Por que somos tão maltratados pelos planos de saúde
Com queda na qualidade, empresas registram aumento de queixas e clientes recorrem à Justiça para conseguir aprovação de exames e cirurgias
Em uma piada antiga sobre a mercantilização da medicina, dois cirurgiões conversam: “Meu paciente está complicado — já tirei um rim, o apêndice e parte do intestino. E o seu, como vai?”, pergunta um deles. “Ah, do meu tirei a casa de praia, o barco, o carro….”, responde o outro. Nos tempos atuais, os doutores da anedota poderiam ser substituídos pelos planos de saúde como os vilões da história. Os índices de insatisfação dos usuários vêm batendo recordes, sobretudo em São Paulo, cidade que reúne 20% do total de conveniados brasileiros. De acordo com um levantamento da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o órgão regulador desse mercado, as reclamações sobre o trabalho das companhias aumentaram 60% na capital nos últimos dois anos: de 13 200 para 21 100. A área lidera o ranking de problemas relatados ao Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) há uma década. Em 2013, representou 27% do total. “É um índice lamentável”, diz a coordenadora executiva do Idec, Elici Checchin Bueno.
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Alguns gigantes do ramo estão entre os dez campeões de insatisfação na metrópole, em proporção ao número de beneficiários (veja quadro abaixo). A líder dessa lista é a Unimed Rio,com 900 queixas registradas na ANS no ano passado. Considerando o número de clientes, isso equivale a uma reclamação a cada trinta usuários. Detalhe importante: em geral, quando uma pessoa procura o órgão regulador é porque já esgotou outras esferas para tentar resolver o caso, como o Procon. A Unimed Rio atribui a sua posição desconfortável à compra da carteira da antiga Golden Cross, em 2013. “Os clientes que vieram de lá estavam acostumados com outros procedimentos. Até então, nosso índice de reclamações era baixo”, afirma o superintendentede operações, Luiz Perez. Em maio, devido ao número elevado de queixas de usuários, seis das empresas que estão no ranking do mau atendimento tiveram a venda de planos suspensa por tempo indeterminado: Classes Laboriosas, Medicol, Somel, Trasmontano, Unimed Paulistana e a própria Unimed Rio.
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Aumentos considerados abusivos e resistência na aprovação de procedimentos mais caros, como cirurgias, estão no topo das queixas dos paulistanos. Muitos começaram a recorrer à Justiça para fazer valer seus direitos. No dia 4 de dezembro, a decoradora Fabiane Bertolotto foi internada às pressas no Hospital Beneficência Portuguesa para extirpar um câncer no intestino. Já no pronto-socorro, ela recebeu a notícia de que a SulAmérica não autorizaria o procedimento, pois seu plano estava sob período de carência. Em emergências, porém, o atendimento é obrigatório, segundo as regras da ANS. Na manhã seguinte, seu marido, João Bertolotto, ingressou com uma ação para obrigar a operadora a bancar o tratamento. Naquele mesmo dia, um juiz da 11ª Vara Cível concedeu a liminar, e a cirurgia ocorreu horas depois. Fabiane concluiu a quimioterapia há um mês, também à custa do convênio. Como ainda cabe recurso,a SulAmérica não comentou a decisão. “Senti raiva por pagar por saúde privada mas não poder contar com o serviço”, diz Fabiane.
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Ainda que seja complicado recorrer à Justiça, a vitória do consumidor é quase certa. Um dos principais escritórios de advocacia da área, o Vilhena Silva moveu cerca de 6 000 ações em dezessete anos de atuação, com a impressionante taxa de 95% de êxito. “Por envolver a vida humana, há o apelo emotivo, os juízes ficam mais sensíveis”, admite a advogada Renata Vilhena, que viu o movimento do local crescer 200% desde 2009. A sentença a favor do paciente também vem rápido: é comum a obtenção de liminares em 48 horas, e o processo completo, com recursos e contestações, é encerrado em até dois anos, tempo inferior ao do trâmite usual de outras causas.
