena, não imagina que ali um insuspeito apartamento guarda livros raríssimos de até quatro séculos atrás. No imóvel onde moram o casal de bibliófilos (nome dado aos colecionadores desses tesouros) Romulo Pinheiro, 50, e Patrícia Peck, 48, fica uma das maiores bibliotecas particulares do Brasil, com cerca de 22 000 obras — metade do que tinha o empresário e escritor José Mindlin (1914-2010), que era considerado o maior do ramo no país.

O acervo escondido na travessa da Zona Oeste tem principalmente títulos difíceis de serem comprados, como primeiras edições e volumes autografados. “Na última década, nos especializamos em literatura brasileira”, diz Romulo, que largou recentemente um emprego de consultor para se dedicar à coleção.

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As estantes de Romulo e Patrícia se tornaram conhecidas após eles criarem um perfil da biblioteca — a Biblioteca Peck Pinheiro — no Instagram, no ano passado, por insistência dela. “Acho importante divulgar os livros, para incentivar outras pessoas a formarem as próprias coleções”, afirma a advogada. A conta tem 27 000 seguidores e traz fotos e histórias das raridades, embora não faltem comentários interessados em visitas guiadas. “É nossa biblioteca particular, fica dentro da nossa casa, então não abrimos ao público”, explica Romulo. As visitas são restritas a amigos, parentes e outros bibliófilos. Foi o caso do professor, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras Antonio Carlos Secchin, proprietário de um acervo de 20 000 livros — que inclui a maior parte dos títulos raros da literatura brasileira — no Rio de Janeiro.

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Romulo e Patrícia em sua bilbioteca particular (Wanezza Soares/Veja SP)

Uma das poucas preciosidades que ele não tem é Espectros (1919), primeira obra de Cecília Meireles (1901-1964), com poemas escritos na adolescência. Renegado pela autora, o livro ficou perdido por décadas, até ser descoberto por Secchin no início dos anos 2000, quando ele preparava uma coletânea da escritora. Na época, o único exemplar conhecido estava com um livreiro de São Paulo, que não deixou Secchin visitá-lo e enviou a ele uma versão xerocada. Após ser arrematado em um novo leilão por cerca de 20 000 reais, o volume chegou ao casal paulistano na pandemia. “Romulo me mandou um e-mail e contou que havia comprado o Espectros”, diz Secchin, que, então, viajou à Vila Madalena para realizar um desejo que talvez só os aficionados compreendam: tocar as mãos naquelas páginas.

São Paulo possui uma espécie de “roteiro secreto” de tesouros literários escondidos pela cidade. Ele inclui bibliotecas privadas como as de Romulo e Patrícia, sebos especializados que só funcionam com visitas agendadas e seções de bibliotecas públicas que precisam de autorização prévia para o acesso.

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“Colecionar é uma doença incurável”

Celebridade entre os bibliófilos paulistanos, Ésio Macedo Ribeiro, 60, tem 14 000 títulos em um apartamento no Centro da cidade, reunidos ao longo de quase quarenta anos de garimpo. A coleção foca na literatura brasileira do século XX. “Cheguei a comprar cinco unidades da mesma edição para ter o exemplar mais perfeito possível”, ele conta. Um exemplo das raridades é o Primeiro Caderno do Alumno de Poesia (1927), de Oswald de Andrade, que traz as assinaturas de modernistas como a pintora Tarsila do Amaral. “No ano passado, paguei um Uber de Porto Alegre a São Paulo para trazer uma coleção que havia comprado. Colecionar é uma doença incurável”, brinca o escritor.

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Biblioteca de Ésio: 14 mil livros (Ésio Macedo Ribeiro/Divulgação)

A bibliofilia tem entusiastas nas novas gerações. O casal Lorenzo Lo Schiavo, 32, e Stephanie Bekes, 34, preenche as prateleiras de um apartamento no Jardim Paulista com uma coleção especializada em arte, comprada em sebos paulistanos e viagens ao exterior. Uma aquisição recente é a primeira edição de Les Cathédrales de France (1914), único livro publicado em vida pelo escultor francês Auguste Rodin (1840-1917), sobre as catedrais do país. “Somos apaixonados, mas compramos sem a pretensão de criar um acervo de raridades”, diz Stephanie.

