Jovens procuram remédios para evitar contrair o HIV
Bebida, falta de medo da doença e baixo uso da camisinha fazem desse grupo o mais exposto à aids na cidade
O estudante de pós-graduação em nutrição Roberto Rubem Silva Brandão, de 25 anos, faz parte do grupo de 250 voluntários em um estudo a respeito de uma nova droga de prevenção contra a aids. O remédio em questão, o Truvada, foi desenvolvido pelo laboratório americano Gilead Sciences e aprovado como tratamento para evitar o HIV nos Estados Unidos em 2012. Esse antirretroviral fortíssimo, que promete reduzirem 90% o risco de contaminação, mesmo quando seu usuário faz sexo sem preservativo, foi aprovado pela Anvisa para ser comercializado no Brasil há dois meses.
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Antes de sua liberação no país, a USP e o Centro de Referência e Treinamento DST/aids, em São Paulo, e a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, iniciaram estudos sobre o medicamento, selecionando nessas capitais homens em situação de alta vulnerabilidade: usuários de drogas, profissionais do sexo, companheiros de soropositivos ou pessoas com diversos parceiros sexuais. Roberto enquadra-se no último caso. Ele costumava dispensar a camisinha em algumas transas, dependendo “do momento, do prazer e do desejo”. Em setembro do ano passado, começou a tomar o Truvada (uma pílula por dia). Apesar dos efeitos colaterais, como dores de cabeça e no corpo, acha que a experiência compensa. “Não mudei em nada meu comportamento, só namoro mais, pois sinto uma segurança maior”, conta.
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Outro jovem paulistano recorreu recentemente a um tratamento preventivo, mas em um contexto muito diferente — e dramático. Em fevereiro, Franklim Conceição, 19 anos, conheceu um rapaz por um aplicativo de relacionamentos. Foi até o apartamento dele, na região central, onde eles ficaram. Ao fim da relação, levou um susto ao ver o preservativo furado. Entrou em pânico assim que deixou o local. “Cheguei a pensar que o cara havia feito isso de propósito para me contaminar.” Na manhã seguinte, procurou quatro hospitais antes de ser encaminhado para o Emílio Ribas, o maior centro de referência do país em infectologia. “Estava com o rosto inchado de tanto chorar”, lembra. Depois de passar por uma triagem, Franklin deu início ao tratamento com a medicação emergencial informalmente chamada de “pílula do dia seguinte” do HIV. O nome correto é PEP, da sigla em inglês para profilaxia pós-exposição. Os remédios precisam ser ingeridos em até 72 horas após a relação sexual. Eles evitam em 99% o risco de o vírus ser contraído. Às 7 e às 19 horas, ao longo de 28 dias, o despertador do celular do adolescente funcionou como um alarme para a vida, lembrando-lhe a necessidade de tomar as pílulas. Seus efeitos colaterais são severos. “Tive crise de vômito, dor de cabeça e fadiga.” Após o tratamento, testes confirmaram que o garoto havia escapado do pior.
Histórias como a de Brandão e de Conceição são exemplos da mesma realidade: estão sendo deixados de lado os métodos de prevenção contra a doença. Com isso, aumenta o risco de contrair o vírus e cresce o número de infectados, sobretudo entre a população na casa dos 15 aos 29 anos (veja outras histórias ao longo da reportagem). Na cidade de São Paulo, houve um salto de 1 272 casos, em 2004, para 2 296, em 2013, nesse universo (um acréscimo de 80%). Considerando-se apenas os homens, a evolução foi de 187%. A contaminação entre jovens chama atenção, mas a situação é também preocupante nas demais faixas etárias. Ao todo, foram registrados no Brasil 36 418 infectados em 2006 e 39 501 em 2013 (uma variação de 8,5%). Com isso, o país, que chegou a ser considerado um exemplo para as demais nações com políticas públicas relacionadas ao combate à aids, anda hoje na contramão. No mundo, a incidência caiu 37% na última década, segundo a Organização das Nações Unidas.
