Os vivos chegam de fisionomia grave, cumprimentam de passagem os amigos, procuram a família, murmuram pesares com mãos entre mãos, vão até o caixão, contemplam o morto longamente em mudo preito, afastam-se pesados como se o carregassem já e buscam alívio na fraternidade dos amigos comuns. Daí a pouco, um lembra uma história do morto, outro conta outra, e mais uma, e assim vão trazendo o morto para perto deles, para a roda, e já riem com ele, corporificado em seus feitos, malfeitos e benfeitos, de novo irmanados.
Por que nos velórios se contam anedotas sobre o morto? O grandíssimo poeta João Cabral de Melo Neto escreve em “A Morte dos Outros”: “A morte alheia tem anedota / que prende o morto ao dia a dia, / que ainda o obriga a estar conosco”. Acredito, com ele, que contar os casos do morto é uma forma de convocar o falecido a nos fazer companhia naquela hora difícil.
É o momento em que queremos o amigo mais desprendidamente, sem esperar nada em troca, sem exclusividade, porque, ali exposto, ele é de todos. E entre amigos partilhamos aquela maneira de tornar presente o ausente.
Um o traz de volta bebendo café preto de canudinho para evitar que os dentes ficassem escuros; outro lembra que ele tomou um porre de caipirinha na praia de Santos, dormiu de lado na areia enquanto os amigos bebiam à fresca refugiados na barraca, e mais tarde ele veio de lá bicolor, vermelhão de um lado só, brigando com todos eles; outro lembra aquela vez, ainda no governo militar, que ele teve medo de viajar no avião (“Lembra? Lembra dessa?” — cutucam-se), já estava lá dentro e saiu correndo, desceu a escada, correu para o aeroporto e lá o derrubaram e prenderam, tomando-o por terrorista… Vão lembrando e trazendo o morto cada vez mais para perto do seu afeto.
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Vão lá para encontrar os amigos e, sem pudor, fazer a conta dos que sobraram — sobramos. Sabem que na sua hora eles virão convocá-lo para mais uma rodinha de casos. Vão para consolar a viúva, os filhos, os parentes, e também para consolar-se trocando lembranças — a herança que lhes cabe.
No velório dos muito jovens não, não há anedotas, só lágrimas, pois a morte do jovem é corte abrupto na lógica da vida, que é feita de tempo para viver amizades, formatura, casamento, filhos, carreira, conquistas, tropeços, gravar casos na memória de amigos. Aquele corte os impediu de chegar aonde poderiam, de fazer o percurso em que teriam acumulado histórias, na garupa das esperanças. Não estava na hora de transporem aquela porta que só se abre pelo lado de fora, para onde caminham os que levam casos para seus velórios.
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A literatura está cheia desses momentos, assim como as canções e o folclore. É o caso de “A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua”, de Jorge Amado; da canção folclórica irlandesa “Finnegans Wake”, que inspirou o cerebral romance de James Joyce; dos casos de “enterro do compadre” da literatura de cordel nordestina; de algumas das histórias leves e divertidas que o jornalista Mário Marinho reuniu em “Velórios Inusitados”.
Conheço um excelente contador de histórias, um que se lembra até do que não acontece, principalmente em Minas, e costuma amenizar o peso dos velórios reanimando o falecido em histórias que ele tem o dom de tornar curtas e exatas. Ouviu que um ex-colega enaltecia essas suas qualidades e mandou-lhe recado: “Pode contar comigo”.
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