Apartamentos do Minha Casa Minha Vida são vendidos clandestinamente na Billings
Poder público investiu 380 milhões nas moradias populares, mas favelas reapareceram na região e parque prometido nunca foi entregue
Jardim Apurá, na Zona Sul da capital paulista, lembra uma pequena península na beira da Billings. Esse pedacinho paulistano cercado de água resume muitos dos problemas que assolam a periferia da cidade. Falta escola, um parque foi criado em 2015, mas nunca entregue, e um enorme conjunto residencial deveria retirar de favelas a população do entorno, mas uma reviravolta (com cortesia da ineficiência do poder público) mudou as cenas desse filme.
A história começa com o Residencial Espanha, do Minha Casa Minha Vida, no coração do bairro. Governos federal, estadual e municipal investiram juntos cerca de 380 milhões de reais no conjunto de 193 prédios, entregue em 2018. O objetivo: enviar para os 3 860 apartamentos famílias que moram em comunidades no entorno dos mananciais e, assim, reduzir um grave problema habitacional e ambiental. O problema foi que o trabalho capengou em uma frente importantíssima, pelo menos nas favelas que ficam no entorno do enorme condomínio.
A poucos quilômetros do Espanha estão três comunidades entre as 26 selecionadas para serem transferidas para o residencial. Favelas como a da Fumaça, Fundão e Guaicuri tiveram parte das casas demolidas em 2019, para que as áreas passassem por recuperação ambiental ou fossem reurbanizadas — cerca de 1 300 famílias saíram dessas comunidades para morar no conjunto. A prefeitura chegou a toda marcha com os tratores, e só. Dois anos depois, todas as três áreas estão totalmente reocupadas, com novos moradores.
“As favelas dobraram de tamanho de 2019 para cá.”
Wesley Silvestre, líder comunitário
“As comunidades dobraram de tamanho. A Fumaça tinha cerca de 400 famílias e hoje são quase 1 000”, diz Wesley Silvestre, ativista e líder comunitário da região. O readensamento foi testemunhado pelos que não conseguiram uma vaga no Espanha, na espera de realojamento para futuros empreendimentos. “Nossa área está toda ocupada novamente, é como se não tivesse saído ninguém”, diz a professora Silvina Lima, 51, que permaneceu na comunidade do Fundão, na beira da Billings. “Em 2019, a prefeitura chegou com caminhão cheio de funcionários, derrubaram casas, abriram buracos nas paredes e deixaram assim. Não voltaram mais”, completa.
“Eles tiraram o pessoal daqui e levaram para o Espanha, derrubaram as casas e deixaram os entulhos. E aí começou a chegar o pessoal”, diz moradora da Favela Guaicuri que prefere não ser identificada.
De acordo com a prefeitura de São Paulo, foram investidos 36 milhões de reais na reurbanização de favelas da região. Sobre a reocupação, a gestão Ricardo Nunes (MDB) afirma apenas que “as famílias que estão em áreas de obras serão acompanhadas pela equipe social e encaminhadas para atendimento habitacional provisório e definitivo”. O problema não acaba nas comunidades.
O que não faltam em grupos do WhatsApp e Facebook são dezenas de anúncios de venda de apartamentos do Residencial Espanha. As unidades de 48 metros quadrados, com dois dormitórios, sala, banheiro, cozinha e área de serviço, são comercializadas clandestinamente por valores que variam dos 80 000 aos 100 000 reais.
“O condomínio aqui custa 157 reais. Tem muita gente que aluga ou vende porque não tem dinheiro para manter. Se você atrasa o condomínio, cortam a água, que ainda está no nome da administradora”, diz João Gomes, 53, que vive no residencial desde fevereiro de 2020.
Os moradores que vendem clandestinamente a própria unidade fazem o chamado “contrato de gaveta”. Os apartamentos, pelas regras do Minha Casa Minha Vida, não podem ser vendidos, cedidos ou alugados durante dez anos a partir da assinatura do contrato com a Caixa Econômica Federal. A solução são os acertos informais, firmados entre os interessados, de que, quando o período proibitivo cessar, a transferência legítima do imóvel será feita no cartório.
