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Haitianos baleados no centro relatam sentir medo de sair de casa

O saldo da série de disparos que deixou quatro deles com balas de chumbo alojadas no corpo; ataque intriga a polícia e espalha temor entre imigrantes

Por Adriana Farias
Atualizado em 1 jun 2017, 16h40 - Publicado em 15 ago 2015, 00h00

Às 9 horas do sábado (1º), na Rua do Glicério, região central, um imigrante é ferido na perna com um disparo de arma de chumbo. Em seguida, ouve a palavra “haitiano!”, berrada de dentro de um carro cinza. Por volta das 20 horas, o mesmo tipo de munição acerta outro estrangeiro próximo ao joelho direito. “Eu estava mexendo no celular quando senti uma pancada”, recorda Gregory Deralus, de 34 anos.

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Minutos depois, um grupo de quatro conterrâneos que saía de um culto da Assembleia de Deus, ministrado no idioma crioulo, é atingido com ao menos cinco projéteis. Até quinta (13), quatro dos seis feridos permaneciam com balas alojadas no corpo e a autoria dos ataques continuava um mistério.

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As agressões aos haitianos são investigadas no 1º Distrito Policial, da Sé. Para os policiais, uma das hipóteses sobre os ataques é xenofobia. Não se descarta também a possibilidade de vingança de um grupo de bandidos, em resposta a um assalto frustrado por um imigrante, que impediu que uma pedestre fosse roubada na região. A falta de provas e testemunhas, porém, está travando as apurações — câmeras de segurança do entorno não trouxeram, até agora, nenhuma luz.

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“Tenho medo de que eles voltem”, diz no relato abaixo Hudson Prophete, 28, uma das vítimas da agressão:

“Estou em São Paulo há dois anos e meio, após gastar 3 500 dólares em uma viagem de quinze dias via Equador, Peru e Acre. Apesar das dificuldades, meus olhos brilharam quando cheguei a esta terra. Não demorei muito e consegui um emprego como pedreiro, a mesma função que exercia no Haiti até o terremoto acabar com tudo. Para reconstruir minha vida no Brasil, deixei para trás minha mãe e três irmãos, que choraram depois que souberam dos ataques no Glicério. No sábado (1º) à noite, estava saindo da Assembleia de Deus, uma igreja que tem cultos em crioulo, com o casal Athice e Albert e os amigos Vilner e Michelet. Senti como se tivesse levado uma pedrada na coxa esquerda.

Quando vi, eles também haviam sido atingidos, menos o Albert. Imediatamente o ajudei a estancar o sangue da perna de Athice com um lenço, quando, de repente, recebi outro tiro na perna direita. Não vi de onde veio o disparo e não escutei nada. Foi outro colega nosso, atingido antes, que disse ter notado um carro cinza e alguém a gritar ‘haitianos!!’. Só no hospital descobrimos que se tratava de chumbinho. Passamos por vários hospitais até sermos atendidos de fato. A cirurgia para retirar a bala deve finalmente acontecer no dia 19. Preciso estar bem para voltar a procurar emprego, pois pedi demissão do trabalho em que estava fazia dois anos devido a atrasos com o pagamento. Ganhava 1 100 reais, e pago 600 reais de aluguel de um pequeno apartamento que divido na Liberdade com um colega.

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A gente tenta esquecer o que passou, mas é difícil, porque tenho medo de que as pessoas que fizeram essa crueldade voltem. Estou evitando ir a rua nestes dias, só saio para ir ao curso de português. Graças a Deus, nunca fui discriminado aqui, não sei se esses ataques foram contra os haitianos mesmo, mas sei que muitos já sofreram preconceito até por não falarem o idioma.”

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O caso espalhou medo na região, que se tornou um destino preferencial dos haitianos na capital — chegaram 4 680 só em 2014 e 1 200 neste ano, segundo a Missão Paz, projeto de acolhimento a imigrantes da Igreja Nossa Senhora da Paz. O lugar oferece refeições, alojamento temporário para cerca de 110 pessoas e serviços como atendimento jurídico.

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As escadarias e as calçadas do local ficaram esvaziadas nos últimos dias. “Antes, aqui lotava à noite. Desde o ataque, não vejo mais quase ninguém”, diz Manoel Severino, gerente de uma lanchonete nos arredores. “Agora estamos em alerta e muito preocupados, pois os criminosos são racistas e podem voltar”, diz Vilner Guervil, de 44 anos, ferido no quadril.

O pedreiro Hudson Prophete, de 28 anos, atingido com duas balas, acredita que os criminosos retornarão (veja o depoimento acima). “Cheguei em 2013, e a cidade prosperava. Agora, com essa crise, as pessoas ficaram mais nervosas”, observa ele, que está desempregado desde março. “Os moradores da região acolheram bem os haitianos, mas ouço muitos relatos de discriminação ao redor da cidade”, conta o padre Paolo Parise, coordenador da Missão Paz.

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Após o susto, as vítimas experimentaram um périplo bem conhecido da população que depende da saúde pública no país. O eletricista e encanador Albert Jouvens, de 29 anos, levou a mulher, Athice Luc, 24, atingida na perna, a uma unidade básica, onde foi feita uma radiografia, mas relata dificuldades desde então. Os dois contam que procuraram quatro hospitais, na esperança de remover o projétil.

Athice foi avaliada por uma equipe cirúrgica somente na segunda (10), no Hospital Municipal Doutor Carmino Caricchio, no Tatuapé. “Sinto dores na perna e tenho febre todas as noites”, afirma. A Secretaria Municipal da Saúde diz que as cirurgias serão realizadas nos próximos dias, pois outras ocorrências mais graves receberam prioridade na semana passada. Egressos de um país devastado por um terremoto que deixou 316 000 mortos em 2010, esses imigrantes tentam ganhar a vida por aqui de várias formas.

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Boa parte deles encontrou uma chance na construção civil e na área de limpeza de empresas. O agravamento da crise econômica, no entanto, vem tornando mais escassas as oportunidades. Em maio, a produção da novela Escrava Mãe, da Rede Record, aportou por ali para recrutar figurantes. De imediato, uma fila de quarenta homens, basicamente todos os que estavam no pátio, se formou para disputar o bico, que pagaria diária de 80 reais.

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O eletricista Jouvens trabalhava como comerciante no Haiti e estava no primeiro ano do curso de medicina quando a terra tremeu. A vida piorou muito, e, três anos depois, ele chegou a São Paulo de forma legal, com visto permanente (a maioria atravessa clandestinamente a fronteira no Acre e lá tem sua situação regulamentada, com possibilidade de receber documentos como CPF). Do salário de 1 145 reais, ele gasta 500 reais com o aluguel do cômodo em um cortiço na Mooca.

Para Athice, que chegou à cidade há apenas dois meses, com esperança de reconstruir sua vida, o atentado foi um baque. “Não esperava passar por isso aqui”, diz ela. “Pretendo ir embora em menos de um ano”, completa ele.

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