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Parque Santo Antônio: o bairro campeão de mortes

Mais de 300 favelas na área, moradores amedrontados por traficantes e uma delegacia que convive com dois pontos de venda de drogas na vizinhança

Por João Batista Jr.
Atualizado em 1 jun 2017, 18h09 - Publicado em 18 ago 2012, 00h51
Capa 2283 - Parque Santo Antônio - Campo do Astro
Capa 2283 - Parque Santo Antônio - Campo do Astro (Mario Rodrigues/)
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Especializado em fazer crônicas sobre a dura realidade da periferia paulistana, o grupo Racionais MC’s cita em várias de suas músicas o Parque Santo Antônio, na Zona Sul. Numa das mais conhecidas, “Fim de Semana no Parque”, o cantor Mano Brown, que mora no pedaço (ou na quebrada, como prefere dizer) e chegou a ser detido na delegacia da área durante uma noite em 2004 por desacato e resistência a uma dupla de PMs, conta no seu estilo direto e verborrágico uma cena muito comum no lugar: “Tem um corpo no escadão, a tiazinha desce o morro. Polícia, a morte. Polícia, socorro”. Em seguida, ele continua com sua voz grave o discurso monocórdio, passando a lamentar a falta de clubes para a prática de esportes e de outras opções de lazer no bairro. “Mas aí, se quiser se destruir, está no lugar certo. Tem droga e cocaína sempre por perto”, conclui ele.

