Itaquera se transforma para receber a Copa do Mundo
Nosso repórter morou por dois meses no bairro, que, às vésperas da grande festa do futebol, ainda se acostuma com o fato de ter saído da periferia para o centro das atrações do mundo
A exemplo de muitos paulistanos, eu jamais havia colocado os pés em Itaquera antes de o lugar ser escolhido em 2011 como o palco de abertura da Copa. Quando assinei, há dois meses, o contrato de locação de um apartamento para morar no local com o objetivo de acompanhar de perto as transformações produzidas pelo evento no bairro, já tinha ouvido falar do boom imobiliário na região. Mesmo assim, os valores me surpreenderam e soaram como um verdadeiro chute nas alturas. “Os aluguéis para a temporada começam a partir de 10 000 reais por mês”, disse, com naturalidade, um corretor da área.
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Depois de muita conversa, fechei em abril um acordo de 6 000 reais por um apartamento de 48 metros quadrados no 4º andar do condomínio São Firmino, na Cohab Padre José de Anchieta. O lugar não tem porteiro nem vaga definida na garagem (uma por unidade). Isso mesmo. Acomodação bem longe do padrão Fifa. Da janela da sala, porém, é possível ver a Arena Corinthians, que fica a 350 metros dali. Antes da construção do campo, esse imóvel era locado, no máximo, por 1 000 reais. O valor hiperinflacionado o pôs no mesmo patamar de preço de um endereço do Alto de Pinheiros com 200 metros quadrados, três suítes, hidromassagem, cinco banheiros, closet e churrasqueira.
O efeito da Copa no pedaço vai muito além do mercado imobiliário, percebi logo depois de me mudar. Na manhã de uma terça, no fim do mês passado, acordei às 7 horas da manhã com um estrondo que fez tremer as janelas e deixou um rastro de fumaça no céu. Coloquei a cabeça para fora do apartamento e vi outros moradores com a mesma cara de sono e de espanto acompanhando o objeto responsável pela confusão: um caça do Exército que fazia no momento um sobrevoo pela região. “Vai ter Copa ou vai ter guerra?”, brincou um homem.
Depois de um tempo vivendo ali, eu me acostumei com o movimento aéreo acima do normal. Diariamente, o local é visitado por vários helicópteros de emissoras de TV. O barulho da frota desperta a ira do cachorro do vizinho e alguns aparelhos chegam a sobrevoar meu prédio tão de perto que fazem chacoalhar as roupas estendidas no varal. Para qualquer pessoa que more ou passe pelo bairro, é quase impossível fugir do tema futebol. Na hora do almoço do mesmo dia em que ocorreu a aparição do jato militar, o aparelho de TV do boteco mostrava os moradores de uma rua das redondezas pendurando bandeiras brasileiras nos postes. “É o Big Brother Itaquera”, brincou o chapeiro.
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Às vésperas do torneio, cujo pontapé inicial será dado nesta quinta (12), ainda não é possível dormir no meu apartamento sem ouvir o barulho das marretadas dos operários — até quinta (5) havia cerca de 700 profissionais diretamente envolvidos em trabalhos como a conclusão das arquibancadas provisórias e a finalização da instalação de equipamentos elétricos e hidráulicos.
Em sua maior parte, é gente correndo contra o tempo para terminar a Arena Corinthians. Apesar do atraso, muita coisa foi feita no bairro. Nos dois meses em que residi ali, deu para ver como as mudanças foram sendo aceleradas à medida que a Copa começou a se aproximar. Visualmente, a paisagem árida de prédios padronizados e casas simples do entorno começou a ganhar as cores da Seleção Canarinho. A Radial Leste, a principal via de acesso à região, tem verde e amarelo no canteiro central desde a Vila Matilde. A partir da estação Patriarca do Metrô, setenta grafiteiros pintaram o maior mural a céu aberto da América Latina, com 4 quilômetros de ilustrações. A fachada lateral de seis prédios da Cohab José Bonifácio ganhou desenhos dos onde o escrete conquistou os cinco títulos mundiais (o espaço para o hexa já está reservado). Nas últimas semanas a Fifa instalou placas de sinalização em inglês para orientar os visitantes estrangeiros que pretendem ir ao campo.
