Escolas adotam ChatGPT e outras ferramentas de inteligência artificial na sala de aula
Colégios e faculdades de São Paulo incluíram no currículo disciplinas sobre a tecnologia que promete revolucionar as atuais profissões
Quando o laboratório americano OpenAI lançou, em 30 de novembro, uma tecnologia chamada ChatGPT, o mundo entrou em alvoroço. A inteligência artificial generativa, como o nome sugere, era capaz de criar textos quase tão naturalmente como um ser humano — o que ao mesmo tempo maravilhou e assustou as pessoas. Bastava descrever à ferramenta o conteúdo desejado e, tchan!, a mágica acontecia.
As quase infinitas aplicações causaram apreensão acerca de um impacto generalizado na sociedade: a sensação era de que as máquinas poderiam escrever petições como um advogado, análises de doenças como um médico, filmes de suspense como um roteirista, linhas de código como um programador — e, bem, até reportagens como um jornalista. Ao dominar a linguagem, enfim, era como se o ChatGPT pudesse pensar.
Para complicar, as IAs têm avançado bem além da escrita e já são capazes de produzir, com a mesma desenvoltura, imagens e vídeos a partir de comandos simples — como a própria capa desta edição da Vejinha (saiba mais no fim deste texto). Em vez de temer o futuro, porém, algumas escolas de São Paulo apostam naquilo que parece mesmo a melhor forma de domá-lo: ensinar aos jovens, desde cedo, como utilizar esses recursos.
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Nos últimos meses, colégios e faculdades paulistanos incluíram disciplinas sobre as IAs no currículo e passaram a usar o ChatGPT em salas de aula. Instituições como o Liceu de Artes e Ofícios, o Colégio Bandeirantes e o Insper elaboram manuais sobre o tema para os alunos, para alertá-los sobre as boas práticas do novo universo.
No Porto Seguro, onde a IA faz parte da grade curricular desde 2015, agora ensinam-se as ferramentas generativas, essas capazes de criar textos, imagens e vídeos quase instantaneamente — além do ChatGPT, existem plataformas semelhantes como o Bard, do Google, o Claude, da Anthropic, e o Bing, da Microsoft.
No segundo semestre, o Dante Alighieri, após seis meses de discussões internas, vai incluir o ensino de inteligência artificial na disciplina chamada Steam-S, ministrada uma vez por semana, que aborda desde cidadania digital até o “pensamento computacional”.
“O ‘eixo IA’ será permanente na grade do fundamental II e do ensino médio”, diz Verônica Cannatá, coordenadora do núcleo de tecnologia — onde também são ensinados temas como o metaverso e as NFTs. “Não vejo a tecnologia como um departamento da escola, mas algo que permeia todo o currículo”, ela diz. “Todas as disciplinas precisarão se adequar à nova realidade. Até o departamento emocional deve investigar como crianças e adolescentes interagem com as ferramentas e que impacto têm na saúde mental”, diz.
As novas peripécias do ChatGPT vão entrar na rotina do Liceu de Artes e Ofícios também no segundo semestre. Após criar um manual de uso da ferramenta, cuja primeira versão ficou pronta em junho, os professores vão desenvolver atividades específicas para o ensino médio e o técnico.
“O tema vai afetar a escola inteira. Alguns colégios têm proibido (o uso de IAs generativas), mas entendemos que a ferramenta veio para ficar”, diz Lucas Chao, professor de inteligência artificial da instituição. A ideia das aulas será mostrar como a plataforma funciona, comparar textos produzidos por humanos e máquinas e instruir os alunos sobre o uso adequado da ferramenta.
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Nas tarefas que envolverem a tecnologia, a própria conversa entre o aluno e a IA deverá ser entregue ao professor. “Vamos dar exemplos de prompts (comandos dados para criar o conteúdo). É uma oportunidade de desenvolver a habilidade de fazer perguntas, exigida na vida real”, explica Chao. Para especialistas, o ChatGPT é como uma fresta que permite antever os próximos passos da evolução tecnológica — o que torna ainda mais importante o ensino da ferramenta nas escolas.