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O comportamento de risco explica o avanço do vírus. Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostrou que 45% das pessoas entrevistadas, independentemente da idade, não usaram preservativo em todas as relações sexuais que tiveram nos últimos doze meses. No caso daqueles que nasceram a partir da segunda metade dos anos 80, outro fator agrava o quadro. Eles sentem menos medo. Por terem conhecido a aids em uma fase menos letal da epidemia, quando ela deixou de representar uma sentença imediata de morte para se transformar em doença crônica, pensam que o risco passou. “Acham que basta tomar remédio para ficar tudo bem”, diz o infectologista Francisco Ivanildo de Oliveira, supervisor do ambulatório do Hospital Emílio Ribas.
No universo gay, a incidência é ainda maior. “A rede de homens que fazem sexo com homens é menor, o vírus circula nos mesmos grupos e eles se tornam mais suscetíveis”, explica a infectologista Elaine Gutierrez. Fenômeno recente, o uso de aplicativos de relacionamento fez crescer as opções de parceiros. “Há muitos caras que marcam festas em apartamentos onde todos transam sem camisinha”, diz o estudante Roberto Brandão. Em alguns casos, as baladas são regadas a Viagra, cocaína e vodca com energético.
1986 Remédio: AZT. O paciente chegava a tomar trinta comprimidos por dia. Eficácia: pequena. Em geral, o paciente morria seis meses depois do diagnóstico.
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Efeitos colaterais: perda de massa muscular, anemia e aumento do colesterol, entre outros. |
1990 Remédio: AZT aliado a drogas como DDI ou 3TC. Eficácia: intermediária. A sobrevida média com essa terapia dupla passou para dois anos. Efeitos colaterais: severos, com muitos casos de pancreatite e anemia. |
1996 Remédio: terapia tripla, de combinações diversas. Foi a era dos coquetéis, de sete a trinta comprimidos tomados ao longo do dia.
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Eficácia: boa. Várias pessoas “renasceram” com essa terapia, ganhando peso e fortalecendo o sistema imunológico. Muitos abandonavam o tratamento devido ao excesso de medicação. Efeitos colaterais: crise de vômitos e diarreia, entre outros. |
2006 Remédio: lançamento da Atripla, pílula única que reúne os antirretrovirais tenofovir, emtricitabina, e efavirenz. Uma versão do remédio passou a ser adotada no Brasil em 2015. Excelente: menos doenças oportunistas apareciam. Efeitos colaterais: amenizados, com menos casos de lipodistrofia (perda e acúmulo de gordura em regiões específicas do corpo).
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O serviço do Emílio Ribas na distribuição do coquetel do dia seguinte é um dos melhores termômetros da situação preocupante. Indicada originalmente para profissionais de saúde em ocorrências de acidente de trabalho e casos de estupro, a PEP se tornou em 2010 uma ferramenta de saúde pública para conter o avanço da aids, com a distribuição gratuita em centros de referência. A população até 30 anos representa 70% dos atendimentos do Emílio Ribas relacionados ao coquetel. No ano passado, 1 133 pacientes recorreram ao programa no hospital (foram 3 636 no Estado de São Paulo). Esse número cresce 30% ao ano. Os fins de semana respondem por 54% de todos os casos devido à combinação balada, bebida e outras substâncias psicotrópicas. “Tem gente que vem direto da festa para cá. Algumas vezes, as pessoas estão visivelmente ‘chapadas’ de álcool ou drogas”, diz Ralcyon Teixeira, diretor do pronto-socorro da entidade. Os hospitais tratam o caso como de extrema urgência. Basta alguém informar à recepção que transou sem camisinha para passar na frente de todos na fila de espera. O horário da relação sexual é a primeira pergunta feita na triagem. Se ela tiver ocorrido há mais de 72 horas, não é mais possível remediar.
