Os planos do médico José Luiz Setúbal no comando da Santa Casa

O maior hospital filantrópico do país, que atende cerca de 730 000 pacientes por ano, amarga uma dívida de mais de 520 milhões de reais

Por Aretha Yarak
Atualizado em 1 jun 2017, 16h48 - Publicado em 13 jun 2015, 00h00
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José Luiz Setúbal, de 58 anos, não é um homem de caminhos óbvios. Quinto dos sete filhos de Olavo Setúbal, ex-prefeito de São Paulo e um dos fundadores do Itaú, ele fugiu à vocação natural da família de banqueiros. Enquanto os cinco irmãos homens seguiram os passos do pai, José Luiz optou pela pediatria e, embora seja um dos acionistas da instituição financeira, jamais se envolveu no dia a dia daempresa. “As pessoas me interessam mais do que os números”, justifica.

Uma de suas grandes realizações no setor de sua especialidade ocorreu em 2005, quando comprou o Hospital Infantil Sabará, em Higienópolis, e nele investiu 100 milhões de reais. Em menos de uma década, o número de leitos triplicou, a equipe começou a fazer procedimentos mais complexos e a instituição ganhou um selo de qualidade internacional.

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Quando poderia relaxar um pouco, depois de pôr o negócio nos eixos, resolveu encarar uma das maiores encrencas da atualidade na área de saúde do país. Na última terça (9), com 168 votos, foi eleito por aclamação à cadeira de provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Ele é o primeiro ex-aluno a ocupar o cargo, e a posse se deu em meio à pior crise financeira em mais de 450 anos de história. “Minha missão é reerguer a entidade e trazer de volta a credibilidade perdida”, conta.

Maior hospital filantrópico do país, a Santa Casa atende cerca de 730 000 pacientes por ano só no prédio com muros de tijolos da Vila Buarque. Entre 2009 e 2013, o patrimônio líquido da Santa Casa caiu de 220 milhões de reais para meros 323 000 reais. A dívida acumulada hoje é de aproximadamente 520 milhões de reais.

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A gravidade da situação ficou clara em julho de 2014, quando o pronto-socorro do Hospital Central, que só presta serviços pelo SUS, fechou as portas por 28 horas. O então provedor, o advogado Kalil Rocha Abdalla, disse à época que fornecedores teriam se recusado a entregar insumos devido a pagamentos não quitados. A reabertura aconteceu apenas depois que o governo estadual se comprometeu a fazer um repasse emergencial de 3 milhões de reais.

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Fragilizado, o lugar viveu meses de caos. Exames foram suspensos, a coleta de lixo ficou comprometida e operações passaram a ser canceladas por falta de material cirúrgico e de remédios. Sem o pagamento do salário de novembro e do 13º, médicos ameaçaram entrar em greve, mas acabaram desistindo. A maior parte dessas pendências continua em aberto. Segundo o sindicato da categoria, 467 profissionais, o equivalente a quase um terço do corpo clínico, não receberam os atrasados. Das 39 unidades de saúde que a Organização Social administrava, restaram apenas sete — as demais foram devolvidas às gestões estadual e municipal.

Candidato único ao cargo de provedor, Setúbal assume após a renúncia do advogado Kalil Rocha Abdalla, formalizada em 16 de abril. Ele estava afastado oficialmente desde janeiro e teve os sigilos bancário e fiscal quebrados a pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo. A investigação, de responsabilidade da promotora Dora Martin Strilicherk, inclui outros 21 nomes de pessoas físicas e jurídicas da administração passada e busca averiguar indícios de superfaturamento em compras e serviços, contratação de empresas terceirizadas envolvidas com funcionários e prática de nepotismo.

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“A irmandade funcionava, aparentemente, como grande empresa familiar, na qual filhos e cônjuges, mormente dos principais executivos e dirigentes, ‘coincidentemente’, trabalhavam na mesma empresa”, escreveu a promotora, em um trecho do despacho. Abdalla se diz tranquilo em relação às investigações. “Nada ainda foi comprovado, só lamento que meu trabalho de décadas não tenha sido reconhecido.”

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Com o objetivo de abrir a caixa-preta dos números da instituição, Setúbal indicou há um mês cinco homens de sua confiança para compor a mesa administrativa. “Antes de montar um plano de ação, precisamos esmiuçar tudo”, afirma. “As ações serão feitas de forma transparente.” Fazem parte do time profissionais como o administrador Eduardo Carneiro, encarregado por quase dez anos da gestão da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), e o engenheiro Luiz de Campos Salles, ex-CEO da Itaú Seguros.

Dias antes da posse, o grupo já havia solicitado dados e balanços completos, que ainda estão sendo processados. As informações preliminares, no entanto, assustam. Descalabros de todo gênero não param de aparecer. “Encontrei três aparelhos de raios X na caixa”, espanta-se Carneiro, que calcula em 500 000 reais o valor dos equipamentos. “Foram comprados sem planejamento e estão parados há meses.Tem até elevador encaixotado há mais de um ano, é muita desorganização”, completa ele. O diagnóstico final da turma, que inclui ainda os empresários Paulo Motta e Francisco Gimenez, além do advogado Erasmo de Boer, ficará pronto no fim do mês, quando será apresentado à diretoria.

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Setúbal também escalou um novo braço forte para tocar o dia a dia da Santa Casa. Desde a última quarta (10), Luiz Oberdan Liporoni é o diretor administrativo das duas unidades do Hospital SantaI sabel — braço particular do complexo. “Nosso objetivo é promover uma grande reestruturação e tornar o local viável financeiramente”, afirma. Oberdan é especialista em gestão hospitalar e esteve à frente da AACD por mais de trinta anos. Ele é um dos responsáveis pela criação do Teleton no país, programa que viabilizou a construção de dezoito centros de reabilitação. Sua meta é elevar a taxa de ocupaçãodos leitos a 90% — hoje, ela não passa dos 50%. “O objetivo é ter bons resultados em até dezoito meses”, conta.