Mario Rodrigues

Campo do Astro: point de jovens sem áreas de lazer

A canção é um bom flagrante dos problemas principais que transformaram a região na mais perigosa da capital. Segundo estatísticas divulgadas em julho pela Secretaria de Segurança de São Paulo, ocorreu ali no primeiro semestre um total de 33 homicídios — um a cada seis dias (no mesmo período, o Tatuapé teve um caso, a Vila Maria seis e o Morumbi treze). Somando-se as ocorrências dos vizinhos Capão Redondo e Jardim Ângela, o chamado “triângulo da morte” concentra um em cada dez assassinatos que ocorrem na capital.
“Aqui é o berço da malandragem”, define o produtor musical Gilson Lima, de 50 anos. Ele nasceu no Santo Antônio e entrou para o mundo do crime no fim da década de 80, quando afirma ter matado um homem que havia assaltado seu irmão. “Foi pura vingança”, lembra. Na sequência, começou a realizar assaltos e se envolveu com o tráfico de drogas. Teve várias passagens pela cadeia e, na última delas, ficou três anos e meio na penitenciária de Itapetininga, no interior. Libertado em maio de 2011, decidiu mudar de vida. Virou evangélico e se prepara para montar uma empresa especializada em reciclar entulho de construção. Do passado, agora jura manter distância. “Quantos eu matei? Em primeiro lugar, quem mata é a arma. Além disso, nunca fiquei esperando para ver se o tiro havia realmente tirado a vida do sujeito.”
Localizado nas proximidades da Represa de Guarapiranga e separado pela Marginal Pinheiros e pelas pontes do Socorro e João Dias de bairros como o Brooklin, o Parque Santo Antônio tem cerca de 270.000 moradores e é uma das regiões mais pobres de São Paulo. A degradação começou em meados dos anos 70, quando o local recebeu uma ocupação desordenada de famílias que migravam para cá em busca de emprego. Até hoje, é comum escutar em bares, mercados e açougues sotaques de estados como Pernambuco, Bahia e Ceará. A falta de estrutura para receber tanta gente resultou num caos urbanístico, problema que foi ganhando contornos de tragédia com o passar do tempo.
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Como diz o rap dos Racionais, alternativas de diversão são escassas. O único campo de futebol, durante muito tempo, era usado como local para a desova de cadáveres. Hoje, garotos entre 12 e 20 anos circulam por lá, sem camisa e com vistosos tênis nos pés, consumindo drogas. À noite, eles comparecem aos pancadões oferecidos pela boate Nitro Night, solitário point de agito. Há incontáveis vielas que dão acesso às mais de 300 favelas do Santo Antônio. Muitas não passam de aglomerados com cerca de 100 casas. Andar por essa área implica encontrar restos de lixo, cruzar com ratos e quase ser atropelado por motos que desafiam as leis da física ao circular por espaços com menos de 1 metro de largura. Os moradores sobrevivem em barracos de madeira instalados sobre córregos.
Para chegar até sua palafita de 15 metros quadrados, a dona de casa Claudia Regina de Oliveira, de 34 anos, atravessa 20 metros de um corredor suspenso sobre a água, pisando em portas podres, comidas por cupins e encharcadas pela umidade. Tudo na residência, dividida em três cômodos, é improvisado. O banheiro fica a 2 metros da cozinha, separado por uma cortina. Utensílios como panelas, copos e facas permanecem amontoados em sacos plásticos, que fazem as vezes de armário. “Dá gosto ficar dentro de casa?”, pergunta Claudia. “Por isso, passo o dia inteiro fora daqui.”
A oferta de drogas se dá ao ar livre, em diversos lugares. O “pino” de cocaína (1 grama) custa 10 reais. “Um kit com doze unidades vale 100 reais”, afirma um traficante. “Tem gente que vai dar uma festinha e precisa de mais combustível”, justifica ele. Uma pequena trouxa de maconha sai por 5 reais. De tempos em tempos, os bandidos ordenam um toque de recolher em certas zonas do bairro, devido a brigas ocorridas para o acerto de contas entre eles (no momento, os moradores dizem que o dono do pedaço atende pelo apelido de Tarzã). “Sempre me perguntam como é viver num lugar tão perigoso”, diz Caroline Ventura, de 20 anos, que estuda música e faz reportagens para uma revista do bairro. “Minha resposta sincera: é insuportável.”
A maioria dos comerciantes sofre com a possibilidade de morrer em algum assalto. “Só neste ano, já nos roubaram quatro vezes”, contabiliza um vendedor do açougue Tourinos Carne, sob a condição de permanecer no anonimato. Em duas ocasiões, os bandidos entraram pelo telhado durante a madrugada. Subtraíram itens como computador e máquina registradora, além de carne-seca e goiabada. Nas outras duas vezes os criminosos deram as caras em horário comercial. “Botaram a arma na minha cabeça, pediram que eu abrisse o caixa e entregasse tudo o que tinha. No caso, 800 reais em notas”, lembra o mesmo funcionário.
Ali perto, a lanchonete Pastel Gigante — Uma Delícia de 30 Centímetros foi assaltada três vezes no primeiro semestre. Na última ocasião, há duas semanas, três homens armados fizeram um arrastão. Levaram sete celulares, três máquinas fotográficas dos clientes e 250 reais do caixa. “Eu tenho pânico de abrir e fechar meu consultório”, diz o dentista Lucas Tadeu, morador do Morumbi, que no ano passado abriu um consultório no Parque Santo Antônio. No mês passado sua clínica acabou invadida no horário do almoço, quando não havia ninguém dentro. Carregaram celular, aparelho de som e um atabaque que decorava o consultório. Após o incidente, Tadeu instalou arame farpado no portão. Apesar da dor de cabeça frequente com a violência, o profissional não pensa em fechar as portas, pois acha que as vantagens do lugar compensam o risco. “Pessoas mais simples não têm plano odontológico, para mim isso é uma beleza”, afirma ele, que cobra 40 reais por uma obturação. “O povo daqui paga à vista.”

Mario Rodrigues

Capa 2283 - Parque Santo Antônio - Lucas Tadeu
Capa 2283 – Parque Santo Antônio – Lucas Tadeu ()