No aspecto financeiro, o cliente costuma terminar no empate, pois a indenização por dano moral cobrada das empresas é calculada de modo a cobrir os encargos jurídicos — 10 000 reais, em média, para uma causa que envolva cirurgia. Na batalha dos tribunais, médicos são contratados para atuar como peritos, refutando argumentos dos empresários e ajudando na goleada sobre os convênios. “Há um claro desequilíbrio nas decisões contra as operadoras”, reclama o diretor-executivo da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), José Cechin. As frequentes derrotas são compensadas pela baixa procura dos beneficiários por essa saída. “Só 10% das pessoas que têm procedimento recusado recorrem à via legal”, afirma a advogada Rosana Chiavassa, dona de outro grande escritório do setor.
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Para agilizar a solução dos casos, muitos deles semelhantes, o Tribunal de Justiça de São Paulo editou diversas “súmulas”, pequenos textos que resumem qual deve ser o entendimento do juiz em determinada situação. Uma delas diz que “havendo indicação médica, é abusiva a negativa de custeio sob o argumento de que o tratamento não está previsto pela ANS”. Foi o que ocorreu com o engenheiro aposentado Adilson Antonio Pinto, que descobriu um câncer de próstata em 2012. Encaminhado para sessões de radioterapia de intensidade modulada, que provoca menos efeitos colaterais mas não é listada pela agência, ele recebeu a recusa da Unimed Paulistana. Mesmo pagando 1 300 reais mensais pelo plano, teria de desembolsar 30 000 reais pelo procedimento adequado. Após meses sem solução, entrou na Justiça e ganhou.
Situação semelhante viveu a estudante Yasmin Oliveira de Souza em 2010. Depois que os tratamentos usuais para combater um linfoma não surtiram efeito, o médico recomendou um medicamento quimioterápico fabricado no exterior e com uso liberado na Europa e nos Estados Unidos. A Bradesco Saúde informou que não iria pagar pelo produto, sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O advogado da paciente defendeu que doenças reconhecidas pela Organização Mundial da Saúde devem ter cobertura, e o juiz concordou: Yasmin conseguiu o remédio e agora se recupera de um transplante de medula realizado em maio no Hospital São Camilo.
A negativa do plano não é o único aperto dos clientes, há também a demora na resposta. Segundo a ANS, a emissão de autorizações para cirurgias e exames complexos pode levar no máximo 21 dias. Os usuários reclamam que, muitas vezes, a espera é muito maior. Quando tinha 1 ano de idade, Yuri Fernandes, hoje com 5, precisou retirar um cálculo renal. Para liberar o procedimento, a Amil exigiu um laudo para atestar que o problema havia surgido depois de o menino contratar o convênio. “Os médicos diziam que era impossível confirmar isso”, relembra sua irmã, a produtora Joyce Fernandes. “A empresa levava semanas para responder e sempre alegava que faltava algum documento. Foi aflitivo, a cada dia aumentava o risco de a pedra ficar presa na uretra.”
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Depois de a espera completar quase um mês, a família contratou um advogado para resolver a questão. Na lista de reclamações, outro problema comum é o reajuste da mensalidade quando o cliente completa 59 anos. Trata-se de uma manobra para burlar o Estatuto do Idoso, que proíbe o aumento da tarifa após os 60 anos. O técnico de logística Francisco Ferreira de Souza, 59, e sua mulher, a aposentada Terezinha de Fátima Souza, 60, sofreram com isso recentemente: a fatura de cada um, da SulAmérica, dobrou, saltando de 700 para 1 378 reais. A Justiça considerou a quantia abusiva e a reduziu para 1 042 reais.
Não é preciso debruçar-se sobre estatísticas para identificar a queda na qualidade do serviço: quem frequenta os consultórios já nota isso há tempos. O atendimento de um clínico-geral do plano não costuma durar mais que quinze minutos, metade do tempo registrado há dez anos, segundo dados do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp). A pressa tem uma explicação: enquanto os convênios pagam, em média, 52 reais por paciente atendido por um cardiologista, profissionais de ponta da mesma especialidade cobram 900 reais por consulta. Essa discrepância pode ser ainda mais absurda. Um parto com o obstetra Carlos Eduardo Czeresnia, da badalada clínica Celula Mater, sai por 20 000 reais. Já seus colegas que atendem nos planos embolsam 353 reais por procedimento idêntico, de acordo com levantamento da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo.
Fora das especialidades, a situação é igualmente drástica. Os clínicos-gerais das operadoras ganham entre 8 e 32 reais por consulta, o que os obriga a enfileirar atendimentos para equilibrar o orçamento. Além disso, em mais da metade dos casos há retorno do paciente para análise de exames — tarefa pela qual não recebem um centavo sequer. “Enquanto os médicos dos convênios tiveram reajuste salarial de 60% nos últimos dez anos, as mensalidades dos planos cresceram 140% no período, o dobro da inflação”, compara o presidente do Cremesp, João Ladislau Rosa.