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Stephanie e Lorenzo em sua biblioteca em um apartamento no Jardim Paulista (Alexandre Battibugli/Veja SP)

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Mais adepto dos títulos antigos e raros, o estudante Pedro H. Z. (que pediu para não ter o sobrenome publicado) começou a colecionar aos 17 anos. Aos 23, tem cerca de 500 obras. Entre elas, uma edição com gravuras do poema épico Jerusalém Libertada (1581), do italiano Torquato Tasso, e um volume de Santo Agostinho com anotações em línguas como latim e hebraico. “Sempre me interessou o livro como objeto — a tipografia, as gravuras. Gostava de ler anotações de antigos donos”, ele diz. O jovem planeja um destino para a coleção: abrir um museu na cidade.

Gilvaldo Amaral, 58, transformou a paixão em um negócio. Há dez anos, ele deixou o cargo de segurança no Metrô para se dedicar a um sebo especializado em livros raros, chamado O Buquineiro. Com um catálogo de 10 000 títulos, sobretudo de literatura brasileira, a loja é conhecida no meio — Romulo, Ésio e Pedro compram ali com frequência.

É possível adquirir um livro pelo site do sebo, ou reservar um horário para conhecer os tesouros, que ficam na sala comercial de um prédio na Avenida 9 de Julho. “Em casos de livros específicos, eu contato diretamente aqueles que poderiam se interessar”, diz Gilvaldo. Os títulos à venda incluem as primeiras edições de Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos (5 800 reais), e de Porão e Sobrado (1938), a obra de estreia de Lygia Fagundes Telles, autografado (1 500 reais).

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Gilvaldo em meio ao acervo do sebo (Ricardo D'Angelo/Veja SP)

Outro sebo do segmento, porém menos “escondido”, sem a necessidade de marcar visita, é o IP Livros Usados, aberto em agosto de 2022. Em uma pequena loja na Galeria Metrópole, na República, o professor de literatura Iuri Pereira guarda um acervo de 3 000 títulos, que inclui também peças menos raras, como livros de arte – foi lá que Lorenzo e Stephanie compraram a edição de Rodin. “Os raros desde sempre tiveram uma função expositiva no sebo, eu costumo mostrar para quem tem interesse”, diz o comerciante.

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Onde encontrar livros raros em bibliotecas públicas

Na Biblioteca Mário de Andrade, na República, onde ficam um dos maiores acervos da América Latina, somente a seção de raros ocupa oito salas e tem 43 000 livros, além de milhares de manuscritos, documentos, mapas e periódicos. Boa parte veio de compras e doações de outras coleções, como a da Biblioteca da Câmara Municipal de São Paulo e a do jornalista piauiense Félix Pacheco (1879­-1935). O acesso aos raros, porém, é restrito a consultas com justificativa e hora marcada. “Recebemos pesquisadores e pós­-graduandos de diversas regiões do país”, diz Joana de Andrade, coordenadora do setor. Somente ela e os quatro funcionários da seção podem folhear as páginas das preciosidades.

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Outra opção pública é a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP, onde fica parte do acervo do bibliófilo, que oferece visitas agendadas. Há, ainda, raridades à mostra no Itaú Cultural, na Avenida Paulista.

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Uma das salas do setor de livros raros da Biblioteca Mário de Andrade (Ricardo D'Angelo/Veja SP)

Romulo e Patrícia também planejam tornar a coleção acessível. Para isso, devem construir um museu em Ouro Preto, em 2025. “Já escolhemos o local”, ele afirma. O público, assim, terá a chance de conhecer histórias maravilhosas escondidas nas páginas raras — como na segunda edição de Poesias Completas (1902), de Machado de Assis (até 10 000 reais), que traz o erro de impressão mais famoso da literatura brasileira. “No prefácio, o autor usa a frase ‘lhe cegara o juízo’. Mas saiu ‘lhe cagara o juízo’. Machado ficou bravo e fez um mutirão para corrigir os livros a caneta. Temos um desses exemplares”, conclui.

