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Rebequinhas: Jovens ginastas precisam superar distrações das redes sociais, falta de patrocínio e o ano perdido da pandemia

Sucesso de Rebeca Andrade na Olimpíada aumenta procura por centros de formação; técnicas falam de desafios e colocam em dúvida o futuro da modalidade

Por Pedro Carvalho e Tatiane de Assis
13 ago 2021, 06h00

Moradora de Itaquera, na Zona Leste, Christal Bezerra, de 16 anos, faz parte do time de ginastas brasileiras que começa agora o chamado “ciclo” das Olimpíadas de Paris, em 2024. Desde os 4 anos, ela treina no Centro Olímpico, colado ao Parque das Bicicletas, na Avenida Ibirapuera. As atividades esportivas normalmente vão das 8 às 17 horas, de segunda a sábado. Passa mais três a quatro horas diárias no metrô. Não tem patrocinadores: sua renda total é de cerca de 2 000 reais, pagos pela seleção brasileira, sediada no Rio — o complexo paulistano, que custa 285 000 reais por mês à prefeitura, dá apenas lanche, transporte e estrutura de treino para os cerca de 1 000 atletas residentes.

Após voltar para casa, Christal ainda se dedica aos estudos do 2º ano do ensino médio. A rotina termina às 22 horas e deixa pouco espaço para diversões comuns à idade dela. “É duro entrar nas redes sociais e ver minhas amigas passeando ou brincando. Fico magoada, queria estar com elas. Mas preciso treinar”, diz.

A imagem mostra Christal em cima de uma trave, equipamento da ginástica. Ela está sentada, virando a cabeça para trás e sorrindo.
Christal Bezerra: “magoada por não poder sair com as amigas”; ao lado, o torneio estadual do dia 7 (Leo Martins/Veja SP)

Suportar tanta privação na adolescência é um dos principais obstáculos à frente das garotinhas que passaram a lotar as academias especializadas desde que Rebeca Andrade ganhou duas medalhas inéditas para o Brasil em Tóquio. “Nosso telefone não parou mais de tocar”, diz Mônica dos Anjos, 49, técnica que descobriu a ginasta aos 5 anos de idade em um teste no Ginásio Bonifácio Cardoso, em Guarulhos, onde ainda atua como treinadora. “De cada dez ou vinte que ingressarem, talvez uma não abandone a carreira antes das competições adultas”, ela acredita. A própria trajetória de Christal serve de prova a essa equação. “Comecei em uma turma de trinta meninas. Nenhuma pratica mais a modalidade”, diz.

A ginástica, pela altíssima sofisticação de seus movimentos, é um esporte de exigências quase desumanas. “Para estar na equipe principal de handebol do Pinheiros, você treina três vezes por semana, duas horas por dia. Na ginástica, são seis dias por semana e até oito horas por treino”, diz Hilda Blanco, coordenadora da modalidade no clube.

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A imagem mostra Mônica, de pé, com as duas mãos apoiadas sobre uma barra de ginástica. Ela olha para a câmera sorrindo.
Mônica dos Anjos: “técnicos cada vez menos exigentes” (Leo Martins/Veja SP)

Hilda e outros especialistas veem sérios problemas para a ginástica brasileira nos próximos anos: apesar da empolgação com o sucesso de Rebeca, os sacrifícios da carreira não combinam com os tempos atuais, marcados pela distração dos celulares e — nas palavras desses profissionais — pelas famílias superprotetoras. “A cada dia é mais difícil segurar as crianças no ginásio”, afirma a treinadora.

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O caso de Rebeca mostra como a postura familiar pesa nessa jornada. “Desde os 5 anos, a mãe dela confiou totalmente no nosso trabalho e fez de tudo para que ela não desistisse”, diz Mônica — que ainda se lembra do primeiro teste da ginasta, em 2005, quando comentou com um treinador ao lado: “Olha aí a próxima Daiane dos Santos”.

Mônica ainda trabalha no mesmo centro esportivo de Guarulhos, mas os tempos são outros. “Essa questão familiar mudou muito — e está cada vez pior. Hoje, se você corrigir um movimento de uma menina que está distante, a família vai dizer que você gritou com ela. Estamos cada vez menos exigentes”, ela afirma. “Se você for duro com as ginastas, como nos tempos em que comecei, não sobra nenhuma menina no treinamento”, concorda Beatriz Fragoso, 28, ex-atleta e atualmente técnica no Centro Olímpico, onde treina Christal.