O dentista Lucas Tadeu e a principal rua de comérico: assaltos frequentes

A cada esquina, murmúrios de histórias impressionantes de tragédias circulam entre os moradores. Com medo de represálias dos bandidos, poucos aceitam levantar a voz e comentar publicamente o assunto. Uma dessas corajosas exceções é a aposentada Antônia Silva, de 63 anos. Certa vez, ela abriu a porta do barraco de dois andares onde mora e deu de cara com um saco de lixo preto. Eram 8 horas da manhã. A senhora caiu ajoelhada aos prantos. Dentro, perfurado por facadas nas regiões da cabeça, pescoço e tórax, estava um sobrinho de 18 anos. A temperatura do corpo indicava que o cadáver havia sido deixado poucas horas antes. O caso ocorreu em 2009. Um ano depois, outro parente dela foi assassinado, dessa vez com tiros, e encontrado em uma viela da vizinhança. Ambos pagaram com a vida por ter acumulado dívidas com traficantes.
A dona de casa Claudia Regina de Oliveira, 34, há dois meses também quase perdeu um sobrinho de 17 anos. Acertaram no garoto cinco tiros. Ele sobreviveu e hoje está em recuperação. Em junho, perto do campo de futebol, um rapaz acabou esfaqueado após brigar com um desafeto. Um mês antes, o cunhado da mesma vítima havia sido morto com dois tiros no peito. Poucos são os casos em que a autoria do crime é descoberta e alguém recebe punição. Em março passado, aconteceu um desses episódios raros: um segurança das Casas Bahia acabou condenado a dezoito anos de prisão por atirar num cliente dentro da loja que fica na divisa entre o Capão Redondo e o Santo Antônio. “Meu filho era moreno e estava de bermuda e chinelo. Confundiram com um bandido”, lembra, emocionada, a mãe, Aldeíza Milfont. O rapaz havia ido ao local para comprar um colchão e morreu na hora, segurando na mão a nota fiscal do produto. Tinha 23 anos. Deixou um filho de 7 meses, que é hoje criado pela avó. O caso ocorreu em novembro de 2008. Em março passado, o tal segurança recebeu a sentença de prisão. Está recorrendo em liberdade.
Segundo a polícia, a maioria dos casos está ligada ao comércio de drogas. Rixas entre bandidos e cobranças de dívidas figuram entre os principais motivos dos homicídios. Roubos e furtos no bairro costumam ser reprimidos pelos traficantes. Um assaltante que se identifica como “Neguinho”, de 18 anos, explica a lógica do negócio. “Entrar em açougue aqui para pegar celular e dinheiro do caixa é coisa de ‘noias’”, afirma ele, referindo- se ao apelido pelo qual são conhecidos os viciados em crack. “Cobras criadas do pedaço como eu agem em locais do outro lado do Rio Pinheiros, como o Brooklin e o Itaim.”
Neguinho anda com uma pistola 380 automática, comprada no mercado negro de armas por 700 reais. Conta estar nessa vida desde o início da adolescência, por necessidade e status. “As meninas do pedaço só olham para os marginais. Eles curtem esse lance de poder”, teoriza. Sua especialidade são assaltos e sequestros-relâmpago. “Vou sempre em cima das mulheres, que são mais medrosas. É chegar e levar. Homem é imprevisível, pode querer retaliar e ter troca de tiros”, explica.
Por incrível que pareça, a situação já foi pior no Parque Santo Antônio. Em 2000, ápice da crise, ocorreram 224 homicídios, o que dá uma média de um caso a cada dois dias, quase o triplo da atual. “A gente escutava tiroteio todo dia”, lembra a moradora Jaqueline Mendes. A exemplo do que aconteceu em quase todas as outras áreas da cidade, esse número começou a cair, em razão de vários investimentos feitos pela polícia, sobretudo em reforços de patrulhamento — de acordo com a Secretaria de Segurança, 150 policiais militares são responsáveis pela ronda no bairro, divididos em três turnos. A partir de 2011, porém, mais uma vez seguindo os indicadores do restante da metrópole, a situação no Parque Santo Antônio voltou a piorar, e a curva da criminalidade mostra hoje uma tendência de subida. Nessa mesma época, o bairro assumiu a liderança do ranking de homicídios na capital, desbancando desse posto o Jardim Ângela e o Capão Redondo.
No trabalho de solucionar os crimes, a maior dificuldade é romper a lei do silêncio entre os moradores. As pessoas temem a polícia tanto quanto temem os bandidos. “Conquistar a confiança da população representa um dos nossos grandes desafios”, reconhece Jorge Carlos Carrasco, diretor do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Considerando o cenário atual, será mesmo um desafio e tanto. Na vizinhança do 92º DP, responsável pela região, há dois pontos de venda de drogas e um local com caça-níqueis. Desde abril deste ano, a delegacia está aos cuidados de Ruy Ferraz Fontes. Durante mais de uma década, ele foi o xerife da Delegacia de Roubo a Bancos do Deic. Acabou exilado no 69º DP, no extremo da Zona Leste, depois de surgirem suspeitas de que policiais ligados a ele estavam envolvidos em casos de extorsão a criminosos.
Em setembro do ano passado, Fontes abriu uma investigação paralela sobre o roubo milionário de joias de uma agência do banco Itaú na Avenida Paulista — distante mais de 20 quilômetros da área do 69º. A ação atrasou em mais de duas semanas a operação do caso. O episódio lhe rendeu um processo administrativo. Após uma passagem rápida por um departamento burocrático da polícia, ele recebeu a incumbência de chefiar o 92º DP. É esse o homem que promete hoje aumentar a eficiência da delegacia do Parque Santo Antônio. “O negócio não é prender o cara que vende um pino de cocaína, mas quem fornece a mercadoria a essa turma”, afirma ele, que trouxe quatro novos funcionários para reforçar sua equipe. “Em um ou dois anos, iremos melhorar os índices de violência daqui.”

