Ainda tenho amigos!
"Estamos emocionados, assustados, meio sem saber o que fazer, e, ainda assim, oferecemos nosso melhor às pessoas ao redor", escreve Nathália Roberto
Existe uma cidade no interior de São Paulo chamada São luiz do Paraitinga. Esse lugar sofreu uma enchente em 2010, uma grande tragédia que deixou tudo debaixo d’água. Milagrosamente, ninguém morreu. Um grupo de cinquenta profissionais do rafting, com quinze botes e um imenso sentimento de solidariedade, conseguiu salvar mais de 800 pessoas. em novembro do ano passado, conheci Alice, dona de um dos melhores restaurantes da cidade, que me contou uma história muito bonita. Ela perdeu tudo nessa enchente e, quando teve de alugar uma casa, o proprietário lhe perguntou:
— Mas, Alice, você não perdeu tudo?
— Sim, tudo!
— Então como vai pagar o aluguel?
— Perdi meu restaurante e minha casa, mas ainda tenho amigos!
Em sua casa nova, Alice começou a fazer marmitas para vender e, aos poucos, com paciência, viu a vida se organizar novamente. estamos vivendo uma situação extremamente difícil no Brasil e no mundo: uma pandemia causada pelo novo coronavírus, decretada pela OMS na quarta-feira 11 de março, que nos impactou por aqui. De lá para cá, a situação mudou a uma velocidade absurda: amigos já perderam o emprego, mortes foram confirmadas, restaurantes, lojas e shoppings fecharam as portas… Estamos com medo! Não tenho o que falar para minimizar a dor que sentimos agora. Poderia dizer que vai passar, e vai. Mas neste momento está doído demais olhar para a incerteza de um amanhã pós-Covid-19.
Junto com essa enxurrada de más notícias, algo tem chamado nossa atenção: a bondade. Estamos isolados, mas infinitamente mais próximos. Não demoramos muito a entender que só há uma forma de atravessar essa pandemia: juntos. Assim como fizeram Alice e seus amigos!
Estamos emocionados, assustados, meio sem saber o que fazer, e, ainda assim, oferecemos nosso melhor às pessoas ao redor. Não há um dia em que não chegue ao nosso celular um: “E aí, como você está hoje?”. São familiares, amigos íntimos e distantes, ex-namorados, colegas de trabalho, conhecidos da internet que nunca vimos pessoalmente e muitos desconhecidos que agora se tornam próximos…
Ontem o telefone tocou na casa de meus pais. Era Cássio, filho de uma paciente do meu pai, que estava preocupado se os remédios da mãe iriam acabar em meio a essa confusão. Expliquei que ele está em uma outra casa, mais isolada, para tentar se proteger do vírus. Então começamos a conversar. Ele me perguntou se eu também estava confinada, disse que sentia tristeza, ansiedade e que não era bom ficar sozinho em casa. Conversamos durante uns dez minutos. Falamos sobre trabalho, filhos, São Paulo, notícias… E ao nos despedirmos ele pediu: “Nathália, posso te ligar de vez em quando durante a quarentena para conversar?”.
Ao mesmo tempo que esse vírus ganha escala na nossa individualidade, ele corta o autocentramento como uma faca afiada. Como ficar presos em nossos problemas cotidianos, em “resolver” a própria vida, quando deparamos com tamanha solidão de um desconhecido? Com os amigos que perderam o emprego, os profissionais de saúde que atendem em condições precárias, as pessoas que não podem parar de trabalhar e estão totalmente expostas, as diaristas com medo de passar fome, os presidiários completamente vulneráveis, as crianças que perderam a merenda na escola e, o pior cenário, aqueles que estão morrendo e seus entes queridos.
Suportar esse isolamento e a incerteza de uma vida que ainda não conhecemos pode ser muito assustador. O coração se escancara com tanta tristeza, e, incrivelmente, isso desperta o melhor de nós: a conexão incomensurável com todos os seres. Em um encontro virtual, Tim Olmsted, grande praticante de meditação, disse algo assim: “Quanto mais nos familiarizarmos com o que acontece conosco, maior será nossa habilidade de lidar com a dor do outro”. Esse outro, agora, precisa de nós. E urgentemente.