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Nesse cenário, as perdas da categoria acumulam-se. “A defasagem desde 2004 já é de 200%”, calcula o primeiro-secretário do Conselho Federal de Medicina, Desiré Carlos Callegari. Para driblarem as empresas da área, muitos doutores e pacientes têm recorrido a uma artimanha burocrática: a divisão do valor da consulta em dois recibos, o que aumenta o reembolso ao cliente e o repasse ao profissional. “isso não é ético, mas o mercadosempre dá o seu jeitinho”, diz Callegari.
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O cliente precisa pagar muito caro para ter hoje um atendimento melhor, via planos premium das operadoras. A Omint, por exemplo, só trabalha com esse perfil de público. Disponibiliza profissionais do Einstein e do Sírio e custeia exames para detectar doenças precocemente, o que reduz os gastos com consultas e cirurgias alguns anos depois. A mensalidade para uma pessoa de 30 anos gira em torno de 1 500 reais (um plano básico das companhias sai por 300 reais). Para as empresas da área, não há como baratear o serviço em um cenário em que muitas variáveis pressionam os custos de operação. Um deles é o fato de nossa população estar envelhecendo e, portanto, necessitar de cuidados redobrados. Desde 2000, a expectativa de vida do brasileiro subiu de 68 para 74 anos. “Uma pessoa com mais de 60 anos utiliza seu plano de saúde em escala seis vezes maior que as demais”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge), Arlindo de Almeida.
Somada a isso, a tecnologia ampliou o uso de artigos sofisticados e caros. “Cerca de 30% das cirurgias de hoje envolvem a instalação de alguma prótese, e as mais elaboradas chegam a custar 500 000 reais”, afirma o diretor executivo da FenaSaúde, José Cechin. “E ainda existem distorções: um dispositivo desse tipo para o joelho sai da fábrica por 2 000 reais e, após uma cadeia de intermediários, é vendido por 18 000 reais, com uma inexplicável diferença de 800%”, completa. O aumento nas despesas fez com que os associados da entidade gastassem 36 bilhões de reais em 2013, uma alta de 17% em relação ao ano anterior ou o triplo da inflação no período. Segundo os donos do negócio, o setor entrará em colapso em poucos anos se esse ritmo for mantido. Esse movimento já pode ser verificado na prática: nos últimos dez anos, mais de 100 convênios fecharam as portas na capital, cerca de 15% do total.
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Criada em 2000 para intermediar a relação entre empresas, clientes e médicos, a ANS teve, até o momento, a função primordial de notificar operadoras que agem em desacordo com as normas. Segundo o órgão, 85% dos casos são resolvidos dessa forma. Os 15% restantes podem transformar-se em processos administrativos e render multas de 80 000 reais por consulta ou 100 000 reais por emergência não atendida. Em 2013, foram aplicadas 4 100 punições, no valor acumulado de 523 milhões de reais, mais que o triplo do ano anterior. Em maio, a presidente Dilma Rousseff vetou uma proposta aprovada pelo Senado para reduzir o valor dessas multas. Outro tipo de intervenção é a chamada “direção fiscal”, quando um funcionário da ANS é alocado para melhorar a gestão na companhia. “Revertemos a situação em boa parte dos casos”, afirma o diretor-presidente, André Longo Araújo de Melo.
O governo federal emite sinais de que vai acirrar esse controle, ampliando o poder de fogo da agência. No momento, técnicos trabalham na regulamentação de uma lei, sancionada há um mês, que aumenta a responsabilidade das operadoras. Na melhor das hipóteses, o negócio sai do papel até o fim do ano. Algumas medidas incluem a exigência de aviso no caso da troca de profissionais incluídos na cobertura dos planos e a definição de um porcentual fixo de reajuste para os honorários dos médicos. Com isso, a expectativa é atenuar as queixas dos consumidores e dos profissionais de saúde. Se a ideia realmente vingar, poderá ser um passo fundamental para começar a mudar o panorama de um setor com tantos problemas graves.
Colaboraram Angela Pinho, Jussara Soares e Silas Colombo