Mulher que abandonou recém-nascida ganha o direito de rever a filha
Justiça dá guarda estendida de bebê deixado em calçada de Higienópolis aos tios maternos, a pedido da mãe, que não tem condições financeiras de cuidar da criança
O drama da empregada doméstica Sandra Maria Santos Queiroz, de 37 anos, ficou bem conhecido na cidade. Ela abandonou a filha recém-nascida em frente a uma árvore na Rua Piauí, em Higienópolis, dentro de uma sacola, na noite de 4 de outubro de 2015. O local fica a poucas quadras do apartamento de 260 metros quadrados onde ela trabalha e reside há cinco anos, em uma suíte de 40 metros quadrados. Sandra relata que havia conseguido esconder a gravidez da patroa com o uso de roupas largas. Fez isso por medo de ser demitida e ir para a rua com a outra filha, de 4 anos, que também vive ali.
“Dei uma bronca nela e disse para nunca mais esconder nada”, afirma a empregadora, a fisioterapeuta Sônia Soares, 65. Foi com a ajuda dela que Sandra recuperou, há dois meses, o direito de acesso à bebê. A criança vai morar na casa da tia, Thais Queiroz, 24, que trabalha como feirante em Vitória da Conquista, na Bahia, e poderá receber a visita da mãe a qualquer momento, no regime chamado de guarda estendida.
Desde que a garotinha foi encontrada, naquele domingo, pelo zelador Francisco de Assis, que chamou a polícia, ela estava em um abrigo da Zona Leste. Frederico Mariano Soares, do escritório VM&L, filho de Sônia, atuou na defesa. “Provamos com imagens da polícia que Sandra teve cuidado, esperou que ela fosse resgatada por alguém”, argumenta. “Era um ato de desespero, e a Justiça considerou seu arrependimento.”
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Se o inquérito policial virar uma ação penal, Sandra responderá por abandono de incapaz. A pena, em caso de condenação, pode ser convertida em prestação de serviços à comunidade (conta a seu favor o fato de a criança não ter sofrido maustratos). No depoimento a seguir, a mãe narra o parto, a decisão de abandonar Marina Beatriz (batizada pela juíza do caso) e o sonho de, um dia, ter a guarda definitiva da criança.
“É difícil esquecer tudo o que aconteceu. Na madrugada de sábado para domingo comecei a passar mal. Estava de nove meses. Fui ao banheiro e não aguentava de dor. Vi que nasceria naquele dia. Não demorou para acontecer. Fiquei em pé me apoiando na pia. Parecia que todos os meus ossos estavam quebrando. Quase desmaiei. Na hora em que ela saiu, quase caiu no chão. Enrolei na toalha e me sentei na privada. A dor passou e coloquei a bebê no meu braço. Fiquei segurando para o restante da placenta sair. Cortei o cordão com uma tesoura de unhas, dei banho e passei álcool no umbiguinho.
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Fiquei o domingo no quarto. No fim da tarde, resolvi sair de lá. Ajeitei uma sacola dentro da outra e fui para a rua. Não gosto nem de lembrar. Passava tanta coisa na cabeça, deu vontade de desistir. ‘Volto para o apartamento e amanhã vejo melhor o que fazer’, pensei. Veio à minha cabeça ainda pegar um táxi e levar a criança até um abrigo, mas não sabia onde haveria um. Deixei então numa árvore. Achava que uma pessoa boa ia passar e ajudar. Saí andando e, quando cheguei à esquina, quase acabei voltando, por arrependimento. Mas resolvi ficar escondida, vendo tudo.
Estava escuro e não saí de lá até que o zelador do prédio encontrou a sacola. Assim que vi as luzes de uma viatura chegando, fui embora. Depois disso, quis me entregar, mas não poderia fazer isso por causa da minha filha de 4 anos. Ela mora comigo, ia ficar sem mãe. Não demorou muitos dias para a polícia me encontrar no bairro. Fui levada para a delegacia. Não escondi nada no depoimento.
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Vi minha caçula pela primeira vez perto do Natal de 2015, quando a Justiça me autorizou a encontrar a bebê num abrigo. Entrei com o coração acelerado, nem acreditei, fiquei louca. Coloquei a menina entre os meus braços, perto do nariz. Bem cheirosinha e limpinha, unha cortadinha, aroma bom de bebê limpo. Ficamos juntas por duas horas até vir uma funcionária retirar de mim… É difícil falar. Deus, que arrependimento! Depois do que fiz, cheguei a ficar um mês sem sair de casa. Fui à igreja aqui do pedaço conversar com o padre e pedi perdão a Deus. Me desculpei com a patroa, que não me julgou e pediu que eu nunca mais escondesse nada dela.
Vim para São Paulo em 2008 em busca de uma vida melhor. Sou de uma família de seis irmãos, e os meus pais são feirantes, moram em um sítio em Vitória da Conquista, na Bahia. Lá tive meu filho mais velho, de 17 anos. Nos últimos meses, tomava injeção anticoncepcional, mas meu corpo inchou e eu parei. Eu me relacionava havia três anos com um gesseiro que conheci num forró em um aniversário. Acabei em desespero quando a menstruação atrasou.
Na primeira vez em que contei da gravidez, ele não queria aceitar. Isso me deixou aflita demais. Fiquei com medo dos meus patrões. Se eles soubessem do bebê, achei que seria mandada embora e não teria mais para onde ir, então o desespero me levou àquela atitude.
Depois de tudo o que houve, o pai da criança diz que decidiu assumir a filha, mas ainda não fez isso. Agora, com a decisão da Justiça, me sinto feliz. Minha irmã Thais, que junto com o marido será a responsável pela guarda estendida, veio para a casa de um parente em Guarulhos e passamos 22 dias aqui, com a Marina. Dei banho, cuidei, levei ao shopping. O dia em que a turma embarcou para voltar à Bahia, teve um chororô.
Espero que no futuro possamos ficar juntas. Quando eu tiver condições, vou pedir a guarda definitiva. Hoje não dá. Mas falo com a tia dela todos os dias, vejo fotos da menina por celular. Às vezes, fico imaginando: ‘O que ela vai pensar de mim no futuro quando souber de tudo? O que fiz foi vergonhoso. Será que ela vai me perdoar?’.”