A sigla GPT significa Generative Pre-trained Transformer, algo como Transformer Generativo Pré-treinado, ou seja, um modelo de linguagem alimentado por conjuntos predefinidos de dados. Atualmente, é gratuito na versão 3.5, cujo banco de informações vai só até setembro de 2021. A versão 4.0, lançada em março só para assinantes, tem acesso à “internet atualizada”.
“Todas as disciplinas precisarão se readequar à nova realidade”
Verônica Cannatá, do Dante Alighieri
“Abriu-se um caldeirão incontrolável”, diz o sociólogo Glauco Arbix, professor titular da USP e coordenador do Observatório de Inovação da universidade (veja a entrevista abaixo). “A IA generativa facilita diversas atividades, inclusive as acadêmicas: pesquisas, síntese de artigos, revisão de literatura, inspiração, correção e outras tarefas”, afirma o pesquisador.
“Mas, evidentemente, ela tem suas limitações. O ChatGPT não tem compromisso com a verdade e a precisão. Ele funciona para produzir algo coerente. Mas quem acredita que coerência significa verdade dá com a cabeça na parede”, diz. Para Arbix, o ideal é que os alunos usem as ferramentas sob supervisão dos professores. “As escolas precisam se adaptar. Se não falarmos sobre esses temas em sala de aula, será uma tragédia anunciada”, alerta.
3 perguntas para Glauco Arbix
Será mais difícil diferenciar “ideias” criadas por humanos e por máquinas?
É difícil, sim, distinguir um texto feito por máquinas de outro feito por humanos. Mas elas ainda não prescindem da ação humana. Nós fazemos atividades inalcançáveis pela inteligência artificial: as emoções, interações, sinergias… Elas têm uma dificuldade grande nisso.
A inteligência artificial pode fazer mal?
Há inúmeros exemplos disso. Na área da saúde, há casos de pessoas que tentaram se automedicar e receberam orientação equivocada. Na escola, um aluno pode perguntar sobre a biografia de alguém, por exemplo, e a IA inventar algo. Não dá para deixar a tecnologia “solta”.
O que deve ser feito pelos governos para evitar problemas futuros com as IAs?
Quando se fala em regulamentação, o Brasil está na vanguarda. Tem um projeto de lei em discussão com base em parâmetros europeus (o PL 2 338/2023). O Ministério da Educação deve dar diretrizes às escolas, para induzir o uso responsável das IAs. É fundamental ter um corpo técnico que acompanhe o tema e coloque limites se a tecnologia extravasá-los. Basta ver os danos do WhatsApp à democracia (na propagação de fakenews).
“Cada vez mais será preciso construir uma formação crítica do aluno sobre a tecnologia”
Lucas Chao, do Liceu de Artes
No Colégio Stocco, em Santo André, o assunto das IAs generativas surge já nas aulas no 8º ano do ensino fundamental. “Existem os rumores de que essas tecnologias podem deixar os estudantes preguiçosos (uma vez que são capazes de fazer textos e pesquisas). Mas, quando bem aplicadas, elas aguçam a curiosidade deles”, afirma Luís Gustavo Alves, professor de robótica na instituição. “Cabe ao professor se preparar e saber abordar as tecnologias de forma correta”, diz.
Se impõem um desafio aos professores, as IAs generativas também podem ajudá-los no dia a dia. “Eles vão ganhar tempo para focar em atividades que a tecnologia não faz”, afirma Joice Lopes Leite, diretora de Educação Digital do Porto Seguro. “A IA serve para demandas operacionais, como montar um PowerPoint ou até elaborar perguntas para uma prova. O tempo do professor é precioso. Ele poderá se dedicar mais ao diálogo com alunos, à exposição de ideias”, afirma.
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Mas o que fazer ante ao risco de plágio ou de trabalhos criados totalmente por IAs? De momento, as escolas estudam protocolos, como dar nota zero à tarefa suspeita ou criar mecanismos para avaliar se a atividade foi mal planejada pelo professor. Existem, também, plataformas digitais programadas para pegar no pulo os textos escritos por máquinas, com base em estatísticas — mas a eficácia ainda é baixa.