A pressa existe porque o lucro obtido noSanta Isabel será usado para equacionar areceita do setor filantrópico. “Hoje, 95% do dinheiro vem do SUS. Precisamos reduzir esse número a 60% para deixar a Santa Casa viável”, explica Setúbal. “Isso só será possível com a geração de novas receitas.” No ano passado, o complexo de saúde arrecadou 1,3 bilhão de reais. A previsão é que esse número seja bem inferior a 1 bilhão em 2015.

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Outra decisão tomada nos últimos dias é usar os 100 milhões de reais em precatórios (dívida ainda não quitada do governo federal com a Santa Casa) no pagamento de impostos atrasados. “Boa parte desses tributos é trabalhista, com o INSS e o FGTS”, diz Paulo Motta. Durante a gestão de Kalil, a irmandade cogitava vender esses precatórios a terceiros. “Teríamos uma perda de 50% do valor original, não vale apena”, entende Motta. O pagamento dos tributos vai permitir que a instituição tenha de volta sua Certidão Negativa de Débitos (CND), essencial para entidades que desejam participar de licitações.

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No quadro de pessoal, o hospital passará por um importante processo de enxugamento. Estimativa anterior previa a demissão de cerca de 1 300 funcionários — a maioria da área administrativa. “Tem excesso de profissionais, gente mal alocada, funções mal definidas”, comenta Carneiro. Está em curso ainda uma reformulação do estatuto que regula a administração. “A ideia é modernizar as regras da Santa Casa”, afirma o promotor Arthur Pinto Filho, criador da comissão responsável pelo trabalho. De acordo com membros do grupo, o objetivo é tornar a instituição mais dinâmica e competitiva. “O atual estatuto foi escrito há mais de100 anos”, diz Paulo Motta.

Ao mesmo tempo em que finaliza o mapeamento financeiro e dos cortes que serão necessários, Setúbal inicia a corrida atrás de dinheiro. Para os próximos dias, planeja viajar a Brasília para reuniões no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e com Miriam Belchior, presidente da Caixa Econômica Federal. “Queremos mostrar a essas instituições que a Santa Casa voltou a ter credibilidade e pode honrar suas dívidas”, explica. “Preciso apenas de um respiro financeiro para começar a trabalhar.”

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Antes de chegar ao comando do complexo filantrópico, o médico travou uma guerra política com seu antecessor. Na disputa para o cargo de provedor do ano passado, Setúbal enviou cartas à irmandade com denúncias sobre o descontrole nos gastos. Em resposta, Abdalla, que tentava seu terceiro mandato, o acusava de querer transformar o hospital em uma filial do Sabará. “Foi uma eleição muito traumática”, relembra Setúbal, que saiu derrotado com 45% dos votos no pleito, realizado em abril de 2014.

Oito meses depois, quando os problemas da instituição eram mais evidentes, o pediatra foi procurado por Kalil. “Ele queria que eu voltasse para a mesa de administração e indicasse mais nomes”, conta. “Respondi que, se gostasse mesmo da Santa Casa, ele deveria pedir demissão.” Kalil confirma o encontro, mas diz que o convite não era bem esse. “Apenas pedi a indicação de três nomes para me ajudar.”

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Mesmo derrotado por Abdalla, Setúbal nunca abandonou seu desejo de ajudar a Santa Casa. “Meu irmão tem uma relação afetiva com o hospital”, conta a socióloga Neca Setúbal. No período pós eleições, o pediatra se dedicou a compartilhar notícias sobre a instituição em uma página do Facebook e a fazer pequenas denúncias sobre a crise. “Para ele, é quase um dever cívico salvar o hospital”, comenta Sandra Regina Mutarelli Setúbal, com quem está casado há 22 anos. O médico tem três filhos: a cineasta Beatriz, de 31 anos, o músico Gabriel, 29, e o estudante Olavo, 21 (só o mais novo é filho de Sandra, os outros são do primeiro casamento do pediatra).

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Ele acorda diariamentepor volta das 7 horas da manhã. Faz atividades físicas três vezes por semana, acompanhado de uma personal trainer. Nas horas vagas, gosta de ler (no momento, está debruçado sobre Eternidade por um Fio, de Ken Follett) e de ouvir música (adora MPB, Beethoven, Stravinsky e ArvoPärt). Nos fins de semana, vai para uma casa que tem em Porto Feliz (região metropolitana de Sorocaba). Lá, faz caminhadas e anda de bicicleta.

Na capital, mora em Higienópolis, em um apartamento a poucas quadras do Sabará. Seur estaurante predileto é o Tuju, de culinária contemporânea, em Pinheiros. No meio da campanha do ano passado, teve um pequeno desmaio durante um almoço. A pedido da mulher, fez exames de checagem e descobriu seis vasos muito entupidos no coração. Fez a operação para colocação de stent e nunca mais teve problemas.

Mais do que ninguém, sabe que precisará estar com a saúde em dia nos dois anos de seu mandato à frente da Santa Casa. “A situação é grave e não há milagres”, diz. “Minha missão é pôr o complexo filantrópico em ordem em até cinco anos. Se eu conseguir, terei sido vitorioso.”

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GIGANTE DA FILOTROPIA

+ Estrutura:

273 imóveis próprios

7 unidades de saúde

10 925 funcionários

1,3 bilhão de reais de orçamento (valor referente a 2014)

95% do orçamento pago via SUS

 

+ Pacientes por mês:

41 000 no ambulatório

26 000 no pronto-socorro

2 100 cirurgias

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