Vida de cobaia
Quem são os paulistanos que se oferecem para testar desde cosméticos até tratamentos médicos
A cada treino de natação, a ortopedista Kelly Stefani, de 40 anos, entra na piscina com um equipamento diferente. Óculos, touca, maiô, prancha e uma infinidade de apetrechos que ainda nem chegaram ao mercado são avaliados por ela a cada braçada. Já o empresário Dante Caddeo, de 57 anos, comemora estar curado da hepatite C, doença que o assombrou durante doze anos e o fez passar por uma série de tratamentos sem sucesso. A boa notícia só veio depois de sua participação numa experiência do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, na qual tomou uma droga recém-inventada por especialistas na área. A aposentada Maria Angélica Cecílio, de 56 anos, perdeu a conta dos itens de higiene pessoal e de cosméticos que examinou. Creme para reduzir olheiras, xampus e até injeções contra dores lombares integram seu portfólio. O que há de comum entre essas pessoas é o fato de fazerem parte de grupos encarregados de experimentar o que é novo. São voluntários não remunerados que aceitam participar de estudos de diversos tipos, das pesquisas médicas aos testes de tecidos tecnológicos.
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O principal reduto das cobaias da cidade são as universidades e instituições públicas de saúde. A Unifesp, por exemplo, está recrutando gente para treze projetos simultâneos sobre temas que vão de transtorno de déficit de atenção a aftas. Outra grande iniciativa nessa área, aos cuidados do Hospital Universitário da USP, tem como objetivo desenvolver uma pílula para o tratamento de problemas cardiovasculares com a ajuda de 400 participantes. No Instituto de Infectologia Emílio Ribas, portadores do vírus HIV vêm sendo chamados para experimentar uma alternativa aos tradicionais coquetéis antiaids, inovação que no futuro pode salvar a vida de milhões de pessoas.
O professor Breno Espósito, de 40 anos, do Instituto de Química da USP, entrou para esse universo ao ser atraído por cartazes espalhados pelo câmpus da universidade que convidavam interessados a ingressar num programa para desenvolver uma droga capaz de reduzir os riscos de infarto e de acidente vascular cerebral (AVC). “Tirando a taxa de colesterol, um pouco alta, estava bem de saúde. Mesmo assim, pensei: por que não?”, conta ele, que entrou no programa em setembro. Sua colega de teste, a aposentada Suely Schraner, de 61 anos, comemora os resultados obtidos. “Deixei a população de pacientes de alto risco para fazer parte do grupo de médio risco”, conta. Ela coleciona participações em vários outros programas. Em um deles, submeteu-se a sessões de massagem para combater a insônia que a atormenta desde a adolescência. A terapia integra um projeto da Escola Paulista de Medicina da Unifesp com 55 mulheres na menopausa que sofrem do distúrbio, problema bastante comum entre a população feminina nessa fase da vida. A turma foi dividida em quatro e cada parte se submeteu a uma atividade diferente, entre massoterapia, ioga, fisioterapia e meditação. “Foi uma delícia”, lembra Suely.
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Por lei, as pessoas que participam desses programas não podem ser remuneradas. A indústria também faz largo uso de voluntários. Para atrair interessados, o chamariz é oferecer a eles a chance de usar de graça e antes de todo mundo itens ainda em desenvolvimento. Algumas companhias montam seus próprios grupos de candidatos, caso da Speedo, que oferece equipamentos a nadadores de três centros de treinamento da cidade, os clubes Pinheiros e Paulistano e a academia Sumaré Sports. “Gosto de experimentar para saber se vou querer comprar a peça no futuro”, afirma a ortopedista Kelly Stefani, uma das integrantes dessa equipe. A tecelagem Santaconstancia, na Zona Norte, recruta gente para aperfeiçoar o conforto de tops e bermudas de compressão.
Outras marcas, como Unilever, Natura, Revlon, Anna Pegova e Rhodia, recorrem a laboratórios especializados para medir a eficácia de seus produtos. São centros com salas especiais que adotam normas internacionais e resoluções do Ministério da Saúde para realizar baterias de provas. “Os candidatos vêm em busca de melhorias para algo que os incomoda ou simplesmente por adorar novidades”, afirma Adriano Pinheiro, do Kosmoscience, na cidade de Valinhos, no interior do estado. Há ao menos outros quatro grandes centros especializados nesse trabalho em municípios próximos a São Paulo. Somados, contam com um banco de dados de pelo menos 10.000 nomes, convocados de acordo com suas características físicas (cada produto requer um perfil diferente). “Chamamos por telefone e fazemos uma entrevista para ver se a pessoa atende aos requisitos”, diz Odimila Kawahata, do Cepad, centro examinador de itens de higiene, perfumaria e cosméticos em Santo André.
