WhatsApp: as facilidades e confusões entre médicos e pacientes
Uso do aplicativo não é unanimidade entre profissionais; conheça histórias das 'consultas digitais'
Se você, leitor, é pego de surpresa com fotos, vídeos e textos que chegam ao seu WhatsApp, imagine se pudesse dar uma espiada no celular de seu médico. “Eu conseguiria montar uma exposição com as diferentes cenas de fralda que me mandam para analisar”, conta o pediatra Claudio Len, que recebe por volta de 100 recados diários. “Certa vez, um pai matou um mosquito e me enviou a imagem, para saber se era o Aedes aegypti.”
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São cenas cada vez menos estranhas para os doutores da cidade, graças à prática que está se tornando rotineira de levar o diálogo com os pacientes para além da porta do consultório, por meio do aplicativo gratuito de comunicação mais popular dos smartphones, com 14 milhões de usuários paulistas, segundo levantamento do ano passado.
O hábito está longe de se restringir aos casos triviais. Na sexta, 8, a professora Daniele Niere, de 36 anos, acionou pelo app o obstetra Sílvio Eduardo Valente. Ela chegava com antecedência à Maternidade ProMatre, na Bela Vista, onde tinha uma cesárea agendada para dali a três horas, quando a bolsa estourou. “Fique tranquila”, orientou ele, antes de disparar de Santo André para o local. “Achei mais adequado escrever do que ligar e correr o risco de ele estar dirigindo”, esclarece ela, feliz ao lado da recém-nascida Gabriela.
Pesquisa divulgada em novembro de 2015 pela consultoria britânica Cello Health Insight revelou que 87% dos médicos brasileiros haviam utilizado o aplicativo nos trinta dias anteriores para se comunicar com aqueles que atendem, diante dos 4% nos Estados Unidos e dos apenas 2% no Reino Unido. “Nesses lugares existe a chamada ‘indústria do erro médico’ e os profissionais são mais cuidadosos com os processos que possam sofrer por causa das mensagens”, explica o diretor executivo do Instituto de Direito Público de São Paulo, Alexandre Zavaglia Coelho.
Um levantamento feito por VEJA SÃO PAULO com 85 especialistas de diferentes áreas, atuantes em centros como Sírio-Libanês, Albert Einstein e Nove de Julho, revelou que 77% dos entrevistados mantêm contato com pacientes pelo programa. Entre eles estão o urologista Miguel Srougi, o oftalmologista Claudio Lottenberg, o cardiologista Nabil Ghorayeb, o cirurgião plástico Alexandre Senra e outros nomes reconhecidos.
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“Todos os que vão ao consultório têm o meu número”, afirma Ghorayeb. “Uso o aplicativo para tranquilizar caso se trate de algo banal, mas mando na hora para o hospital se me relatam dor no peito ou mal-estar noturno.” Senra adota linha semelhante. “Ficar 100% do tempo disponível faz parte da qualidade do meu trabalho”, conta. Ele monitora na telinha imagens de pós-operatórios, o que não substitui os retornos seguintes às intervenções estéticas.
Para o otorrinolaringologista Jamal Azzam, trata-se de uma ferramenta útil para o sistema de saúde. “Essas conversas diminuem o número de idas desnecessárias ao pronto-socorro”, pondera. Em sua agenda de contatos está a bancária Patricia Paesani, que enfrentou momentos de ansiedade com o aumento das amígdalas do filho Leonardo, de 5 anos. “Ele não conseguia engolir vários alimentos e vivia muito cansado”, diz. Passado um ano da cirurgia de correção, Patricia e Azzam ainda se falam. “Eu recebo fotos em que ele está comendo, e isso cria um acompanhamento próximo”, avalia o médico.
Para alguns pacientes, a disponibilidade on‑line tornou‑se ponto crucial na contratação do serviço. “Escolhi o pediatra do meu bebê porque ele visualiza e responde às mensagens rapidamente”, afirma a relações‑públicas Juliana Stadi, de 29 anos. Essa especialidade é, de longe, uma das mais solicitadas no aplicativo, ao lado da obstetrícia. “Por toda a gravidez mandei perguntas sobre poder dirigir ou usar calça jeans apertada”, diz a arquiteta Thabata Frazão, de 28 anos. A proximidade mudou também a rotina dos nutricionistas. “Os pacientes me enviam fotos de pratos e cardápios de restaurantes para analisar e até das guloseimas às quais resistiram”, enumera Ligia Henriques.
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Para disciplinar o hábito, o Conselho Federal de Medicina publicou, em julho de 2015, uma resolução específica. Ela veta o uso do WhastApp e outras redes sociais para a realização de consultas, prescrições e diagnósticos. “Mas tudo bem ser usado para pequenas dúvidas”, esclarece Emmanuel Fortes, um dos vice‑presidentes da entidade.
Ainda assim, há quem refute a ideia. “Esse tipo de prática pode levar a um erro”, alerta Claudio Barsanti, presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo. “Uma lesão aparentemente simples vista a distância às vezes é, na verdade, algo sério”, defende. “Nada substitui a relação presencial.” O cardiologista Mauricio Wajngarten preocupa‑se coma possibilidade de os relatos digitados serem imprecisos. “Sou um dos poucos que não usam o WhatsApp, pois acho que a palavra escrita corre grande risco de ser mal interpretada.”