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Páginas preciosas

Exemplos de livros raros dos acervos “secretos” da cidade

Suma Teológica (1475)

Obra mais famosa do padre São Tomás de Aquino, é uma compilação de princípios da Igreja Católica. Fica na Biblioteca Mário de Andrade

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Exemplar aberto de uma edição da ‘Suma Teológica’ de 1475 (Ricardo D'Angelo/Veja SP)

Travels in The Interior of Brazil (1812)

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O livro do inglês John Mawe, um relato do Brasil no século XIX, tem o que é considerada a primeira imagem do Pico do Jaraguá (uma gravura). Tem na Peck Pinheiro e na Mário de Andrade

Gravura do Pico do Jaraguá em exemplar aberto de 'Travels in The Interior of Brazil'
Gravura do Pico do Jaraguá em exemplar de ‘Travels in The Interior of Brazil’ (Ricardo D'Angelo/Veja SP)

Espectros (1919)

Primeiro livro de Cecília Meireles, com poemas da adolescência, foi renegado pela autora e é considerado raríssimo entre os bibliógrafos. Está no Instituto Peck Pinheiro

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Folha de rosto de ‘Espectros’ (1919), de Cecília Meireles (Wanezza Soares/Veja SP)
Exemplar fechado de 'Espectros'
Exemplar fechado de ‘Espectros’ (Wanezza Soares/Veja SP)
Lombada de 'Espectros'
Lombada de ‘Espectros’ (Wanezza Soares/Veja SP)

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Flores do mal (1857)

Primeira edição do livro do francês Charles Baudelaire (1821-1867). O exemplar pertenceu ao censor que cortou parte da obra. Além desse, a Mário de Andrade tem um exemplar pessoal de Baudelaire

Folha de rosto da primeira edição de 'Flores do Mal' antes da censura
Folha de rosto da primeira edição de ‘Flores do Mal’ antes da censura (Ricardo D'Angelo/Veja SP)

 

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Exemplar fechado da primeira edição de ‘Flores do Mal’ (Ricardo D'Angelo/Veja SP)

Assim Falou Zaratustra (1902)

O Instituto Peck Pinheiro tem uma edição que traz um soneto escrito a mão por Oswald de Andrade quando tinha por volta de 18 anos

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Soneto de Oswald de Andrade em edição francesa de ‘Assim Falou Zaratustra’, de Friedrich Nietzsche (Wanezza Soares/Veja SP)

Angústia (1936)

Exemplar do romance de Graciliano Ramos que pertenceu a Guimarães Rosa. Tem assinatura e anotações do escritor. Do Instituto Peck Pinheiro

Trecho de 'Angústia' com anotações a lápis de Guimarães Rosa
Trecho de ‘Angústia’ com anotações a lápis de Guimarães Rosa (Wanezza Soares/Veja SP)
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Exemplar de ‘Angústia’ que pertenceu a Guimarães Rosa (Wanezza Soares/Veja SP)

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Memorial de Ayres (1908)

Primeira edição do último romance de Machado de Assis, com dedicatória a mão para Mário de Alencar, filho de José de Alencar que historiadores acreditam ser, na verdade, filho de Machado. Do Instituto Peck Pinheiro

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Dedicatória de Machado de Assis (Wanezza Soares/Veja SP)

De L’égalité Des Deux Sexes (1673)

Um dos primeiros escritos feministas da história, o livro do filósofo francês Poullain de La Barre defendia a igualdade dos sexos — pelo menos em alguns aspectos. Pertence à coleção de Pedro H. Z.

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‘De L’égalité Des Deux Sexes’, de Poullain de La Barre (Pedro H. Z./Divulgação)

Este texto foi modificado.

Publicado em VEJA São Paulo de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872

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