Outros símbolos dos tempos atuais, os celulares e as redes sociais também dificultam a formação das ginastas. No último dia 9, a Vejinha esteve no complexo de treinos do Ibirapuera. Cercada por um enxame de garotinhas na faixa dos 10 anos de idade, a reportagem pergunta: Quem tem perfil nas redes? Os gritos de “sim!” são unânimes, seguidos de outros como “Instagram!” e “TikTok!”. Quase sempre uma diversão inocente, essas distrações têm prejudicado a busca por um desempenho de alto nível, segundo especialistas.

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“Antes, quando um treinador falava, as alunas prestavam atenção”, ironiza Fragoso. “Por causa dos celulares, as crianças paulistanas brincam muito menos com o corpo. Já não têm a mesma coordenação motora. Não é à toa que a base da seleção brasileira treina no Flamengo. Com a praia e a comunidade próximas, o clube tem maior facilidade para encontrar crianças com qualidades físicas”, diz Mônica. “O fator social também é um problema”, acrescenta Luciana Santilli, diretora da Federação Paulista de Ginástica. “As jovens veem as postagens das amigas se divertindo e não querem mais ficar sofrendo dentro do ginásio”, afirma.

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“Hoje, se você corrige uma atleta, a família acha que você gritou com ela”

 

 

A imagem mostra uma montagem com duas fotos. À esquerda, uma ginasta jovem se equilibrando com um pé na trave, corpo inclinado e braços e outra perna estendidos. À direita, uma ginasta de ponta cabeça na trave, com as duas mãos sobre o aparelho e os pés estendidos.
Jovens ginastas: no caminho para serem “a nova Rebeca Andrade” (Leo Martins/Veja SP)

A falta de predisposição para “sofrer no ginásio” resulta em outros contratempos. Conforme as pequenas avançam para a adolescência, precisam enfrentar uma questão íntima que leva muitas a desistir: o medo. Nos treinos da ginástica, sempre que um objetivo é alcançado, as atletas partem para outro ainda mais exigente. São comuns os relatos de desistência após acidentes. “Vi meninas muito boas interromperem a carreira depois de uma queda”, conta Christal.

Uma das promessas do ginásio de Guarulhos, Rafaelly Neves, de 10 anos, vive esse dilema. “Uma vez, fiz um exercício complicado e me desequilibrei. Caí de costas. Depois disso, fico com medo de fazer esse treino de novo. Mas não tem jeito, tenho que praticar”, ela conta. Enquanto se prepara para a próxima Olimpíada, Christal inventa maneiras de lidar com esse sentimento. “Eu tenho medo de muita coisa, sim. Mas, sempre que minha técnica pergunta, respondo que não tenho. Não gosto de mostrar meu medo, não quero deixar ele crescer e mandar na minha vida”, afirma a jovem.

“Com os celulares, as crianças de São Paulo brincam menos. Não à toa, os clubes do Rio acham mais atletas”

Mônica dos Anjos

 

 

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A imagem mostra Rafaelly, em pé, com uma medalha e seu uniforme de ginasta.
Rafaelly Neves, 10 anos: coragem para seguir após uma queda (Arquivo pessoal/Veja SP)

Além desses obstáculos, as aspirantes a estrelas olímpicas tiveram de lidar com um desafio nada trivial no último ano. Sem poder frequentar os ginásios na pandemia, elas recorreram a toda sorte de improvisos para manter as atividades — imagine treinar todas aquelas piruetas sem os aparelhos… O problema, claro, afetou de maneiras diferentes os clubes de elite e aqueles mantidos por verbas de prefeituras.

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No sábado passado (7), vinte meninas da categoria pré-juvenil (de 8 a 10 anos) se reuniram em um ginásio de São Bernardo do Campo para o campeonato estadual de ginástica artística. Para quase todas, era a primeira competição após um ano e meio de quarentena. “O nível estava bem fraquinho”, diz Mônica, que atuou como juíza. “Era comum termos sessenta meninas em um torneio como esse”, diz.

