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Saúde, bem estar e alegria para os paulistanos

Uma vida inteira entre a lucidez e a esperança

Após receber diagnóstico de câncer de mama, Ana luta para transformar visão sobre a vida e criou projeto para auxiliar pessoas com doenças graves

Por Ana Michelle Soares, em depoimento a Helena Galante
1 out 2021, 06h00
arte de borboletas brancas voando em cenário branco
 (Paci77/Getty Images)
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Uma moça de 30 e poucos anos me ensinou sobre esperança em seus últimos dias nesta dimensão. Sei que tal confissão deve causar um desconforto em você, afinal, como uma pessoa prestes a morrer ensinaria o que centenas de livros, filosofias e reflexões não foram capazes?

Explico.

Ter uma doença grave é caminhar em um desfiladeiro bem alto. Um olhar medroso e cartesiano da vida temeria tal aventura. Mas quem compreende que o destino é comum a todos é capaz de abrir os olhos e contemplar a paisagem. Acredite, a vista é clara, ampla, extraordinária.

Há dez anos caminho pelo estreito da vida. Abri um papel em uma noite fria de outono que me dizia que dali em diante tudo seria diferente. Eu estava com câncer, aos 28 anos, e era momento de deixar que as folhas ilusórias do controle caíssem junto com o ciclo da natureza que findava. Eram tempos difíceis. Como a maioria das pessoas que conheço, vivia numa constante anestesia. Carreira, planilhas, dinheiro, casa nova, sucesso, ostentação e a necessidade de validação do mundo. Entre quatro paredes, vivia uma relação abusiva, secreta, afinal, que vergonha seria expor minha vulnerabilidade e ver desmoronar meu castelo de areia.

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De lá pra cá, o currículo vitae que antes alimentava meu ego carente de mostrar quanto estava preparada para ser maior e melhor cedeu lugar a mais de 100 sessões de quimioterapia, além de radioterapia, cirurgias, constantes internações e um corpo que desafia as estatísticas por permanecer vivo.

A sociedade só é capaz de lidar com a cura. É como se o fato de estar doente fosse um atestado de derrota. Mas tenho uma notícia: a finitude é crônica. Diagnóstico que só pertence a quem respira.

Ela respirava. E sabia de sua finitude.

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Era a primeira vez que nos víamos pessoalmente. Ela queria conversar, e esse é um pedido que jamais recuso. Estava frágil, conectada a aparelhos que forneciam medicações para que ela conseguisse lidar com as dores causadas após anos tratando de um câncer gástrico. Apesar disso, sorriu pra mim da maneira mais doce e amorosa que foi capaz. Eu me encontrei em seu olhar. Compartilhávamos a mesma trilha do desfiladeiro.

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Ela me dizia que sabia exatamente o que estava acontecendo em seu corpo e que a ampulheta do tempo não a favorecia. Filosofamos brevemente sobre esse deus Cronos.

Concluímos que a vida é tecida por esse único tempo chamado agora. E no agora dela não cabia a morte. Cabia esperança. Sonhava com a possibilidade de uma última saída do hospital, para que o noivo não guardasse dela apenas lembranças de dor. Conheceram-se logo após seu diagnóstico, e ele a amou tão profundamente que não viu nos desafios de um tratamento motivos para não querer sua companhia. coisa rara hoje em dia.

Ela queria sonhar.

Os médicos haviam me comunicado que seria difícil ela sair do hospital. O que eles não entenderam é que ninguém tem o direito de impedir que uma pessoa sonhe. A esperança era a paisagem derradeira que ela queria habitar. “Sei que talvez eu não realize, mas na minha mente, enquanto sonho, é real.”

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Partiu dois dias depois da minha visita, gravando em meu peito o real sentido de ter esperança.

Há tempos não espero mais.

A ilusão da imortalidade é um espaço cômodo que nos permite procrastinar. Parados, nós nos afogamos em contradições. Não queremos envelhecer, mas acordamos na segunda esperando pela sexta, transformando em inúteis cinco dias da semana. Esperneamos pelo milagre, mas somos incapazes de reconhecê-lo na beleza de mais um dia. Somos escravos de likes, validações e vazios de sentido. Recitamos frases de positividade, mas seguimos submersos no mar do ego que nos cega para nossas relações e densidades.

