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À sombra do asilo

Por Mário Viana
Atualizado em 27 dez 2016, 17h01 - Publicado em 25 jun 2016, 00h00

A comovente história de capa da Vejinha da semana passada a respeito dos quatro remanescentes da roda dos expostos da Santa Casa abriu em mim uma porta para soterradas lembranças de infância. Não que eu tenha dúvida sobre ser filho de seu Dezinho e de dona Quitéria, longe disso. Os álbuns de fotos de família mostram que sou cópia fiel de traços dos dois desde o bercinho. O que mexeu bastante comigo foi ler sobre o Hospital Pedro II, onde três dos personagens retratados na reportagem vivem há muitos anos. Para mim — e, tenho certeza, para muitos da minha safra (1960) e região de origem controlada (Jaçanã) —, aquela enorme área cercada por muros de cimento cinza era o temido “asilo dos velhinhos”.

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Aqui, entra o efeito especial de raios e trovoadas apavorantes. Segundo as mães, o local era onde filhos desalmados atiravam os pais idosos que davam muito trabalho. Na época, isso era o que menos importava para a garotada. Quando eu ou meu irmão passávamos do ponto, dona Quitéria não perdia tempo negociando. “Se fizer outra mal criação, eu te deixo morando no asilo dos velhinhos.” Como se pode notar, mamãe não botava muita fé nas ideias de Piaget. Mas a ameaça acertava na veia, e qualquer moleque baixava a crista. Durante anos, o lugar era a casa do bicho-papão, o castigo supremo.

Só consegui exorcizar o fantasma nos anos 80, já jornalista formado e atuante. Fui ao asilo (perdão, ao Hospital Pedro II) fazer entrevistas sobre a situação do idoso para a Folha de S. Paulo. O prédio não era mais tão grande — e nem era porque eu tinha crescido. As freiras que o administravam haviam vendido parte do terreno a um hipermercado. Os velhinhos perderam um belo jardim, o bairro ganhou um centro de abastecimento. E o muro, acho, mudou de cor.

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Mudou também a forma de encarar os “asilos”. Os mais chiques ganharam banho de loja, passaram a se chamar casa de repouso e custam pequenas fortunas mensais, são tipo uma escolinha infantil para a vovó. Alguns idosos chegam a investir numa espécie de pecúlio para, chegada a hora de ser cuidados por terceiros, terem garantia de atendimento mais profissional. Mesmo assim, para alguns de nós, ainda filhos, soa incômodo “despachar” os pais. O próprio verbo é pejorativo.

Nos asilos públicos ou mantidos por instituições de caridade, a situação é sempre mais complicada por causa da conhecida insuficiência de recursos. Mas tanto os pobres quanto os ricos empatam num quesito: muitos dos velhinhos “despachados” para lá são esquecidos, nunca recebem visita, muito menos um gesto de carinho. Mesmo assim, alguns mantêm um sorriso otimista. Nós, que vivemos cercados de gente a mil por hora, redes sociais em polvorosa e “likes” como medida de sucesso, achamos impossível sorrir naquela solidão. Mas eles sorriem.

Na minha cabeça de ficcionista, pelo menos um dos sobreviventes da roda dos abandonados teria uma grande surpresa nesta semana. Impressionada com a incrível semelhança do sorriso do personagem com um retrato da mãe, Izabel Cristina, bancária aposentada do Horto Florestal, procuraria o asilo — perdão, o hospital. Com o auxílio de exames de DNA, descobriria que ali estava o irmão perdido e tão pranteado pela mãe, que fora obrigada a abandonar o bebê etc. etc. Infelizmente, a vida real não imita a novela das 6.

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