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Fábrica da esperança: a vacina contra a Covid muda rotina e o futuro do Butantan

Instituto, agora, também avança na busca de um soro para tratar a doença

Por Pedro Carvalho
Atualizado em 12 mar 2021, 18h10 - Publicado em 12 mar 2021, 01h00

O relógio do computador marcava 15h49 do dia 29 de abril de 2020, uma quarta-feira de sol em São Paulo. De seu apartamento na Vila Sônia, onde trabalhava em home office, Tiago Rocca, gerente de parcerias e novos negócios do Instituto Butantan, disparou um e-mail para a Sinovac Life Science, em Pequim. Era uma mensagem formal e padronizada, quase idêntica a outras que Rocca enviou para cerca de vinte farmacêuticas e desenvolvedoras de vacinas ao longo do ano passado. Dizia que a instituição paulista tinha interesse em se tornar parceira dos chineses na criação de um imunizante para a Covid-19, que estava em fase avançada de pesquisa por lá. “Eu tinha visitado a Sinovac pela última vez em agosto de 2019, pouco antes da pandemia. Mantínhamos uma relação próxima”, ele conta.

Tiago em frente ao seu notebook
CAIXA DE SAÍDA: do computador de Tiago Rocca partiu, no fim de abril, o e-mail que deu início às negociações com a Sinovac. “Passamos a virar madrugadas para fechar o acordo, por causa do fuso chinês”, ele diz (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Dois dias depois, veio a resposta positiva. Ali começava uma corrida que colocaria o Butantan no centro dos holofotes do país de uma maneira inédita desde a fundação do instituto, exatos 120 anos atrás, pelo médico e pesquisador Vital Brazil Mineiro da Campanha. “Eu e minha equipe passamos a virar madrugadas para acertar os detalhes do acordo, por causa do fuso horário com a China”, relembra Rocca. “O inverso também acontecia: se a gente tinha alguma necessidade durante o dia, eles ficavam acordados. Tratamos tudo em inglês, a equipe da Sinovac é jovem”, conta.

A maratona permitiu que o contrato inicial fosse assinado em junho, menos de dois meses depois daquele e-mail. O Butantan se comprometia a realizar os testes de larga escala da CoronaVac, que envolveram aproximadamente 13 000 voluntários no Brasil. Obteve, por outro lado, a garantia de poder comprar a vacina pronta dos chineses, para envasá-la localmente e revender aos sistemas públicos de saúde daqui, como tem feito desde janeiro. Além disso, poderá produzir o imunizante no Brasil — sem pagar royalties — tão logo fique pronta uma fábrica que está prometida para outubro (veja mais adiante).

Fagnar dos Anjos, de máscara e touca, segurando frascos da CoronaVac
OLHO NA SOLUÇÃO: Cada frasco de CoronaVac envasado pelo Butantan (na foto, segurados pela técnica Fagnar dos Anjos) contém dez doses da vacina. Serão pelo menos 100 milhões de doses entregues ao SUS em 2021 (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Seguiu-se, então, o cabo de guerra político que testou a paciência dos brasileiros nos meses seguintes. O governo federal passou a colocar em xeque a credibilidade da China — um fato que não tinha sido previsto pelos diretores do Butantan na escolha do parceiro. “Nenhum governo do mundo investiu contra uma vacina. O nosso tentou até o fim não comprar a CoronaVac. Só comprou no início de 2021. E por falta de opção, uma vez que as outras vacinas, que ele tentava negociar desde o ano passado, não seriam entregues no prazo”, diz Dimas Covas, diretor do Butantan.

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O primeiro anúncio de que o Ministério da Saúde compraria a CoronaVac, feito em outubro, acabou “desmentido” pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no dia seguinte, apenas para ser confirmado em janeiro. O Butantan tem atualmente um contrato para fornecer 100 milhões de doses ao SUS em 2021. Também existe uma solicitação do governo, ainda não convertida em contrato, para o fornecimento de 30 milhões de doses extras. No momento, o instituto envasa entre 700 000 e 900 000 doses por dia, que garantem aproximadamente 80% da campanha inicial no país.

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“Nenhum governo do mundo investiu contra uma vacina. O nosso tentou até o fim não comprar a CoronaVac.”

Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan
Fan Hui Wen segurando uma foto em que ela visitava o Instituto Butantan, com três anos. Na imagem a direita da montagem, ela segura uma dose na CoronaVac
PASSADO E FUTURO: Nascida em taiwan, a médica Fan Hui Wen trabalha há trinta anos no Butantan. Visitou o instituto pela primeira vez aos 3 anos (ela mostra a foto). Na imagem acima, ela segura um frasco do soro para tratar a Covid-19 (Alexandre Battibugli/Veja SP)
Carta escrita a mão por Dimas Covas. No canto inferior esquerdo da imagem, um retrato 3x4 do diretor do Butantan
NOVOS RUMOS: À frente do Butantan desde 2017, Dimas Covas voltou o foco para a produção de vacinas e soros, para transformar o instituto em uma marca global desses produtos. Ao lado, uma carta recente para a equipe (Pedro Carvalho/Veja SP/Divulgação)

Em outubro, deve ser entregue a fábrica para a produção local da CoronaVac. O equipamento terá as liberações para funcionar apenas no primeiro semestre do ano que vem, se tudo correr bem — e poderá ser usado para outras vacinas no futuro. O Brasil deixará, assim, de comprar o imunizante dos chineses. Será a consolidação, acelerada pelo acaso da pandemia, de uma transformação que põe as vacinas no centro das atividades do instituto, uma ideia que ganhou força após a chegada de Dimas à chefia, em 2017.