Na sala de espera do pronto-socorro, com luz fria e cadeiras de plástico ao ar livre, o que se vê são olhos perdidos à espera dos resultados. “As pessoas chegam fragilizadas, com sentimento de culpa”, conta Teixeira. A grande maioria está desacompanhada. O universo da aids é solitário e a maior parte das pessoas se submete ao tratamento sem revelar a ninguém da família. Esconder o quadro, porém, está longe de ser uma tarefa fácil. Os efeitos colaterais são severos e há pacientes que abandonam a terapia na metade. Fadiga, náusea e dores de cabeça atingem a grande maioria dos pacientes. Como durante os 28 dias de tratamento é imprescindível o uso de camisinha nas relações sexuais (para evitar transmitir o vírus em caso de contaminação), homens casados pedem orientação para conseguir explicar essa nova medida às esposas. Mas há de tudo por lá. “Já atendi um casal heterossexual praticante de suingue”, lembra o infectologista Francisco Ivanildo de Oliveira. “Depois de uma noitada, os dois ficaram com medo da contaminação e procuraram ajuda.” Moradora de Itaquera, a analista de crédito E.M., 37 anos, atravessou a cidade rumo à região da Avenida Paulista para se tratar. Ela foi a um barzinho e ficou com um conhecido sem proteção. “Eu até tinha bebido um pouco, mas não estava fora de controle. Foi burrada mesmo.” Descobriu o tratamento pesquisando na internet. “Entrei no Google e digitei algo na linha ‘remédios para evitar aids’.” Para facilitar a vida das pessoas expostas a situações de risco, a prefeitura lançou no mês passado um aplicativo chamado Tá na Mão. Ele informa o hospital mais próximo para tomar a PEP.
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Em termos de prevenção, a grande novidade do mercado é a chegada por aqui do Truvada. Nos Estados Unidos, muitos adeptos americanos foram tachados de “vadios” por não levar a sério o tratamento, entre outras coisas. Como o remédio é caro e não há distribuição pelo sistema de saúde, certas pessoas ingeriam uma pílula apenas antes da relação sexual. Nesses casos, porém, sua eficácia cai. No Brasil, o remédio é vendido por uma importadora, mas no futuro próximo deve ser encontrado em farmácias com vendas autorizadas mediante receita médica. Um pote com trinta comprimidos custa cerca de 2 000 reais. Como se trata de uma medida contínua, ao longo do ano o interessado gastará quase 24 000 reais no tratamento.
O Truvada bloqueia a entrada do vírus no DNA das células de defesa do organismo. A terapia recomenda que o paciente não abdique do uso de camisinha, uma vez que há 500 tipos de HIV. “A medicina tem de criar defesas para a população sexualmente ativa, e essa droga representa um avanço nessa linha”, defende o infectologista Ésper Kallas, médico da USP responsável pelo estudo feito em São Paulo com 250 voluntários desde o ano passado. Nesse período, nenhum deles foi infectado. Quando for concluída, a pesquisa será encaminhada ao Ministério da Saúde.
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O laboratório americano Gilead entrou com um pedido para que o remédio comece a ser distribuído pelo SUS. Segundo o infectologista Artur Timerman, um dos mais respeitados do país, caso isso ocorra, haverá um risco real de as pessoas abandonarem outros métodos contraceptivos. “Sou favorável ao Truvada como complemento, tanto que tenho dezessete pacientes usando a medicação”, diz. “Mas a prioridade do governo é investir em testes de aids. Quando tem o HIV sob controle, um soropositivo não passa o vírus adiante em 96% das vezes, mesmo se transar sem proteção”, explica. O médico levanta outras dúvidas sobre a nova pílula. “Quem tem problemas em aderir à camisinha usará o remédio de maneira adequada?
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Se eles tomarem de forma errada, poderá surgir então uma nova geração de vírus mais resistentes?”, indaga. Apesar das portas de possibilidades que se abrem com a chegada dessa droga, especialistas como ele são extremamente cautelosos com a novidade e preferem bater nas antigas teclas da adoção da camisinha como a melhor forma de evitar problemas. Jovens que não tiveram essa precaução e experimentaram o drama de conviver com a possibilidade de contrair o vírus sabem melhor do que ninguém: o risco não compensa.