Transbordar
Para Allan Dias Castro, as pessoas mais fortes não são as que fazem mais força para esconder suas fraquezas
Antes de entender que as pessoas mais fortes não são as que fazem mais força para esconder suas fraquezas, me orgulhava em dizer que, para encarar este mundo tão duro, eu precisava de ideias concretas, e de um coração de pedra batendo num peito de aço. Eu tinha de ser firme, consistente e, se isso não fosse convincente, estaria aí o meu fracasso. Meu lema, talvez replicado de alguma memória arraigada, por muito tempo foi: “Se chorar, perdeu. engrossa essa voz e diz que não doeu”.
Eu achava que estaria protegido atrás da minha máscara (ou seria uma carranca?), mas, geralmente, os sentimentos de que nos defendemos são os de que mais precisamos. lá estava eu querendo bancar o herói sem perceber que todo peso de existir estava nessa fantasia de poder que usava por aí.
O medo de demonstrar fragilidade me tornou hábil em fazer críticas a desconhecidos, mas incapaz de olhar para alguém próximo e dizer “eu te amo”. Enquanto carregava a cobrança de ser forte o tempo inteiro, meus textos empilhavam os traumas do mundo, sem dar a menor ideia de como resolvê-los, obviamente, por não ter tido coragem nem mesmo de encarar os meus. A impressão era de que eu escrevia como se a relevância de um poema estivesse em quão fundo ele é capaz de mergulhar, infinitas vezes, em uma ferida aberta.
Minha escrita só parou de refletir essa facilidade de apontar incômodos quando encontrei na vulnerabilidade a minha maior defesa, percebendo, finalmente, que ninguém ganha a competição de quem acumula ou só divide os momentos mais tristes. Afinal, a dor não passa apenas porque nós a passamos adiante. Assim, eu troquei a cobrança de me proteger o tempo inteiro e não engolir desaforo, pelo superpoder de ser feliz de quem não engole o choro. Sim, todo sorriso aberto traz em si algumas cicatrizes, e são essas linhas que contam nossas melhores histórias.
No começo da pandemia, eu vivi a experiência de me tornar pai poucos meses de pois de ter perdido o meu. Para transpor o luto decorrente de uma perda dessa magnitude, eu literalmente me abracei à nova vida que havia chegado e foquei em continuidade. Eu, que por muito tempo encarei a finitude como uma ameaça, passei a percebê-la como um alerta ao privilégio de estarmos vivos, confirmando, através de visitas constantes da saudade, que a vida não dura para sempre — é durante.
Como eu já havia me livrado da armadura que sufocava os sentimentos dentro do peito (na ilusão de que ignorar um problema seria resolvê-lo), eu pude perceber que cada pessoa que a gente encontra tem uma história por trás das histórias que nos conta. Sonhos que foram interrompidos, medos escondidos, mas também coragens que nos deixariam surpresos pela força descoberta quando tudo parecia já não ter solução. Só a gente sabe quanto chorou para que hoje as lágrimas tenham gosto de alma lavada. Se tivermos a sensibilidade de entender o momento de cada um, fica claro que felicidade não é uma competição, mas uma conquista. Por isso, respeitar a dor de alguém é também dar valor aos seus momentos mais felizes.
Em setembro deste ano, tive a alegria de lançar meu novo livro, chamado A Monja e o Poeta, em parceria com a Monja Coen. Entre os onze temas escolhidos, lá está ela, a tal felicidade. celebramos nosso encontro misturando a sabedoria da Monja com os meus poemas, entre eles o Transbordar, que traz o seguinte trecho:
“Felicidade é como se fosse uma fonte que só seca se você não regar / Não é porque os outros estão regando a deles que a sua vai secar / feliz daquele que sorri com a alegria do outro / Porque aprendeu a transbordar”.
Sigamos respeitando as lágrimas, nossas e do outro, sem perder o tempo de um sorriso nos perguntando quando a felicidade vai chegar. Lembre que o durante é a nossa chance, portanto, se for para guardarmos bons sentimentos, que seja no peito aberto. Vamos transbordar!
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Publicado em VEJA São Paulo de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764