Vejam só. Em plena era dos e-books e dos tablets, ando com saudade de uns livros que tive. Multiplicam-se os volumes virtuais e eu aqui, à cata de emoções encadernadas. Onde estão? — me pergunto. Foram ficando pelo caminho, em casas onde morei, em empréstimos que não retornaram, em cabeceiras de camas que não eram minhas, em furtos, viagens, esquecimentos…
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O mais antigo desses desaparecidos, um livro de escola, trazia meu maior herói, Pascoalzinho, e nem sei mais o título dele. O herói é acusado injustamente de uma falta grave que não cometeu, aguenta calado, e no dia da festa de encerramento tudo se esclarece e ele pode desfraldar a bandeira no alto da pirâmide humana. Até hoje acho que sou um bom sujeito por causa de Pascoalzinho. Em que estante ficou o herói?
O sumiço deste outro me dá vontade de botar um anúncio assim: “Quem viu por aí um livro volumoso de capa de fino couro marrom, intitulado Obra Completa Federico García Lorca, em letras douradas, com assinatura do autor em baixo-relevo gravada no couro da capa, por favor, dê notícia. Tem marcas inconfundíveis, como bolinhas feitas a lápis à esquerda do índice dos poemas, indicando leitura prazerosa, e estrelinhas indicando encantamento. O que dá para identificar sem discussão esse livro é que o canto inferior direito da capa e algumas das primeiras folhas foram roídas por um cachorro jovem, atraído certamente pelo cheiro do couro. Sei porque fui eu mesmo quem salvou o livro. Não pode haver dois iguais. Por favor, dê notícia”.
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Loucos Poetas Amantes era um romance de que se gostava, do paulista Geraldo Santos. Eu o colocava ao lado de “O Encontro Marcado”, do mineiro Fernando Sabino; o sobrenome dos dois começa com “Sa” e seus romances são de 1956. Tratam de gerações procurando rumo, em Belo Horizonte e em São Paulo. Pois é, sumiram juntos, inexplicavelmente. Quem os levou teria uma tese?
Um sumiu duas vezes. Era uma antologia de 100 poemas modernos, em inglês, preciosa pelos poemas reunidos, um pocket book impossível de encontrar no Brasil. Em 1969 já tinha sumido, sei porque eu estava em São Francisco, na Califórnia, nesse ano e procurei adquirir outro. Estava esgotado lá também. Sem muita esperança entrei na famosa livraria City Lights, do poeta beatnik Lawrence Ferlinghetti, no bairro e no auge do movimento hippie. Quem me atendeu sabia exatamente onde estava o que eu queria, naquele labirinto de estantes até o teto. Trouxe o volumezinho, único, “One Hundred Modern Poems”, de Selden Rodman. Curioso, perguntou de onde eu vinha, o que fazia, e não quis cobrar nada pela raridade: “Incrível, o cara vem do Brasil, São Paulo, entra na minha livraria e procura um livro de poesia, logo esse! Leva! É um presente”. Pois é, não sei como, está sumido também.
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Com dedicatória, sumiram “Laços de Família”, de Clarice Lispector (não me perdoo, era uma dedicatória bem boa para o ego), “Corpo de Baile”, na letrinha caprichada de Guimarães Rosa, e “O Braço Direito”, do perfeccionista Otto Lara Resende. Como é que fui descuidar de autógrafos como esses, se é que foi descuido? Procuro e não acho tantos outros, meu “Poeira”, romance da inglesa Rosamond Lehman, maneirista que me ajudou a olhar de um ângulo feminino, quando necessário; meu Kafka, que traz todos os continhos curtos dele, que traduzi, publiquei e anotei, quando ainda era um estouvado mineirinho de letras; meu “Quarteto de Alexandria”, meus García Márquez, Saroyan, Faulkner, Gide, Camus, Sartre, Dostoievski, um livrão de viagens na Itália, Stendhal, Manuel Antônio de Almeida, Graciliano, João Antônio, vou lembrando, Arsène Lupin, mosqueteiros, Sherlock, vou lembrando e já são centenas, à deriva.
Poderia comprar novos, às vezes faço isso, mas não é a mesma coisa. Faltam as marcas da minha passagem. São como namoradas: as perdemos ao longo da vida, mas de vez em quando dá saudade daquele abraço. Abraço que um tablet não dá.