João de Deus: Cura e Crime mostra até onde a violência pode chegar sob o pretexto da fé
Ao mesmo tempo que não contesta os dons do médium, documentário da Netflix apresenta depoimentos de suas vítimas de abuso ao longo de décadas
Documentários sobre casos que marcaram o Brasil e o mundo ganham cada vez mais a atenção do público assinante de streamings como a Netflix. Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime é um dos exemplos mais recentes, mas, em João de Deus: Cura e Crime, a palavra que se repete em ambos os títulos possui sentidos distintos.
Os tipos de violação que João de Deus cometeu ao longo de décadas se diferem do ato brutal de Elize, que durou uma noite. As consequências das condutas do médium, outrora famoso e respeitado internacionalmente, ainda ecoam nas vidas das sobreviventes de quem abusou.
A produção de quatro episódios se aprofunda na carreira de João Teixeira de Faria e em seus feitos na Casa de Dom Inácio de loyola, que fundou em 1976 e recebia pessoas das mais diversas nacionalidades. A parte que foca os dias de glória do local, assim como os testemunhos de quem afirma ter sido curado pelo médium mental ou fisicamente, abre o documentário e apresenta a dimensão de seus feitos. Posteriormente, o contraponto é formado a partir de depoimentos das vítimas de Faria, e isso é costurado de forma intrigante pela montagem.
Ao longo dos capítulos, com cerca de uma hora de duração, tudo o que acontecia na Casa, localizada em Abadiânia, no estado de Goiás, vai ganhando contornos cada vez mais sérios e chocantes. Ao mesmo tempo que são mostrados registros de famosos indo ao encontro de João de Deus (como a apresentadora Oprah Winfrey, por exemplo), as mulheres que aceitaram falar às câmeras relembram os traumas que aconteciam sob aquele teto — o endereço que, até a prisão do médium em 2018, era tido como um espaço de fé sem limites e milagres celebrados por todos.
Seus dons nunca são contestados na obra — e é isso o que a torna tão interessante do ponto de vista externo: a intenção é a de provocar o argumento de que essa pessoa se aproveitou de algo extraordinário e sagrado para, então, desferir ataques silenciosos sob o pretexto da fé.
O tom de denúncia em João de Deus: Cura e Crime torna-se cada vez mais evidente à medida que as informações das entrevistas batem e o método de aproximação do condenado é explicado. Ao ver a ânsia das vítimas em encontrar a tão procurada cura (seja para elas mesmas ou para entes queridos), o médium adquiria espécies de álibis, que duraram anos.
Até o desfecho do documentário, ele permanece com o discurso de inocência. Já as mulheres persistem na manifestação da luta por justiça, uma vez que João de Deus encontra-se em prisão domiciliar desde o início da pandemia.
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Publicado em VEJA São Paulo de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754