Babado Forte, de Erika Palomino, ganha edição atualizada
Com foco em todo o Brasil, livro que traduziu a moda e noite de São Paulo nos anos 90 retorna às livrarias
Saem os clubes, entram os galpões. Na fila de algum prédio abandonado, a fumaça de cigarro cruza com a dos vapes saborizados (perigosíssimos para a saúde). Na pista, os paetês coabitam com as transparências. E os GLS sumiram: agora são LGBTQIA+.
Nos anos 1990, Erika Palomino, 56, era a testemunha ocular da moda e da vida noturna paulistana, traduzida semanalmente na coluna Noite Ilustrada, do jornal Folha de S.Paulo, e que renderia o emblemático Babado Forte (Ubu; 169 reais), livro pioneiro que se tornou referência no assunto e acaba de ser atualizado 25 anos depois, com capítulos inéditos sobre movimentos culturais de todo o país.
A partir dos relatos da jornalista e curadora, o título cravou o sucesso da música eletrônica e as tendências que antecederam a virada para o século XXI, a maioria delas “importadas” dos Estados Unidos e de países europeus.
“As influências vinham dos clubes de Londres, da cena gay de Nova York e do tecno de Berlim”, relembra Erika.
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Com novos movimentos locais criados por todo o Brasil, a história agora é outra. O capítulo final do primeiro livro, com “projeções” sobre o futuro desse cenário, serviu de fio condutor para a reedição, cujo escopo extrapola o eixo Rio-São Paulo e abraça estilos regionais — entre eles o tecnobrega de Belém, que também conquistou a capital paulista. Na nova fase, entraram personagens da cena drag e da cultura ballroom; selos de coletivos negros, como a Batekoo, criada em Salvador; e festas de sexo, como a Dando.
Para completar a edição, Erika teve a ajuda de uma equipe de dezessete integrantes de várias partes do país, responsáveis por entrevistar mais de 200 pessoas.
“A intenção foi criar um grupo que fosse o mais plural possível e de diferentes territórios, para alcançar outros horizontes.”
Com tarde de autógrafos marcada para 23 de novembro na Biblioteca Mário de Andrade, o livro chega às prateleiras a partir de quarta (30).
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Apesar do foco em São Paulo e Rio de Janeiro, a obra original já acolhia a diversidade à sua maneira, destacando estilistas, DJs e empresários em ascensão na década de 1990.
“Eu nem sei se existiria sem a Erika”, dramatiza Beto Lago, 54, ex-modelo e produtor do Mercado Mundo Mix, evento com música, brechós, lojas e estúdios de tatuagem, bastante popular naquele período.
Por lá, só chamava a atenção quem era “normal”, “sem cabelo colorido, tatuagem, piercing”, segundo a descrição de Erika no novo livro. “Uma nota de rodapé levava 5 000 pessoas ao evento. Ela era a antena parabólica que projetava o que a gente vivia naquele microcosmos”, reforça Beto.
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Os babados semanais renderam histórias de quem decidiu vir morar em São Paulo, estudar moda ou até sair do armário, garante Erika.
“Era algo irreverente e descompromissado. Tinha um charme, apesar de poder parecer um pouco pedante. Eu estava muito dentro dessas cenas, então só reproduzia o que ouvia e era tudo bem orgânico, para usar uma palavra de hoje.”
Mulher trans, negra e baiana, Isa Silva se mudou para cá com o Babado debaixo do braço. “Esse livro me acompanhou nos dois anos e meio de curso de moda. Ali eu vi que a moda não é nada sem a noite. Quando me formei, anotei o nome das pessoas que queria conhecer em São Paulo e uma das primeiras foi a própria Erika”, diz.
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Erika Palomino fotografada no Terraço Itália, da República“Nós tínhamos uma visão muito homogeneizada do que era moda, ainda elitista e cheia de padrões”, acrescenta Luiza Brasil, 36, comunicadora e criadora da plataforma Mequetrefismos. “Erika trouxe uma outra perspectiva, mostrando onde surgem as tendências: nas ruas, nas cenas, nas festas.”
As pistas eram a passarela de muita gente. “Dava pra ver as pessoas se revelando na autenticidade”, descreve o estilista Walério Araújo, 54, precursor das plumas e paetês nos looks e frequentador assíduo do extinto clube Glória, na Bela Vista, onde dava as caras com as travestis, suas primeiras clientes.
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“Foram vários os babados, fortíssimos”, diverte-se Dudu Bertholini, 45, designer e integrante do time de jurados do reality show Drag Race Brasil. “Lembro de estar no clube e uma pessoa bater no meu ombro. Quando viro, era Erika perguntando quem era eu e o que fazia. Morri de emoção.”
Depois da adolescência em Limeira, interior paulista, Dudu veio à capital com 17 anos e conseguiu estágio em uma coluna de jornal. “Transformei aquilo numa versão de Babado Forte! Aí ela me estampou no jornal e tive uma grande guinada profissional”, recorda.
