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Ciclista atropelado na Paulista: um futuro decepado

Após perder o braço direito ao ser atingido por um motorista que havia bebido, David Santos Sousa virou símbolo da indignação dos paulistanos contra a selvageria nas ruas

Por Daniel Bergamasco, João Batista Jr. e Rachel Verano [com reportagem de Carolina Giovanelli]
Atualizado em 1 jun 2017, 17h48 - Publicado em 14 mar 2013, 21h52

Eram 20 horas do sábado (9) quando David Santos Sousa chegou à casa da tia com quem mora, em Pedreira, na Zona Sul, vestindo capa de chuva. “Estou exausto. Vou comer e cair na cama”, disse o garoto, que havia retornado de bicicleta do trabalho. No emprego de fazer rapel para limpar janelas em grandes alturas, atuava nos últimos dias no prédio do Instituto do Câncer (Icesp), na Avenida Doutor Arnaldo, a cerca de 20 quilômetros dali. David fez seu prato com arroz, feijão e bife e, uma hora depois, pegou no sono.

+ “Estou tentando superar o trauma”, diz ciclista David Santos Sousa

Às 20 horas do mesmo sábado, na Saúde, o estudante de psicologia Alex Kozloff Siwek, também de 21 anos, entrou no banho. Em seguida, esquentou um bolo de carne que os pais trouxeram para ele do Delishop, restaurante judaico no Bom Retiro. Jantou, foi ao quarto dos dois e se deitou no meio deles. Como tinha dormido até o meio-dia, estava acordadíssimo.

+ Leia entrevista com o pai de Alex Kozloff Siwek

Resolveu então cair na balada. Pouco antes de assumir o volante de seu Honda Fit prateado e sair pela cidade, por volta das 10 da noite, ouviu do pai: “Vê se não bebe”. Passou na casa do amigo Diego Gaio, na Vila Mariana, e chegou à 1h27 à boate Josephine, no Itaim. Ali consumiu, conforme registrado na comanda, três doses de vodca Ketel One e uma lata de energético Red Bull. Deixou o lugar às 5h23 de domingo. Por volta das 5h45, a história dos dois se cruzou na Avenida Paulista, perto da Brigadeiro Luís Antônio, com resultados trágicos.

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Alex Siwek
Alex Siwek ()

Alex, segundo testemunhas, trafegava em ziguezague, aparentemente em alta velocidade. Entrou em uma das raias que começavam a ser demarcadas com cones para a ciclofaixa de lazer. Deu de cara com David, que pedalava na contramão. Com o choque, o corpo do limpador se lançou diante do motorista e o braço direito acabou guilhotinado entre o ombro e o cotovelo em meio ao vidro estilhaçado.

Acidente na Avenida Paulista
Acidente na Avenida Paulista ()

Alex fugiu sem prestar socorro. “Ele teve medo de ser linchado, por ouvir gritos de ‘pega!, pega!’”, afirma Pablo Testoni, um de seus advogados. David ficou desacordado no chão, sem respirar. Por sorte, acabou socorrido pelo aluno de publicidade Thiago Chagas, que estudou enfermagem. Ele improvisou um torniquete com um cadarço e uma camiseta para reduzir o sangramento, fez massagem cardíaca e respiração boca a boca. David acordou. “Nessa hora, alguém comentou que ele estava sem um braço”, lembra Chagas. “A vítima então lançou a mão esquerda à procura da direita e tivemos de segurá-lo.” O resgate chegou em vinte minutos e levou o acidentado para o pronto-socorro do Hospital das Clínicas. Enquanto isso, Alex partiu direto de lá para a casa de Diego, na Vila Mariana, onde lavou as mãos sujas de sangue.

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Ao retornar sozinho para o carro é que teria notado a parte do corpo da vítima dentro do seu Honda Fit. Em seguida, segundo contou, dirigiu-se sozinho ao córrego da Avenida Ricardo Jafet para jogar fora o braço de David. O que ele fez eliminou completamente as chances de recuperação total do atropelado.

Em casos de mutilação em que a parte do corpo é recolhida, o Hospital das Clínicas, para onde levaram a vítima, tem mais de 80% de sucesso no reimplante, segundo o cirurgião plástico Paulo Tuma.

Depois de passar pela operação de quatro horas para limpar a região, suturar e fechar o coto de amputação com um enxerto, David ficou um dia na UTI e, na segunda (11), foi transferido para um quarto normal, onde permanecia, até o final da tarde da última quarta-feira, aguardando a alta. “Estou me esforçando para aprender a fazer as coisas com o braço esquerdo, mas é muito complicado”, afirmou ele. “Além disso, ainda dói muito na região.”

