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A Tal Felicidade

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Saúde, bem estar e alegria para os paulistanos

Casar consigo

O poeta e radialista Fabio Malavoglia reflete como a felicidade é, no fundo, um casamento consigo mesmo

Por Fabio Malavoglia, em depoimento a Helena Galante
18 mar 2022, 06h00
Imagem mostra desenho de mulher sentada em flor regando outra flor.
A felicidade nada tem a ver com milhões de seguidores, rios de dinheiro ou ser “celebridade”. (Getty Images/Ponomariova_Maria/Divulgação)
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Comecemos pelo fim: então o príncipe e a Cinderela se casaram e viveram felizes para sempre. O conto da carochinha, para crianças, no qual os assim chamados adultos já não creem. Com exceções (é triste dizer) raras, e a alegria (rara também) de ser uma delas.

Eis minha história. Nasci em Milão, na Itália. cheguei a terras tropicais aos 6 anos de idade. Não falava um só til de português. Meus pais, entusiastas da integração, me puseram na escola, sem anestesia. Eu, agarrado à saia da mãe, de calças curtas, tímido e tolo, entrei de cara num bullying pesado.

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Descobri, sob as porradas, que aprender português (com fluência, repertório e sem sotaque) diferia da matemática, da história ou geografia: era vida ou morte. No fim do ginásio eu me vi, disparado, o melhor redator da minha turma. E tudo que fiz depois dependeu — e depende — do domínio, ou melhor, do amor por esta língua, a “última flor do lácio, inculta e bela”: escritor, jornalista, produtor cultural, tradutor, radialista, roteirista, contador de histórias, poeta, podcaster.

Como ocorre nos bilíngues, vivia simultaneamente em dois idiomas. Tal embate abriu as palavras, revelou o ritmo, a cadência da fala, o sabor dos termos. Entre Monteiro Lobato e Emilio Salgari vieram a mim os deuses gregos e a épica da aventura. Os livros me puseram na USP (na ECA e na FAU, que não acabei).

Sonhador, ingênuo, órfão aos 26, parti para a vida. Ainda não sabia namorar, mas a paixão pela leitura frutificou em talentos: concursado no Sesc (foi um terceiro vestibular), primeiro coordenador de programação da fábrica da Pompeia. O sucesso foi grande, e a projeção também. Mas me demiti, em ato imaturo.

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Apelei ao diploma de jornalista: troquei sonhos poéticos pelas hard news. Entrei para a TV: fui pauteiro, chefe de pauta, editor-chefe, diretor de jornalismo. Saí, escrevi um livro de poemas, outro de arqueologia, uma fábula infantil. Dirigi videopoesias, narrei contos para adultos e crianças, descobri minha voz de locutor.

Tudo foi brilhante. Mas, apesar dos talentos, ou devido a eles, fui relegado. Só que a esperança teimava. Talvez porque ao longo de todos esses anos, em paralelo a tudo, a poesia e a fábula me conduziram, e por elas cheguei às tradições antigas e aos textos revelados, aos sábios e profetas de todos os tempos, a uma consolidação de fé (que, diz São Paulo, é tangível: “a substância das coisas que esperamos”).

Coincidências benfazejas me acompanharam, enquanto eu praticava ioga, nadava com o mestre zen Kan-Ichi Sato, estudava tradições que confirmavam lendas, praticava o budismo tibetano, conhecia xamãs e feiticeiras, buscava os sufis e lia a mim mesmo, enfim, nos versículos das revelações.

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Por fim, âncora de um prestigiado programa de rádio por seis anos, vi o chão sumir sob meus pés, de uma hora para outra fui convidado a retirar-me. Sem ter norte, acatei uma alheia sugestão, fui dar aulas pelo Zoom, mesmo avesso a vender os meus estudos.

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Até que, numa intuição, eu busquei um patrocínio (que deu certo) e criei um podcast, o Ímã Rádiocast, mix febril de conto, poema, entrevista, música icônica e locução performática. Para “o prazer da escuta”, para os “elétricos do êxtase”.

E dei-me conta, meses depois, que — pela primeira vez! — eu trabalhava para mim (não para uma instituição ou empresa) e que, com inédita liberdade, finalmente estava usando os saberes que reuni, como queria: ritmo de fala, timbre de voz, amor dos versos, magia das fábulas, a épica das canções, a alegria nas entrevistas, as sínteses do roteirista, a intuição do artista.

Dei nome ao que faço: uma locução eletropoético-vibrante. Sei que é um dom, e que a rigor não me pertence, sou apenas o “amigo do noivo”. Posso assim louvar esses talentos sem soar “satisfeito de mim mesmo” nem cair no ridículo do elogio em causa própria.

Dizem as escolas de sabedoria, as tradições espirituais, os santos, profetas e sábios: a única realização real é buscar e encontrar a si mesmo. A criação do Ímã Rádiocast não se divorcia da busca interior, é só um reflexo: “No mundo não há janelas, só espelhos”.

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Sobre o Oráculo de Delfos lia-se: “conhecete a ti mesmo, e conhecerás os deuses e o universo”. A felicidade nada tem a ver com milhões de seguidores, rios de dinheiro ou ser “celebridade”. Pois é casar consigo mesmo. com aquela que tinha sido deixada nas cinzas, embora fosse a única digna da coroa. Jamais desistamos dela.

No dizer do maravilhoso ator e cômico italiano Roberto Benigni, nós a conhecemos na infância e depois a escondemos tão bem que esquecemos onde. Mas está lá, esperando, dentro de cada um. As palavras sábias vão nos inspirar, mas a busca será nossa. E um dia, ainda oculto, sob a chuva de flores, ante o altar de nosso coração, nos uniremos enfim com aquela, com aquele, por quem esperamos nossa vida inteira.

Imagem mostra homem careca de terno em mesa com fone e microfone.
Fabio Malavoglia é poeta e radialista do Ímã Rádiocast, o podcast do prazer da escuta. (Arquivo pessoal/Divulgação)

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Publicado em VEJA São Paulo de 23 de março de 2022, edição nº 2781

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