Em maio, o Senado Federal começou a discutir um projeto de lei, apresentado por Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para regulamentar os sistemas de IA no país. O texto está em análise pelas comissões temáticas da casa. Nas escolas estaduais paulistas, o assunto ainda engatinha — a Secretaria de Educação apresentou, no semestre passado, uma proposta para desenvolver um programa para apontar erros gramaticais e ortográficos nas redações dos alunos.
A previsão dos pesquisadores é que, no final dessa linha, as IAs irão mudar a própria formação exigida dos jovens. “Escrever vai ser como fazer contas. Ou seja, continuará uma habilidade importante, mas que pode ser facilitada por uma máquina — como faz uma calculadora”, diz Tiago Tavares, engenheiro de computação e professor do Insper.
Em janeiro, ele conduziu um experimento na instituição para testar o desempenho do ChatGPT no Enem. Descobriu que a máquina poderia ter sido aprovada no exame. Como resultado, o Insper começou a elaborar um documento de boas práticas para o curso de computação. “O pensamento crítico será a habilidade mais importante, para entender se as informações apresentadas pela IA são reais ou não”, ele afirma. “Assim como a calculadora não destruiu a matemática, o ChatGPT não vai destruir os modelos de linguagem. Mas vai mudar tudo”, conclui o especialista.
Disso, pouca gente parece duvidar. Mas, no mundo onde as “máquinas pensam”, talvez seja preciso pensar mais — inclusive sobre elas. “Deve haver um investimento em olhar crítico”, diz Ana Carolina Vieira, coordenadora do núcleo de educação digital do Santa Cruz, que incorporou aulas sobre IA ao ensino fundamental II. “A grande mudança será o foco nas soft skills (habilidades comportamentais)”, completa Miguel da Hora, professor do Albert Sabin. “A busca será pelo desenvolvimento de repertório dos alunos. E, para isso, o professor segue insubstituível”, conclui.
Nos bastidores da capa
Um papo com o publicitário paulistano Felipe Pacheco, autor da imagem da edição
A primeira capa da Vejinha feita com a ajuda de uma inteligência artificial é uma obra do paulistano Felipe Pacheco, 32. Morador de Berlim desde 2014, ele viralizou nas últimas semanas após criar uma série de imagens de casas da Barbie “projetadas” por arquitetos famosos. Baseado na capital alemã, passou temporadas em treze cidades — como Roma, Bangcoc e Budapeste — trabalhando de forma remota para clientes na área de marketing digital. Nunca perdeu o amor por São Paulo e o orgulho de ser paulistano.
Como foi criar a capa?
As imagens foram geradas pelo Midjourney. Comecei pedindo à tecnologia uma cena de uma “professora em sala de aula”, mas o resultado parecia muito americano. Acrescentei “brasileira” ao pedido. Repeti essa ordem e ele gerou quarenta opções de cenas. Escolhi algumas e pedi variações — um comando automático que muda detalhes como as roupas ou a posição das crianças. Depois usei outras tecnologias para ajustar a cena escolhida, como Photoshop, Upscayl, Faceapp e MiDas. O robozinho no fundo da sala foi inserido pelo Photoshop, que tem uma ferramenta generativa.
As IAs generativas vão mudar o mundo?
É uma revolução. Bill Gates falou que elas representam o mesmo salto de inovação que o computador e a internet. Muita gente vai perder o emprego. Acho que em alguns anos todo profissional terá uma IA como “copilota”.
Algo o preocupa nesse futuro?
Os deepfakes(vídeos falsos gerados por IAs). Tenho certeza de que as próximas eleições americanas serão muito impactadas por esse problema.
Como foi criar as casas da Barbie?
Pedi ao ChatGPT uma lista de arquitetos com estilos peculiares. Depois, usei os nomes deles para pedir ao Midjourney as imagens. Todo o processo não demorou mais que duas horas. Tive mais de 47 000 curtidas no Instagram e a conta do meu curso ganhou 5 000 seguidores.
Como é ser um paulistano em Berlim?
Amo São Paulo, volto sempre. A cidade me deu muita coisa positiva, como me tornar uma pessoa “do mundo”.
Publicado em VEJA São Paulo de 2 de agosto de 2023, edição nº 2852