No momento em que reconhecermos nosso medo, não negligenciaremos a ansiedade de ninguém. Parece que o mundo deu uma bela parada agora, e, em diferentes níveis, isso afeta a todos nós. Podemos nos desesperar (e acho isso bastante aceitável no atual momento), mas também tentar arrancar algum recurso interno. Com que mente vamos atender à chamada de um amigo ou desconhecido? Vou contar três instruções que ouvi recentemente de alguns professores:
1. Elizabeth Mattis Namgyel disse: “Certifique-se de que está respirando”. Algumas vezes, ao longo do dia, durante poucos minutos, podemos prestar atenção em nossa respiração. Isso pode ajudar a nos acalmar antes de passar uma informação adiante, por exemplo (digo isso a mim mesma, porque andei causando ansiedade em algumas pessoas).
2. Jetsunma Tenzin Palmo enviou um e-mail lindo e, no fim, escreveu: “Neste momento de pandemia, é importante manter o senso de perspectiva e agir de forma sensata. Em particular, assegure-se de estocar mercadorias essenciais: equanimidade, empatia e senso de humor”. Oferecer humor a quem está muito abalado pode ajudar, ao menos durante alguns momentos, a mudar a paisagem mental.
3. Esta dica é de Tim Olmsted: “Lembre-se de que todo mundo, assim como você, está tentando ser feliz”. A ideia de que estamos no mesmo barco nunca ficou tão clara. Não somos separados daquela pessoa que não tem dinheiro para pagar o aluguel no próximo mês. Daqueles que estão morrendo por causa da Covid-19. Do dono do café perto de casa que fechou as portas. Dos profissionais da área da saúde. Não somos separados da Alice, do Cássio, da Ana, do João, da Olívia, da Bianca, da Marcela, do Luís, do Otávio, da Laura, da Márcia, da Luana, do Pedro, da Taís…
Este deveria ser um texto sobre felicidade, e é. Em tempos de coronavírus, e na vida “normal”, amar o outro (desejar que ele seja feliz) talvez seja uma das maiores fontes de bem-estar. Como disse a médica Ana Claudia Quintana Arantes: “Não dá pra ser feliz se o outro não é”.
“Embora pareçam bastante diferentes, tristeza e abertura estão intimamente relacionadas. A tristeza profunda que nos domina quando entendemos a natureza impermanente de todos os fenômenos nos torna receptivos ao mundo à nossa volta. Abrimos o coração e começamos a perceber todos os seres, nossos semelhantes. Vemos como todos nós temos de enfrentar as dificuldades da vida; compreendemos a natureza efêmera da nossa alegria; e percebemos quanta preocupação, dor e sofrimento experimentamos durante a vida. Desse modo, entendemos que compartilhamos experiências dolorosas parecidas. Sabendo o que os outros sentem e têm de passar, não podemos deixar de nos solidarizar com eles, e o desejo de ajudar e proteger nossos semelhantes brota naturalmente dentro de nós. Esse desejo de ajudar e proteger se origina do amor. Quanto mais abrimos nossos olhos para os sofrimentos e as delusões dos outros, mais forte nosso amor se torna.” Chokyi Nyima
Desejo, de coração, que não nos sintamos sozinhos neste confinamento. Que nossas redes de apoio possam se expandir de forma exponencial. Que olhemos menos para nós e mais para os outros. Que a gente se toque de que esse sistema do capitalismo está, no mínimo, muito desequilibrado. Que a preciosidade de cada vida humana nunca deixe de ser prioridade. Que não nos esqueçamos: na hora da morte, nossas relações valerão bem mais que o dinheiro que tentamos ganhar, as viagens que fizemos, a empresa que construímos… E, especialmente, quando tudo passar, desejo que possamos lembrar que um dia aconteceu! Quem sabe assim nossa vida nunca mais voltará ao “normal”.
Nathália Roberto é sócia da Kind e certificada pelo programa Cultivating Emotional Balance. Ao lado de Isabella Ianelli, conduz O Curso das Emoções (@ocursodasemocoes) e também O Podcast das Emoções. Está no episódio “SOS para situações extremas”, do podcast Jornada da Calma.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 1º de abril de 2020, edição nº 2680.
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