Em 1997, o Butantan tinha feito uma parceria semelhante à atual com a francesa Sanofi Pasteur para a importação — e posterior transferência de tecnologia — de vacinas para a gripe, como a que combate o H1N1. Hoje, elas são o carro chefe da instituição. Serão 80 milhões de doses fornecidas ao SUS em 2021 (no ano passado, todos os imunizantes produzidos no Butantan somaram 91,4 milhões de doses).

“O Butantan era um agregado de muitas coisas: pesquisa básica, atividades culturais, repositório de animais, produção de soros e vacinas. Priorizamos a fabricação desses insumos de saúde e a internacionalização das vendas”, diz Dimas.

No ano passado, a receita dos contratos com o SUS chegou a 2 bilhões de reais — outros 500 milhões vieram de repasses da Secretaria de Saúde estadual, à qual o Butantan é vinculado. Em 2021, apenas a venda de CoronaVac vai superar 1 bilhão de dólares (ou 5,7 bilhões de reais no câmbio atual). “A fábrica de CoronaVac terá capacidade de produzir mais 100 milhões de doses por ano. Vai representar um salto importante para nos transformar em uma marca global de vacinas”, diz o diretor. (O instituto não tem fins lucrativos e tem uma margem próxima a 5% nessas negociações.)

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Fábrica de CoronaVac, com uma pequena imagem no canto inferior com a parte interna, ainda vazia
INDEPENDÊNCIA: a fábrica de CoronaVac deve ficar pronta em outubro, mas só passará a funcionar no ano que vem. O Brasil deixará de importar CoronaVac da china e passará a produzir 100 milhões de doses por ano (Alexandre Battibugli/Pedro Carvalho/Veja SP)

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Gráfico com a quantidade de cada vacina usada por estado, com a CoronaVac sendo maioria em todos
(Arte: Juliana Bueno/Veja SP)

No momento, o esforço contra a Covid-19 se concentra na área de envase, um prédio onde só se entra com roupas de proteção completas. As equipes cumprem turnos de doze horas de domingo a domingo — a produção nunca para. Ali a vacina chega pronta em contêineres da China, é transferida para outros contêineres (esses “agitáveis”) e depois levada por tubos diretamente para os frascos. As doses seguem por uma esteira que atravessa duas salas brancas de 4 por 5 metros, onde elas recebem os lacres — uma falha em máquina similar às usadas ali provocou o atraso na entrega de vacinas da Fiocruz em março.

Nesses ambientes, os técnicos são obrigados até mesmo a se mover lentamente. Um simples gesto mais rápido do corpo liberaria partículas no ar além dos limites permitidos. Quando se sentam, mantêm as mãos suspensas e espalmadas para cima, para não tocar em nada. Limpam as luvas com álcool isopropílico dezenas de vezes por hora. “Desde janeiro, recebemos 150 novos funcionários para o setor para conseguirmos manter o ritmo”, diz Enio Xavier, gerente de produção do núcleo — ao todo, o instituto tem 2 808 colaboradores.

Funcionários sentados na sala com mãos viradas para cima
Sala onde são colocados os lacres na CoronaVac: mãos para o alto e movimentos lentos (Pedro Carvalho/Veja SP)
Os números do Butantan
Os números do Butantan (Arte/Veja SP)

Não é a única área crítica para o combate ao SarsCoV-2. Em outro prédio do complexo do Butantan — que tem área total de 725 000 metros quadrados, ou metade do Parque do Ibirapuera —, técnicos correm para preparar o que promete ser o próximo Santo Graal da pandemia: o soro para tratamento da Covid-19. A medicação segue a lógica dos soros contra picadas de cobra, um produto que remonta à origem do instituto. Ou seja, usa o plasma de cavalos infectados com o vírus, onde existem anticorpos de combate à doença.

Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, de avental médico, ao ar livre
“Estamos superotimistas com o soro para tratar a Covid. Pela nossa experiência, não tem motivo para não dar certo.” Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, diretora do centro de inovação do Butantan (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Na semana passada, testes em hamsters mostraram uma eficácia promissora. “Tivemos uma redução importante da carga viral, preservação das estruturas pulmonares e uma diminuição muito clara nos processos inflamatórios”, explica Ana Marisa Chudzinski­-Tavassi, diretora do centro de inovação do instituto. Em dezembro, a Argentina começou a usar a técnica de forma pioneira. Dados iniciais mostram que ela ajudou os pacientes. No hospital de campanha do distrito de Corrientes, 45 internados receberam o soro em fevereiro. Destes, 42 tiveram alta em uma semana.