David Sousa - VEJA SÃO PAULO
David Sousa – VEJA SÃO PAULO ()
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O fenômeno, conhecido como “dor do membro-fantasma”, é comum em casos como esse. Mesmo depois da mutilação, o cérebro continua a perceber estímulos relacionados à parte acidentada.“Em geral, os pacientes sentem especialmente os movimentos da mão”, afirma o cirurgião Tuma. A despeito da tragédia, do duríssimo processo de recuperação que terá pela frente e das mudanças acarretadas em sua vida pelo acidente, David mantinha o otimismo. “Vou conseguir viver sem o braço”, disse.

No início da manhã do desastre, a desgraça fez os pais do motorista e do ciclista acordarem assustados, às 7 horas, aproximadamente. A empregada doméstica Antonia Santos, mãe de David, ao receber um telefonema, foi ao ponto de ônibus, depois para a Estação Jabaquara do metrô e, de lá, ao HC. Felix Siwek Albelda, CEO em uma multinacional de eletrônicos, pulou da cama com o barulho do interfone. Era, segundo ele, o porteiro, que o avisou de que Alex, seu único filho, ia ensanguentado para uma base da Polícia Militar. “Pensei que tivesse tomado um tiro em algum assalto”, contou (veja a entrevista com Felix aqui).

Desde o dia posterior à prisão de Alex, seus advogados reivindicam na Justiça a soltura do cliente. Até a quarta-feira passada, porém, ele continuava no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, em cela coletiva. Uma situação inusitada para o rapaz, que foi adotado aos 9 meses e era “sempre carinhoso”, como define o pai. “As pessoas se cansaram de vê-lo me beijando em shoppings”, diz Albelda.

Por ironia, Alex tem bicicleta e pedala eventualmente. Também se exercita três vezes por semana na academia do prédio, o que o ajuda a controlar o colesterol precocemente alto. No dia em que foi para a delegacia, sua mãe lhe mandou uma pequena trouxa com roupas (contendo um par de chinelos, bermuda e camiseta), suprimentos (três garrafas de água e um pacotede biscoito) e seus remédios. Segundoa família, o jovem andava feliz com o curso de psicologia que faz na Universidade Anhembi Morumbi, depois de ter abandonado a faculdade de marketing.

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Alex estudou no Colégio Rousseau, na Vila Mariana. O psicanalista Benedito Aércio Lombardi, na época diretor pedagógico da escola, recorda seu desempenho mediano e suas recorrentes expulsões da sala de aula. “Nem me lembro quantas vezes tive de explicar a ele que escola não é circo”, afirma. A conduta preocupava a mãe, a dona de casa Kora, que se tornou “a recordista de conversas” com o coordenador. “Eu ficava admirado com o modo como ela era encantada com o Alex e presente em sua vida”, diz Lombardi. “Talvez por isso, não conseguia dizer não a ele.”

David também está longe de ser exemplar nos estudos. Natural de Santa Quitéria, no Ceará (chegou a São Paulo com 1 ano), repetiu algumas séries e cursa o 3º ano do ensino médio, no perío do noturno — sai às 23 horas, mesmo acordando geralmente às 4 no dia seguinte. “Ele estava indo bem, e espero que não desista agora do sonho de se formar”, torce a tia Eliene, para cuja casa David se mudou uma semana antes do acidente, depois de dividir por meses um imóvel com três amigos. “Ele queria mais espaço, então saiu da casa da mãe, mas as contas andavam apertadas”, explica o cunhado Cícero Flávio.

Risco Real
Risco Real ()

Pelo trabalho na empresa Vertical Services, recebia entre 1 000 e 1 200 reais por mês. Antes, já havia trabalhado como estoquista no supermercado Pão de Açúcar e como atendente no McDonald’s. Nas horas de lazer, sua maior diversão é o futebol. São-paulino fanático, sempre se destacou no gol. Chegou a atuar em fase de testes como o camisa 1 do time júnior da Portuguesa, há cerca de cinco anos. Pouco depois, voltou ao Ceará, onde morou comos avós. É tido como “um rapaz família” e vai à missa de domingo com regularidade. Mesmo não sendo fã de baladas, segundo os vizinhos, gosta de cerveja e não perde uma roda de samba, onde entoa sucessos de seus grupos prediletos, como Fundo de Quintal e Exaltasamba. Nas festinhas da família, sempre deu show com manobrasde break. A bicicleta com a qual se acidentou,“coisa de atleta, com pneus fininhos”, como descreve o cunhado, era um sonho de consumo pago em prestações.