A ironia da chegada da globalização a uma das regiões mais carentes de São Paulo (a renda média local, inferior a dois salários mínimos, é um quarto da registrada no bairro de Perdizes) rendeu brincadeiras na internet. “Itaquera Stadium — Where Judas lost his boots” (Estádio de Itaquera — Onde Judas perdeu as botas) foi a mais reproduzida. Do ponto de vista da objetividade geográfica, essa piada é um pouco exagerada, pois o bairro fica a apenas 20 quilômetros do centro. A diferença de realidades, porém, traz a sensação de uma distância muito maior, não apenas para os forasteiros. Quando pergunto à costureira Rose Maria, uma das locais, onde ela compra o tecido daquelas bolsas tão caprichadas que vende na região da 25 de Março, escuto: “Lá em São Paulo”. O ato falho é comum.
Com 220 000 habitantes, o bairro parece uma grande cidade-dormitório. Boa parte dessa população se desloca diariamente até o centro para trabalhar. Por volta das 6 da manhã, as filas de embarque na Estação Corinthians-Itaquera alongam-se para fora dos limites da parada de metrô. Os poucos felizardos que conseguem sentar-se à janela dos trens podem vislumbrar por alguns instantes as linhas modernas da Arena Corinthians. Nos picos de movimento, é mais fácil o Irã ganhar a Copa do que alguém atravessar de carro a Radial Leste a partir daquela área em menos de duas horas.
Além de colocar o lugar no centro do mundo, a competição trouxe outros benefícios a essa região onde as pessoas se referem ao centro da metrópole como se não estivesse na mesma cidade. Em meio a um festival de promessas descumpridas e obras feitas pela metade que se tornou marca da organização do evento da Fifa em nosso país, o bairro da Zona Leste representa uma exceção. Se há algum local do Brasil que vai lucrar com o torneio, esse lugar é Itaquera.
Somente em obras viárias para amenizar os principais gargalos de trânsito, os governos estadual e municipal investiram no pedaço 548,5 milhões de reais. Entre o movimento trazido pelas construções e os incentivos para investimentos em novos negócios, foram geradas nos últimos três anos 39 000 vagas temporárias e 34 000 permanentes, segundo cálculos da consultoria Accenture.
O grupo Lindencorp, junto com a empresa dona de um terreno de 200 000 metros quadrados de uma pedreira bem ao lado do estádio, vai levantar um complexo de hotéis, prédios comerciais e empresas de tecnologia. A ideia é aproveitar a estrutura viária e de transporte que agora atende o local para criar mais 55 000 empregos. “Tornou-se mais fácil provar aos empresários que aqui há potencial”, afirma Wilson Poit, presidente da SPNegócios, empresa de economia mista vinculada à Secretaria Municipal de Finanças encarregada de fomentar investimentos na capital. Até quem já estava operando na região aproveitou o novo fôlego. Com mais de 4 000 postos de atendimento, o call center Vikstar vai derrubar algumas paredes e criar 3 000 vagas nos próximos meses. “A estrutura do Piauí, onde temos outra filial, estava melhor que a daqui”, afirma Fabrício Martins, diretor- geral da companhia.
O Shopping Metrô Itaquera, o único da região, está sempre cheio. Recebe 65 000 visitantes por dia. O gasto mensal médio dos clientes é de 600 reais, mais que o dobro de um centro de compras como o Villa-Lobos. Não é à toa que o lugar promete dobrar de tamanho no ano que vem. Preparado para receber os turistas que vão desembarcar por lá nas próximas semanas (o número esperado é de 1,5 milhão de visitantes), o empreendimento da Zona Leste deixou a postos uma equipe de cinco assistentes poliglotas para ajudar os estrangeiros.
