Documentário inédito retrata a família Pereira, com três gerações de DJs
'Veraneio: Uma Antologia Negra' aborda passado, presente e futuro da dinastia musical com avô, filho e neto discotecários em São Paulo
Uma história que reverbera em tantas outras, assim é o caminho de Osvaldo Pereira, ou Seu Osvaldo, 91, o primeiro DJ do Brasil. Sua paixão pela música acendeu a mesma chama nos filhos, como em Dinho, e chegou aos netos, como em Jean, que seguem o ofício de discotecário.
O trio, e a família toda, é protagonista do documentário Veraneio: uma Antologia Negra, lançado com uma primeira exibição nesta quarta (18), no Matilha Cultural (com ingressos esgotados).
Dirigida por Nalu Silva, 29, da produtora Negras Primaveras, a obra vai além de narrar os passos do pioneiro. “A questão familiar é muito forte, e quis trazer isso das gerações. Nós, pessoas pretas, perdemos muito a memória dos nossos mais velhos. A grande missão desse filme é a preservação e a difusão da memória”, diz a diretora.
A semente que germina até hoje na família Pereira foi plantada ainda nos anos 50, quando Osvaldo, nascido em Minas Gerais e curioso pelo rádio, veio para a capital paulista estudar eletrônica.
Instalado na Zona Norte, começou a trabalhar na região da Santa Ifigênia, em uma loja de discos que também fazia a manutenção de equipamentos sonoros importados. “Com o trabalho de técnico e instalador de som na casa das pessoas, ele começa a observar os bons sistemas. E criou o dele, que sonorizava bailes e festinhas, principalmente na ZN e de pessoas pretas”, conta o neto Jean, 21.
Em 1958, após levar sua invenção para eventos na região central, em lugares como o Edifício Martinelli e a Casa do Povo, Osvaldo cria a Orquestra Invisível Let’s Dance — com as cortinas fechadas, tocava discos na vitrola, sonorizados pelo seu equipamento, como se ali estivesse uma das big bands que agitavam os bailes da época.
“O pessoal se surpreendia quando abria a cortina e via que tinha só uma pessoa com o toca-discos e um sistema de som. Foi tudo por amor à música”, explica Dinho, 52. Nomes como Glenn Miller, Ray Charles, Elza Soares e Miltinho figuravam na trilha sonora das festas, que aconteceram até o fim dos anos 60. “Ele começou a trabalhar na multinacional Philco e, antes, se desmotivou, teve filhos, e também surgia uma cena com outras pessoas naquele período”, justifica.
Profundos conhecedores de música, Dinho e Jean, pai e filho, formam uma dupla e tanto. Juntos, fundaram a Veraneio São Paulo, festa que, desde 2022, ocupa diferentes casas, bares e festivais pela cidade — como o Coala, há duas semanas.
“Era fim da pandemia e eu tinha terminado o ensino médio. Decidi então tirar um ano para trabalhar e, ao mesmo tempo, fazer algo divertido. Pensei em criar uma festa em que tocassem eu, meu pai e meu avô, e assim me desafiei a começar a tocar — minha família nunca me induziu a ser DJ, no sentido de uma influência agressiva. Foi um caminho natural”, diz Jean.
Dinho, por sua vez, aprendeu o ofício do seu irmão mais velho, Tadeu. “Ele foi o mentor que me ensinou como funciona a dinâmica de uma festa, os discos, os equipamentos, as grandes equipes, os lojistas, o Centro, toda a cultura que envolve o baile black. Ele me colocou nessa vida”, afirma.
O filme tem novas sessões marcadas no Ação Educativa, na Vila Buarque, dia 27 de setembro, e também na Vila Itororó, no Bixiga, dia 7 de novembro — todas com retirada de ingressos gratuitos via Sympla.
Enquanto a Veraneio segue em plena atividade, Seu Osvaldo fez um último baile em abril deste ano, no terraço do Edifício Martinelli, registrado no documentário. “Ele tem uma gratidão imensa por tudo isso. O processo da descoberta (da sua história) se deu ali nos anos 2000, por uma jornalista, DJ e pesquisadora (Claudia Assef) com a ideia maluca de pensar que alguém começou isso aqui (a profissão de DJ no Brasil). Nessa busca, ela chegou ao meu pai”, conta Dinho.
No cartaz do filme, o trio de discotecários aparece dentro de um carro que simboliza o encontro das gerações. É a Chevrolet Veraneio de seu Osvaldo, que esteve presente em momentos como o casamento de Dinho e a viagem de Jean da maternidade para casa. E, claro, deu o nome à festa e à obra.
“Tudo foi acontecendo de uma maneira não só orgânica, mas precisa, um tanto metafísica, até podermos desfrutar desse legado hoje”, define Dinho. ■
Publicado em VEJA São Paulo de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911