Procurada, a Caixa informou que até o momento recebeu duas denúncias sobre infrações do tipo no Espanha. “Caso seja constatada alguma irregularidade, a unidade habitacional será retomada e destinada a uma outra família selecionada (pelos entes públicos).”
Outro problema além do habitacional é a falta de escolas para a primeira etapa do ensino fundamental. No Jardim Apurá, crianças dos 6 aos 10 anos de idade eram atendidas pela E.E Francisco Alves Mourão até 2018, quando a faixa etária deixou de ter turmas na unidade. Uma Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef), da prefeitura, estava prevista para um terreno de 38 000 metros quadrados, em frente ao Residencial Espanha, mas ela nunca saiu do papel.
“Para mim é uma adrenalina todos os dias”, define a professora Elaine Costa, 37, mãe de duas crianças. Seu filho de 9 anos de idade estuda em uma escola municipal que fica a 7 quilômetros de sua casa. Já a pequena, de 8 anos, vai às aulas em uma Emef localizada a 4 quilômetros da rua onde vivem. “É uma loucura, duas crianças da mesma família em escolas totalmente diferentes. Se a prefeitura cumprisse a promessa, conseguiríamos participar mais da vida escolar das crianças”, diz ela. “Ir e voltar da escola do meu filho dá uma hora de caminhada”, relata Kelly Duarte, 31, sobre o trajeto até o colégio estadual onde estuda o menino de 10 anos de idade.
“São centenas de crianças que poderiam estudar mais perto de casa.”
Elaine Costa, mãe de filhos de 8 e 9 anos
“A construção da Emef é algo de extrema urgência. São centenas de crianças que poderiam estudar muito mais perto de casa”, reitera Elaine. Procurada, a Secretaria Municipal de Educação afirma que “tem interesse e estuda a implantação de mais duas unidades escolares na região, sendo uma Emef e um CEI”. Diz também que, no ano passado, a “Emef Sete Praias foi aberta a 2,6 quilômetros da área” e que os estudantes que necessitam possuem atendimento de transporte escolar gratuito. Sobre o fim das turmas do ensino fundamental I na E.E Francisco Alves Mourão, o governo estadual informa que o encerramento das turmas ocorreu após “análise e definição técnica”.
Diz também que houve um crescimento na demanda para os anos finais na região e que por isso “ampliou as turmas de ensino médio diurno na unidade”. No Apurá, outra promessa do poder público não cumprida é o Parque dos Búfalos, criado em 2015 em uma área lindeira à represa, de 550 000 metros quadrados (quase três vezes e meia maior que o Parque Independência), mas nunca entregue. O terreno foi cercado, o que não impede a chegada de visitantes, nem todos apenas querendo curtir um fim de tarde no lugar arejado.
A reportagem esteve no local e presenciou uma concentração de celebrações religiosas no endereço, com direito a construções de tendas com árvores derrubadas do próprio parque e queimadas para a abertura de descampados e a realização de cultos, em sua maioria, cristãos. Procurada sobre o andamento das obras, a prefeitura promete entregar o equipamento pronto em 2022 (após já ter previsto o mesmo para 2020). Diz que investiu 2 milhões dos 9 milhões de reais previstos para o local e que um projeto executivo para a construção de espaços de convivência, do parquinho e do edifício da administração foi contratado.
O Búfalos também poderia ser 28 000 metros quadrados maior. Um protocolo de intenção entre a prefeitura e a Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae) foi firmado em 2018, para que a área da Favela da Fumaça vire parte do equipamento. A condição, no entanto, é que o local fosse completamente desocupado, o que, como mostramos no início da reportagem, está bem, bem longe de acontecer.
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Publicado em VEJA São Paulo de 20 de outubro de 2021, edição nº 2760