O estádio, que desencadeou todo esse movimento, virou ponto de peregrinação. Por ali, todos os dias algumas dezenas de pessoas procuram um espaço nas grades para observar o andamento dos trabalhos. Entre os fiscais não oficiais, uma figura ganhou notoriedade no local. Trata-se do professor de inglês Amadeu Carvalho, que filma e fotografa a evolução das obras. O material é publicado em seu site, que hoje tem mais de 130 000 acessos mensais, e em uma página no Facebook, com 93 000 seguidores. “Sou o correspondente especial dos corintianos”, conta “O Fiscal da Fiel”, como Amadeu ficou conhecido. O trabalho de documentação vai virar livro.
Tamanha adoração não ocorre por acaso. Estima-se que quase 50% dos itaquerenses sejam corintianos, uma das maiores proporções da cidade. As dúvidas sobre se o restante da nação alvinegra da capital poderia se assustar com a distância até a nova casa dissiparam-se com os primeiros jogos. Na inauguração oficial da arena, em 18 de maio, fiquei preso dentro de uma pastelaria que baixou as portas devido ao susto com a primeira leva de torcedores que desembarcou na Estação Artur Alvim.
Quem tentou voltar para casa de carro também ficou pela rua ou pagou 20 reais para usar a garagem de algum morador enquanto a partida não começasse. Com a CET mais perdida que os próprios motoristas, o jeito foi sintonizar a Rádio Comunitária Itaquera (87,5 FM) para saber quais eram as alternativas. “Só quem é daqui consegue entender os caminhos”, afirma o locutor Paulo Ferraz.
Com a inauguração de avenidas com calçadas largas e iluminação de LED, a vida noturna de Itaquera ganhou novo impulso. Pude passear a pé depois de escurecer, o que era bem perigoso antes das melhorias. Encontrei pelo caminho várias famílias fazendo o mesmo. Isso levou os donos de bar a colocar mesas na calçada e animou empresários a dar um upgrade na boemia da região. Alessandro Bueno e o sócio, Laércio Lopes, investiram mais de 450 000 reais na Choperia La Bueno, numa travessa da Avenida Itaquera. Inaugurado em dezembro, o sportbar bem decorado aposta em um cardápio de bebidas importadas e cozinha gourmet. “Antes, para curtir um lugar bacana, tínhamos de ir até o Tatuapé”, diz Bueno.
No bando de pessoas que começam a visitar o bairro atraídas pelo movimento da Copa, noto agora pequenos grupos de estrangeiros. Quase todos os dias alguém me para na rua falando português com bastante sotaque. Uma das gringas que circulam pelo pedaço é a jornalista holandesa Veerle Denissen. “Fiquei chocada na primeira vez que vi as casas de madeira em cima do esgoto aberto”, conta ela, referindo-se a uma visita à Vila da Paz, favela com 377 famílias que fica a 800 metros do Itaquerão. Por lá não respingou nem um centavo dos investimentos que vieram com a Copa.
Veerle se mudou a São Paulo no fim do ano passado para acompanhar o marido, que veio para cá a trabalho. Ao chegar, achou curioso o fato de um evento do tamanho do torneio da Fifa ser sediado na periferia. Decidiu, então, registrar como era a vida dos moradores do bairro no documentário Itaquera — A World Cup in the Backyard (Uma Copa do Mundo no Quintal, em inglês). Ela vem fazendo esse trabalho há seis meses, com a ajuda de dois conterrâneos. Na semana passada, pôs na internet o primeiro dos quatro capítulos da série sobre a região. O vídeo foi visto por mais de 150 000 pessoas.
Quando terminar de exibir na rede o material, pretende transformá-lo em um filme, a ser lançado em 2015. A holandesa mora na Aclimação e vai a Itaquera pelo menos uma vez por semana. Vizinhos da Zona Sul perguntam frequentemente se ela tem medo de trabalhar em “um lugar tão perigoso”. Entre esses curiosos estão alguns alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “Conheço mais o bairro que muita gente daqui”, ironiza ela. Graças à Copa, que pôs aquela área no centro das atenções, os preconceitos e a falta de informação estão diminuindo. O principal legado do Mundial para Itaquera é ajudar o bairro a começar a se sentir parte de São Paulo.