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“Nosso soro deve ser ainda melhor, porque usa o vírus todo, enquanto outros países utilizam uma fração da proteína S presente no Sars­CoV­2”, ela diz. Como existem poucos institutos de grande porte voltados à produção de soros como os antiofídicos, os esforços da pesquisa estão concentrados no Brasil, na Argentina, no México e na Costa Rica. “A equipe está superotimista. Pela nossa experiência, não existem motivos para não dar certo. Todos os testes indicam que o tratamento funciona”, diz Chudzinski-Tavassi. O Butantan enviou um dossiê à Anvisa na semana passada para pedir a autorização de testes em humanos.

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Profissional, inteiramente coberto por equipamentos de proteção branco, carregando uma forma dos ovos para a vacina. À direita, na montagem, um funcionário fazendo o monitoramento de um desses ovos
SALTO HISTÓRICO: reformada em 2017, a fábrica de vacinas da gripe vai fornecer 80 milhões de doses ao SUS em 2021. a planta, onde chegam mais de 500 000 ovos por dia (à esquerda), usados para a produção de vírus que serão depois inativados, fez do imunizante o carro-chefe do instituto (Alexandre Battibugli/Veja SP)

A pandemia também promete transformar a cultura corporativa do Butantan, como já notam funcionários que trabalham há décadas na instituição. “Criou-se um espírito coletivo muito forte. Pela primeira vez, todas as áreas passaram a trabalhar juntas em um mesmo propósito. Isso deixará um legado nos nossos processos internos”, diz Fan Hui Wen, funcionária desde 1992 e à frente da área de soros.

“O Butantan nasceu por causa de uma pandemia: a de peste bubônica, em 1901”, completa Giuseppe Puorto, há cinquenta anos no instituto. “Agora, temos um desafio monstruoso. Isso nos une, como em uma guerra”, ele diz. “A Covid-19 vai marcar nossa trajetória de forma positiva, independentemente de qualquer questão política. O povo verá que o Butantan fez sua parte em um momento crucial da história.”

Puorto segurando uma cobra com um equipamento especial
Puorto coleta uma cobra para o instituto, em 1976 (Arquivo pessoal/Divulgação)

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CINCO DÉCADAS DE SERPENTES

Nascido na Itália, Giuseppe Puorto tinha 17 anos, usava costeletas e cabelos compridos e gostava de ler a revista Ciência Ilustrada quando começou a trabalhar como estagiário no Butantan, em 1971. A vaga era para o laboratório de produção de veneno de cobras — e, nas cinco décadas seguintes, ele jamais se afastaria da espécie. “Eu morria de medo. De cara, fui alocado em galpões que tinham 2 000 serpentes”, ele recorda, agora aos 67 anos e diretor do Museu Biológico local.

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Ao longo da carreira, Giuseppe fez mais de 150 viagens à Amazônia para coletar animais e dar cursos. Também ajudou na parte ambiental da criação de 28 hidrelétricas brasileiras. Organizou a chegada de mais de 15 000 animais à coleção do Butantan. Chegou a ser mordido por uma jararaca pintada, em 1977. “Quase empacotei”, lembra. “Mas passei a ver os bichos de outra forma, entendi que agem por instinto. Nunca tive outro acidente.”

Em 2010, ele testemunhou um momento triste, quando um incêndio provocado por um curto-­circuito destruiu 60% da coleção de animais. “Tínhamos 80 000 serpentes, anfíbios e lagartos. Agora são 30 000. Algumas coisas são irrecuperáveis”, diz.

O Museu que ele cuida tem 100 espécimes em exposição e atrai por volta de 300 000 visitantes ao ano — está fechado desde março de 2020 por causa da pandemia.

Foto do Museu Biológico, com Puorto na janela
Puorto: no Museu Biológico (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Vista geral do Butantan: do museu à Covid-19

Visão área do Instituto Butantan
Vista geral: do museu à Covid-19 (Divulgação/Divulgação)

1. VACINA DE GRIPE: A fábrica, reformada em 2017, é a maior do tipo no Hemisfério Sul

2. FUTURA FÁBRICA: Em outubro, deve ficar pronta uma planta que produzirá a CoronaVac

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3. ÁREA DE ENVASE: É onde a CoronaVac passa de contêineres para os frascos

4. LABORATÓRIOS: O Butantan tem 150 pesquisadores em atividade no local

5. MUSEU BIOLÓGICO: Tem 100 animais em exposição e atrai 300 000 pessoas por ano

6. A FLORESTA: O Butantan tem metade da área do Ibirapuera. Boa parte é mata nativa

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Publicado em VEJA São Paulo de 17 de março de 2021, edição nº 2729

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