Mario Rodrigues

Capa 2283 - Parque Santo Antônio - Casa do Zezinho
Capa 2283 – Parque Santo Antônio – Casa do Zezinho ()

Casa do Zezinho: ONG atende 1.500 crianças do bairro

Cansados de ouvir promessas como essa, os moradores procuram opções para viver com o mínimo de dignidade. Algumas ONGs são fundamentais para melhorar a qualidade de vida do bairro, com destaque para a internacionalmente reconhecida Casa do Zezinho. Ao longo dos últimos vinte anos, 10.000 crianças passaram por lá. Atualmente, 1.500 jovens são atendidos. O mérito da entidade é o tirá-los da rua oferecendo aulas de panificação, natação, artes, reforço escolar e educação ambiental. “Os garotos que chegam aqui aos 7 anos são vitoriosos apenas por estar vivos”, diz a fundadora, Dagmar Rivieri Garroux. “A maioria poderia já ter sido assassinada.”
Tia Dag, como ela é chamada, conhece como poucos a triste rotina do seu público-alvo. “Eles dormem em casas apertadas, escutam funk vindo de alguma casa vizinha pela madrugada e caem no sono por exaustão.” Outro alento local se dá pela presença das igrejas evangélicas. Grandes ou pequenas, elas estão tão presentes nas favelas quanto os botecos. Além de fornecerem alívio espiritual, cumprem a função de ser um espaço de lazer. É para lá que muitos pais levam seus filhos para rezar e cantar músicas gospel. Algumas servem sopas e jantares ao fim das orações. “Tenho fiéis que foram chefes de quadrilha e assassinaram até parentes. Sem os cultos, a situação do bairro seria muito pior”, diz Aparecido Santana, da Assembleia de Deus, um dos pastores mais respeitados da região.
O templo comandado por ele tem 1.000 metros quadrados e fica ao lado de algumas biqueiras onde viciados trocam creme de cabelo por pedras de crack. “Nosso trabalho é estar aqui para acolher quem, em algum momento, resolver desistir dessa vida”, diz. Mano Brown, dos Racionais MC’s, em outro trecho de sua música sobre a realidade da quebrada, é menos otimista com relação ao futuro daquela gente: “Eles só querem paz e mesmo assim é um sonho. Fim de semana no Parque Santo Antônio”.
NÚMEROS QUE ENVERGONHAMTerritório ……………………………………………………. 25 quilômetros quadrados
População ………………………………………………………………………270.000 habitantes
Favelas na região ………………………………………………………………………………….300
Hospitais …………………………………………………………………………………………………1
Déficit de vagas em educação infantil ………………………….5.944
Valor dos barracos ………………………………..de 10.000 a 45.000 reais
A posição do bairro no ranking dos mais perigosos e as áreas mais seguras
(Vítimas de homicídio doloso e latrocínio no primeiro semestre de 2012) MAIS VIOLENTOSParque Santo Antônio …………………………………….33
Capão Redondo ……………………………………………………….32
Perus ……………………………………………………………………………………..25
MAIS SEGUROSJardim Paulista …………………………………………………………….0
Liberdade ……………………………………………………………………………0
Limão ……………………………………………………………………………………..0

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Em dias de chuva, a região onde as duas vizinhas moram se transforma em um piscinão ( / Personagens do Parque Santo Antônio: Joseane Mateus e Jaqueline Mendes)
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Hoje evangélico, o produtor musical já matou um assaltante por vingança ( / Personagens do Parque Santo Antônio: Gilson Lima)
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A dona de casa confessa que já perdeu as esperanças de sair do barraco de 15 metros quadrados ( / Personagens do Parque Santo Antônio: Claudia Regina de Oliveira)
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A moça de 20 anos confessa que morar na região é simplesmente insuportável ( / Personagens do Parque Santo Antônio: Caroline Ventura)
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A mulher de 52 anos perdeu o filho em 2008, quando o segurança de uma loja atirou nele ( / Personagens do Parque Santo Antônio: Aldeíza Milfont)

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