Queremos amor, mas nem ao menos nos esforçamos para ser gentis. Nunca parece ser a hora certa de viver a totalidade. De abrir o coração e desejar profundamente estar presente. De tomar a decisão de se lançar no rio e fluir no embalo da vida.

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Ciente da minha mortalidade reaprendi a viver. E tenho vivido os melhores últimos dias, meses, anos da minha vida. Quanta gente saudável que já morreu sem ter vivido.

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Quanto tempo desperdiçado esperando pelo futuro hipotético e idealizado pra ser feliz.

É morrendo de vez em quando que aprendemos o valor de cada ciclo e relação. É olhando para a vida que sentimos quão poderoso é o ar que baila no movimento perfeito da respiração.

A verdade é que nada neste mundo é roteirizado. Todos os dias lidamos com a impermanência. As pessoas não são as mesmas. Os planos não são scripts decorados.

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Tudo está em movimento o tempo todo. As marés, as estrelas, as células, os átomos.

Talvez seja essa a graça de ter esperança: o frio na barriga por não saber o próximo lance. E as escolhas são claras, ou você paralisa diante do que não pode mudar, ou você constrói sonhos em cima do imprevisível. O homem é capaz de sobressair às circunstâncias, sejam elas quais forem.

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Dez anos atrás minha vida se alinhava com histórias sobre quem parou de esperar. Elas aprendem a viver esperanças diárias, ainda que a esperança do dia seja que ele acabe.

Navegam entre a lucidez de sua finitude e da compreensão de que as coisas são como são e é uma escolha interna decidir habitar o espaço do ordinário ou do extraordinário de cada agora, mesmo que seja em sonho.

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Sempre me perguntam como eu acho que seria minha vida sem o câncer. Acho tão bobo isso. Qual a necessidade de esperar por um tempo que não existe? Só sei responder pelo que é, hoje, com cada desafio que o adoecimento me impõe. E lhe digo: é uma vida que faz muito sentido. Não pela doença. Não dou a ela tanto palco. O trabalho sujo da transformação me arremessou no despertar de uma consciência onde me permito viver por inteiro.

Hoje, medicalizam o sofrimento e as pessoas se veem incapazes de demonstrar suas dores. Não encontram compaixão. algumas se apegam à esperança de que alguém ou alguma coisa as resgate. Mas esse tempo de espera não chega. No final das contas, estão todos em busca de alguma esperança de pertencimento à vida.

Se me permite a dica, apenas pare de esperar o momento perfeito.

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A vida está à disposição de quem se permite ter esperança. Pelo menos uma por dia: abraçar o filho, tomar um banho gostoso, sentir o cheirinho do pão saindo do forno, ver o sol se pôr, o sorriso da menina bonita, a cama quentinha e uma boa noite de sono. E, se o dia for difícil, saber que a esperança é que o outro seja melhor.

Ela me ensinou a não esperar. Mas espero tê-lo encontrado entre uma palavra e outra desta história. Quem sabe você também a encontre, com sorriso doce e olhos profundos.

Um pé na lucidez e a leveza de poder sonhar.

A esperança é um espaço que só pertence a quem caminha…

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Ana Michelle Soares sorrindo de lado olhando para cima
(Divulgação/Divulgação)

Ana Michelle Soares é jornalista, escritora e ativista social. Paciente de câncer de mama em tratamento contínuo desde 2011, é autora dos livros Enquanto Eu Respirar e Vida Inteira, publicados pela editora Sextante, e do perfil @paliativas no Instagram, onde desmistifica o conceito de “cuidados paliativos”, transformando a finitude na mais importante ferramenta de autoconhecimento que existe. Acredita que legado é crescer como ser humano e entre uma quimioterapia e outra coordena o projeto Casa Paliativa, que auxilia pacientes com doenças graves e incuráveis a encontrar seu espaço de legado, vida, sagrado e dignidade.

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Publicado em VEJA São Paulo de 6 de outubro de 2021, edição nº 2758

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