Muita coisa mudou desde a virada do milênio. Inclusive a autora. “De rainha da noite, passei para rainha do ‘boa noite’”, brinca Erika, que diz ter baixado a frequência noturna. “E eu gosto de acordar cedo. Talvez me levante na hora em que ia dormir naquela época: às 5h30 da manhã.”
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Mas, se fosse badalar hoje, qual seria sua cena? “Gosto muito de quadra de escola de samba e das variações do funk. Essa vida e intensidade me interessam.”
Além da fama equivocada de baladeira, os 35 anos vividos em São Paulo disfarçaram a origem carioca. “Muita gente não sabia que nasci no Rio e estranhou quando voltei pra lá em 2021.”
De volta à cidade natal e aos costumes diurnos, a praia é sua nova pista. “Gosto dessa espécie de invisibilidade e privacidade que a praia e o samba proporcionam, onde você é só mais um”, afirma a nova Erika, que, assim como os hábitos noturnos, não parou no tempo.
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LINHA DO TEMPO
Uma retrospectiva com destaques da história da vida noturna paulistana
1990
Década de pioneiros da cena, como os clubes Nation, Massivo e Sra. Krawitz e a drag Kaká di Polly, que se deitou na Paulista na 1a Parada (1997)
2000
Virada do milênio é protagonizada pelo surgimento do clube Lov.e e a festa Grind, a primeira a tocar rock para a comunidade LGBT+ na cidade
2001
DJ Marky no antigo festival de eletrônica Skol Beats, no Autódromo de Interlagos. Ele foi um dos poucos a tocar em todas as edições, até 2008
2002
Abertura da Funhouse, clube de rock precursor da cena indie na Augusta, e do Susi in Transe, criado por dois seguranças do Sra. Krawitz
2003
DJ Bispo e Jota Jota Davis (à direita, na foto acima), personagem querido da noite paulistana e host da Torre, casa que atingiu seu auge com a festa Debut
2004
Um dos clássicos símbolos da época foi o Smiley, aqui visto no formato de um balão inflável em um registro daquele ano, em meio ao agito dos clubbers
2009
Artista e ativista LGBT+ Alisson Gothz no clube Glória. Ano também teve a criação do famoso bloco Acadêmicos do Baixo Augusta
2010
O conceito de clube sai de moda. Nascem coletivos como Voodoohop, que popularizou a festa alternativa, itinerante e em espaço inusitado
2014
Pista da Admirável Mundo Nova Luz na Virada Cultural. Surgem a Batekoo, que celebra a cultura negra, e a Festa Mel, dedicada a sons brasileiros
2020
Naquela década, com a diversificação musical, a figura do DJ volta a ganhar destaque nas festas de aparelhagem, tocando remixes de hits do momento
2022
Performer Loïc Koutana no Festival Gop Tun. Festa compõe cena alternativa e eletrônica junto de outras como Blum, Capslock e ODD
2023
Festival de 10 anos da Mamba Negra, que virou um ícone do conceito de festa independente e da nova cara da vida noturna na capital paulista
Coluna deu voz à moda jovem
Foi na Noite Ilustrada que conhecemos jovens criadores como Alexandre Herchcovitch
Até meados dos anos 1990, os lançamentos de moda costumavam ocorrer de maneira esporádica, discreta, e normalmente se destinavam aos clientes da própria marca. São Paulo não tinha uma semana de moda para chamar de sua, mas já contava com estilistas saídos das faculdades de moda e dispostos a botar a sua ideia para andar — literalmente.
Com o surgimento de projetos como o Phytoervas Fashion e o Morumbi Fashion (que mais tarde se tornaria a São Paulo Fashion Week), o setor conquistou uma plataforma para se expressar de maneira mais organizada e o público, em geral, descobriu que um desfile de moda era “o” lugar para ver e ser visto.
Foi nesse contexto que nós, jovens naquela época, descobrimos a coluna Noite Ilustrada, que a jornalista Erika Palomino publicava no jornal Folha de S.Paulo. Seus textos deram protagonismo aos criadores iniciantes que não estavam na grande mídia. E tirou o pó da cobertura de moda, que colocava o assunto em um lugar eurocêntrico, elitista e dominado por regras de bom gosto.
As colunas de Erika nos ajudaram a apresentar nomes como Alexandre Herchcovitch, então, um jovem cabeludo que adorava caveiras e fazia figurino para os shows da drag queen Márcia Pantera. Foi uma revolução que fez com que outros jornais reforçassem a sua cobertura de moda. Nessa época, eu ingressava no ofício, no Caderno 2, do Estadão, e acompanhei todo esse movimento pioneiro. (Vanessa Barone)
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Publicado em VEJA São Paulo de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916