“Na pandemia, muitas usavam garrafinhas de água como peso, ou colchõezinhos caseiros para pular”

A imagem mostra o centro de ginástica de São Bernardo. Crianças estão observado uma ginasta preparando para fazer um movimento
Atletas competem em São Bernardo, no dia 7: entre as juradas está Mônica dos Anjos (a segunda da banca), técnica que descobriu a medalhista brasileira (Leo Martins/Veja SP)

Vencedora da etapa, Sophia Carvalho, de 9 anos, atleta do Centro Olímpico do Ibirapuera, treinou apenas por chamadas de vídeo na pandemia. “Tive força de vontade para não desistir”, ela conta. Não é a realidade de outras jovens da categoria. “Nossa equipe tinha quinze meninas. Hoje, viemos para a competição com três”, diz Clayton Xavier, técnico do time custeado pela prefeitura de Osasco.

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“Na pandemia, elas só conseguiram fazer condicionamento físico. É impossível treinar sem os aparelhos em casa. Muitas usavam garrafinhas de água como peso, ou colchõezinhos caseiros para pular”, ele conta. Segunda colocada na competição, Izabella Machado, de 10 anos e atleta do Pinheiros, teve a ajuda de um “padrinho” famoso. “O Arthur Nory (bronze na Rio-2016) me deu uma travezinha em miniatura para eu treinar em casa”, ela conta. “Foi muito difícil manter o interesse das meninas”, diz a técnica Hilda.

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A imagem mostra uma montagem com duas fotos. À esquerda, Sophia, no Centro Olimpico, colocando pó branco em suas mãos. À direita, Izabella com sua família na rua. Ela, a mãe e o pai estão abraçados.
Sophia Carvalho, do Centro Olímpico precisou de treinos por vídeo na pandemia; à direita, Izabella Machado, do Pinheiros teve trave doada por Arthur Nory para treinar (Leo Martins/Veja SP)

Com tantas e tão grandes barreiras, é chocante que uma atleta supere todas elas, esteja às portas de uma Olimpíada e não consiga sequer um patrocinador — como é o caso de Christal Bezerra.

Beatriz Calazans, 13, uma das promessas do complexo de Guarulhos (onde Rebeca começou), não faz rodeios quanto ao futuro. “Na verdade, eu não quero seguir carreira na ginástica. A gente não tem patrocínio para competir, então acaba ficando desanimada”, diz. Entre os gastos pessoais que ela tem no esporte, estão as taxas de inscrição para as competições e os collants usados nas apresentações. São despesas significativas, mas não chegam perto do incalculável tempo investido em treinos, do sacrifício de viver uma adolescência à parte das amigas, do esforço a que as atletas submetem o próprio corpo. Hoje, toda brasileirinha quer ser Rebeca Andrade. É inevitável (e justíssimo) se emocionar ao vê-la no pódio com a medalha no peito. Poucas imaginam, porém, quão complicado é o caminho até lá.

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A imagem mostra Beatriz, Rafaelly e Heloisa, três ginastas jovens. Beatriz esta com as mãos erguidas e, em cima dela, Rafaelly está se apoiando com os pés estendidos para os lados. Heloisa está na frente das duas, de joelhos. À esquerda, a técnica Juliana sorrindo para a câmera.
Beatriz Calazans (à frente), Rafaelly Neves (no alto) e Heloisa Farias (de joelhos) junto com a técnica Juliana Zarantonelli: falta de patrocínios (Leo Martins/Veja SP)
A imagem mostra cinco ginastas jovens sentadas a beira de um chão para a prática da ginástica.
Aspirantes a estrelas olímpicas: desafios (Leo Martins/Veja SP)

“NÃO FRUSTRAVA” – ENTREVISTA COM REBECA ANDRADE

Rebeca Andrade, primeira ginasta medalhista do país, fala de desafios na carreira

Já pensou em desistir?

Nas lesões, sim. Foram baques. Mas era o calor do momento. Depois das cirurgias, vejo que vai ficar tudo bem. Uma vez falei para minha mãe que queria voltar para casa. Mas é que eu tinha brigado com uma amiguinha. Depois, passou.

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Como foi sua rotina de treinos na pandemia?

Usei muito a sacada do apartamento para fazer os exercícios. Mas treino de verdade, para mim, é só no ginásio, mesmo. Muitas vezes, só ficava em casa dançando e cantando.

Como lidou com a dificuldade financeira?

Não me frustrava. Sabia que minha mãe não tinha condições. A união da minha família me fez amadurecer.

A imagem mostra Rebeca segurando a medalha de ouro no pódio
Rebeca: medalhas inéditas para o país (Laurence Griffiths/Getty Images)

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Publicado em VEJA São Paulo de 18 de agosto de 2021, edição nº 2751

 

 

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