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O valor desembolsado pelas empresas para obter esses estudos depende de sua complexidade e costuma variar entre 10.000 e 100.000 reais. Eles podem ocorrer em uma tarde ou levar até seis meses. Há casos em que é preciso recorrer a equipamentos específicos, como no teste de filtros solares, em que o voluntário fica exposto a uma máquina que reproduz raios ultravioleta. Banheiras de hidromassagem são utilizadas em provas de cremes resistentes à água. Avaliações de hidratantes demandam paciência das cobaias, confinadas em uma sala de temperatura controlada para verificar a absorção e a maciez da pele após determinado período de uso.
Existem situações ainda mais inusitadas. Um dos últimos testes de que o voluntário Carlos Roberto Gomes, 46 anos, participou consistia em ficar dentro de uma sauna com um absorvente debaixo do braço para verificar a eficácia de um antitranspirante. “Sou abelhudo, adoro essas coisas”, diz ele. “É a chance de provar itens ótimos que normalmente eu não compraria.” Por mais que a cobaia goste do produto, ela nunca fica sabendo a marca ou o nome do que usou, devido a um contrato de confidencialidade firmado entre laboratórios e empresas. Gomes conta ter finalmente resolvido seu problema de caspa, após anos buscando solução, quando aceitou avaliar um xampu em um teste de laboratório. Encerrada a experiência, porém, não pôde mais usá-lo, pois nunca veio a saber o nome do produto. “Foi bom enquanto durou”, afirma, resignado.
Os programas do tipo se multiplicaram por aqui depois dos anos 90, graças aos novos investimentos das multinacionais e ao crescimento do país. “O consumidor foi se tornando mais exigente”, afirma Idalina Salgado Santos, do laboratório Evic, que opera no Brasil, na França, Itália, Espanha, Romênia e China testando produtos farmacêuticos, dermatológicos e cosméticos. “As companhias vindas de fora também precisaram se esforçar para entender melhor as necessidades dos brasileiros e criar produtos sob medida para o consumo interno”, diz.
Se a indústria fisga os mais curiosos, as universidades esticam os olhos para quem já tentou de tudo e ainda não conseguiu vencer uma doença grave, uma dor crônica ou um incômodo persistente. Na maioria das vezes, os participantes são angariados por pesquisadores que dependem da cooperação de interessados para comprovar teses de mestrado ou doutorado. Entre os adeptos, existem desde pessoas pobres que enxergam nos trabalhos uma chance de driblar as longas filas do SUS até integrantes das classes A e B desiludidos com dezenas de tratamentos frustrados. “Temos de analfabetos a pós-doutores”, afirma Nágila Damasceno, coordenadora de estudos com voluntários e diretora do serviço de Nutrição do Hospital Universitário da USP.
Há quem enxergue nesses projetos a oportunidade de se salvar de problemas mais graves. O empresário Dante Caddeo conseguiu no ano passado dar fim a um tormento que o acompanhava desde 1998: o diagnóstico de hepatite C. A doença é causada por um vírus que ataca o fígado e pode evoluir para cirrose hepática ou câncer. Caddeo começou a se tratar no Instituto de Infectologia Emílio Ribas tomando uma medicação subcutânea três vezes por semana. “Os efeitos colaterais foram terríveis, caí em depressão”, diz ele, que, por causa de seu quadro clínico, não podia tomar antidepressivos. Para seu desespero, seis meses após uma breve melhora a hepatite voltou a se manifestar. Caddeo recorreu então a outro tratamento, usando semanalmente ampolas que custavam 1.200 reais cada uma. A moléstia, porém, não deu trégua.
No ano passado, o empresário soube que o Emílio Ribas estava recrutando pacientes de hepatite C para testar um novo tratamento. “Podia não dar certo, mas eu não tinha nada a perder”, conta. Candidatou-se ao programa e, concluído o teste, só recebeu diagnósticos negativos. “Eu me sinto curado”, comemora. Outra pesquisa do hospital, ainda em fase de seleção de participantes, vem enchendo os portadores de HIV de esperança. J.O., de 42 anos, que convive com o vírus há mais de duas décadas, espera ansioso para saber se tem o perfil compatível para se tornar cobaia no desenvolvimento de um novo coquetel de remédios. “Meu organismo sempre reagiu mal às drogas, mas agora há uma luz no fim do túnel”, afirma, esperançoso.
ENDEREÇOS DE LABORATÓRIOS
Alergisawww.allergisa.com.br
Tel.: (19) 3789-8610
Avenida Dr. Romeu Tortima, 452 – Campinas
Cepadwww.cepadpesquisa.com.brTel.: 4436-0811 / 4994-6469 / 4994-3202
Rua das Laranjeiras, 527 – Santo André
Evicwww.evicbrasil.netTel.: 4522-6213
Rua Dr. Leonardo Cavalcanti, 314 – Jundiaí
IFF Essências e Fragrânciaswww.iff.comTel.: 4622-6000
Avenida Honório Alvares Penteado, 604 – Tamboré
Kosmosciencewww.kosmoscience.comTel.: (19) 3829 3482
Rua Doze de Outubro, 688 – Valinhos