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A tragédia provocou manifestações imediatas. No dia do atropelamento, quase 100 ciclistas protestaram deitados na Avenida Paulista. Uma nova concentração está marcada para o domingo (17), quando os ativistas pretendem seguir a pé, empurrando a bicicleta, até o local da colisão. A revolta se espalhou pelas redes sociais. No próprio dia 10, a médica Rachel Baptista, da equipe do Hospital das Clínicas que atendeu David, desabafou em sua páginado Facebook: “Quero manifestar a minha indignação quanto à atitude dess emonstro (…). Estávamos prontos para tentar o reimplante, mas infelizmente a polícia e os bombeiros não conseguiram encontrar o braço no rio”. Imediatamente, várias campanhas tiveram início para a arrecadação de fundos em prol da compra de uma prótese mecânica e ajuda à família da vítima.

+ Opine: A cidade está preparada para o convívio entre carros e bicicletas?

A ocorrência é uma das mais macabras dos últimos tempos, mas acidentes com bicicletas são rotina na metrópole. A região da Paulista foi palco de alguns deles, caso dos atropelamentos envolvendo ônibus que mataram as ciclistas Márcia Regina de Andrade Prado, aos 40 anos, em 2009, e Juliana Dias, bióloga, aos 33 anos, em 2012. Segundo os dados de atendimento do Samu, apenas no ano passado foram registrados 14.395 acidentes de trânsito com ciclistas na capital. No mesmo período, números da CET revelam que houve 52 óbitos, além de 438 mortes de motociclistas, 201 de ocupantesde veículos e 540 de pedestres. No total, o trânsito tirou a vida de 1.231 pessoas em São Paulo em 2012. “Uma cidade com mais de 10 milhões de habitantes e uma frota superior a 7 milhões de veículos não está preparada para uma convivência harmônica com bicicletas”, acredita o engenheiro especializado em trânsito Roberto Scaringella.

Além da violenta briga por espaço nas ruas, há a agravante da impunidade nos casos de atropelamento. Apesar do rigor cada vez maior da Lei Seca, raramente condutores que provocaram desastres depois de ter consumido bebida alcoólica acabam na prisão. Exemplo disso são as pessoas envolvidas em três dos acidentesde maior repercussão nos últimos anos, que aguardam o julgamento em liberdade — a nutricionista Gabriella Guerrero Pereira, que matou o administrador Vitor Gurman depois de perder o controle e capotar um Land Rover na Vila Madalena; o auxiliar de bibliotecário Marcos Alexandre Martins, que vitimou Miriam e Bruna Baltresca, mãe e filha, em frente ao Shopping Villa-Lobos; e o bancário Fernando Mirabelli, que atingiu três garis na Marginal Pinheiros perto da Ponte Engenheiro Ary Torres, matando dois deles.

No dia do atropelamento, Alex suspirou, segundo o advogado Pablo Testoni: “Vou ter de trabalhar a vida inteira para custear esse menino”. As famílias ainda não conversaram entre si. “Os pais dele deveriam ter ligado para oferecer uma palavra de carinho. Não pediram desculpas, isso eu acho que seria o mínimo”, diz a mãe de David.

Os parentes deverão pedir uma indenização de 1,5 milhão de reais. Alex foi indiciado pela delegada Priscila Rodrigues, do 5º Distrito Policial, da Aclimação, sob suspeita de tentativade homicídio (dois a treze anos de prisão), embriaguez ao volante (seis meses a três anos, multa e proibição do direitode dirigir), fuga do local do acidente (seis meses a um ano ou multa) e alteração no cenário da batida (seis meses a um ano ou multa). O primeiro juiz que apreciou o caso, Alberto Anderson Filho, foi contrário ao indiciamentode Alex por tentativa de homicídio. Para ele, o correto seria lesão corporal grave (pena de dois a oito anos). A questão do estado de embriaguez é controversa, já que o exame clínico feito horas depois no Instituto Médico-Legal não confirmou o fato.

Considerando que Alex é réu primário, são grandes as chances de cumprir em liberdade uma eventual pena. No caso de David, o certo é que ele está condenado a mudar radicalmente sua vida daqui para a frente. Não poderá soltar pipa nas lajes de seu bairro, tocar cavaquinho nas rodas de pagode que frequenta, ser goleiro nas peladas com os amigos nem se aventurar em rapel nos espigões. “Ele está conformado, mas sabe que precisará encontrar outra profissão, pois não vai poder fazer o que gosta”, afirma o pai, o pintor Gerôncio Lopes.

Uma cidade como a nossa só poderá mesmo ser considerada um local civilizado quando vidas decepadas, como a de David e a de tantos outros, não virarem mais simples estatísticas de trânsitoe histórias que, depois de algum tempo, caem no completo esquecimento. Que a comoção provocada por seu mutilamento seja um marco para uma grande mudançade atitude de nós, cidadãos paulistanos, e das autoridades.

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