Era uma boa ideia: todo mês, um escritor conhecido escrevia na antiga revista Seleções um texto na primeira pessoa sobre alguém que fora marcante no seu passado. Muitas vezes, parecia a biografia de um desconhecido escrita por um famoso, e o mote da série dizia tudo: meu tipo inesquecível. No caso a seguir, nem o lembrado é desconhecido nem o escritor é famoso — valem apenas o mote e o título. Por que inesquecível? Pela determinação e pela tragédia.
Flávio Márcio tinha feito 34 anos havia pouco, 5 de março de 1979 (faria 70 agora), era um dos mais festejados novos autores do teatro brasileiro, ainda ouvia o eco dos aplausos ao espetáculo Réveillon, consagrado pelos prêmios, pela crítica e pela bilheteria, quando morreu encharcado de sangue dentro do táxi que o levava para o hospital.
Havia chegado a São Paulo dez anos antes, vindo de BeloHorizonte, com uma franja de cabelos alourados muito lisoscaindo sobre um dos olhos, um sorriso entre o tímido e o sedutor,grandes mãos contrastando com o gestual estudado dedelicadeza gay, alto, esguio, trazia textos teatrais em andamento,misturados com entusiasmo pelo cinema, pela literaturae pelo jornalismo, e em outra pasta escondia alguns medos,a fragilidade e a vontade de ser querido. Desfez-se do sobrenomesírio, Salim, pois achava que não combinava com o tipofísico que desenhara para si, com ares de príncipe russo.
Veio — tive alguma culpa nisso — para trabalhar no Jornalda Tarde, e logo se destacou pela qualidade do texto, pelavontade de conquistar espaços. Foi repórter de artes, redator,crítico de cinema, editor… Seu texto precioso acabou tornando-o redator da primeira página do diário. Defeitos? Tinha:mitômano, vaidoso. Mas, até nisso, era encantador.
Após os primeiros quatro anos paulistanos, o jornalismojá não o satisfazia. Tramava enredos, retomou projetos nospalcos. O teatro era a grande arte da época. Estimulada, anova geração de autores entrara em cena, gente da idade deFlávio, trazendo ideias, temas, dicções: Plínio Marcos, AntônioBivar, Leilah Assunção, Mauro Rasi, Consuelo deCastro, o inquietante José Vicente.
Réveillon estreou no Rio em 1974. A peça conta a tranquilapreparação de uma família para um suicídio coletivo no A no-Novo. Flávio achou a encenação pesada, porque encobria o humor.Então, a estrela Regina Duarte, cansada de telenovelas,quis encenar a peça em São Paulo, apaixonada pelo texto. PauloJosé dirigiu, no tom certo; os atores, Regina e Sérgio Mamberti,que fazia o pai, estavam soberbos. Revelou-se então, nacionalmente,o talento de Flávio Márcio. Isso foi em 1975. Acensura já havia barrado sua peça À Moda da Casa, insólita comédiade antropofagia, na qual uma família ceia o avô. Teimosamente,Flávio escrevia Tiro ao Alvo, em que um rapaz, campeãode tiro, usa a torturante família como alvo. As dilaceradas,patéticas famílias que ele botava no palco — nem por isso menosengraçadas — desvendaram um pouco seus conflitos.
Estávamos na grande assembleia noturna que decidia agreve dos jornalistas, em 22 de maio de 1979, quando alguémchegou: “O Flávio Márcio morreu”. Espanto, consternação.Como? Ele havia feito uma simples cirurgia de amígdalasdois dias antes! Tivera um pequeno sangramento na véspera,o médico mandara apenas botar gelo!
Eu tinha estado com ele à tarde: chupava gelo, estava alegre esatisfeito. Estava. De repente, uma artéria se rompeu em sua garganta,sangue saindo aos borbotões pela boca, o amigo Zé CarlosSantana levou-o às pressas para o Hospital São Luiz, a 2 quilômetrosde casa, sangue empapava o táxi, incontrolável, e, quandochegaram, ele já não tinha sangue nenhum no corpo.
Viveu apenas quatro anos do seu sucesso.