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Ainda que haja regras de conduta, são muitos os momentos de dúvida dos dois lados, especialmente dos que vestem o jaleco. Há mais de dois anos, o residente Luiz Gustavo Omena viu apitar o smartphone com a mensagem de uma jovem com dor de garganta em busca de atendimento. Como estava em uma confraternização, ele não se sentiu confortável para responder. “Não posso trabalhar sob o efeito de álcool”, explica. Acabou levando uma bronca da remetente, quando ela notou o símbolo azul indicativo de que o texto não respondido havia sido visualizado.
Essa cobrança aparece entre os pontos de irritação dos médicos. É comum que eles desejem estabelecer limite de horário. Para evitar mal‑entendido, o oncologista Sergio Simon deixa o telefone desligado quando não está apto a responder. “Aí percebem que eu não estou recebendo os envios”, explica. “Mesmo assim, eu me sinto de plantão o dia inteiro.”
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A mais inconveniente modalidade de falta de noção são os espertinhos que escrevem sem nunca nem ter pisado naquele consultório, em busca de respostas quebra‑galho. “Dez por cento dos torpedos que eu vejo são de pessoas que se identificam como amigos dos meus pacientes”, reclama o ortopedista Gilberto Camanho. “Ignoro a todos.” Nessa etiqueta, vale compreensão quando a demanda não pode ser resolvida por ali. Também é preciso ter o zelo de enviar explanações claras e concisas, que não sejam fatiadas em diversos trechos.
Há casos em que a popularidade do app culminou em disputas judiciais. Textos, fotos e vídeos compartilhados tornam-se documentos usados como prova em processos (sim, o temor dos médicos ingleses, citados no início desta reportagem, está longe de ser infundado). Sandra Franco, advogada especialista em direito da saúde, defendeu um cirurgião plástico que mandou fotos de uma paciente a um colega que ele havia indicado para atendê-la. Ao chegar a essa outra clínica, a pessoa ficou incomodada ao perceber que algumas imagens íntimas terem ido parar no celular da profissional que ela não conhecia e quis entrar com uma ação contra o primeiro médico.
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“O caso acabou em conciliação depois de conversas entre as partes”, diz Sandra. Em Santos, uma mensagem auxiliou outro médico a ser absolvido recentemente na queixa de uma ex-frequentadora de seu consultório. Ela teve problemas com uma mamoplastia, tempos após a operação, mas o fato de ter parabenizado o profissional pelo atendimento por meio de torpedo ajudou o juiz a concluir que o problema era fruto de uma complicação natural, e não de um trabalho mal realizado.
Mais polêmico é um episódio ocorrido em Agudos, a 313 quilômetros da capital paulista, no início do ano. O hospital municipal pagava cerca de 800 reais por plantão remoto de 24 horas, quando os contratados só eram acionados se aparecesse por ali um caso de sua especialidade. Segundo o promotor Neander Sanches, dois ortopedistas, em vez de correr para o local, orientavam os clínicos e enfermeiros via WhatsApp sobre a necessidade de enfaixar um membro, por exemplo.
Rodrigo Delazari, um dos acusados, defende-se. “Se eu observava pelo raio X enviado pela equipe que o osso não estava quebrado, não precisava ir lá, pois não era nada grave”, argumenta. O membro do Ministério Público investiga os mantenedores do centro médico por suspeita de improbidade administrativa devido à conduta dos dois médicos, entre outros problemas de atendimento nos plantões.
Situação oposta acontece no Hospital do Servidor Público Estadual, na Vila Clementino, onde o uso da tecnologia se mostrou um grande aliado. O cirurgião-geral José Francisco Farah criou, em 2012, um grupo virtual para discutir questões clínicas. De lá para cá, cerca de 500 casos foram analisados por 183 nomes de 62 cidades do país. O levantamento interno mostra que 90% das discussões ajudaram no tratamento (os enfermos nunca são identificados).
Entre os relatos de sucesso, está o de uma mulher de 78 anos que surgiu no Servidor com uma mancha amarelada nos olhos. “As análises indicavam que poderia ser câncer, mas restavam dúvidas. Alguém no grupo sugeriu pedir um exame para verificar uma pedra no canal da bile, e era mesmo apenas isso”, recorda Farah. Neste ano, a junta virtual migrou para o aplicativo Telegram, por considerar a visualização de documentos mais adequada. Como norma, eles não debatem mais de um caso por vez.
A Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo também vê potencial em ferramentas da internet para desenvolver um programa clínico parecido. O presidente Ibraim Masciarelli prepara para junho de 2017 um workshop para seus associados aprenderem a ler eletrocardiogramas e outros exames enviados por enfermeiras via celular. “Se a gente não fizer isso, as pessoas vão começar a usar errado”, justifica.
“Recursos tecnológicos que auxiliam a atender a distância são um caminho irreversível, pois o tempo dos médicos no mundo é insuficiente diante das demandas”, avalia o urologista Miguel Srougi. “Cabe a nós saber quando o encontro ao vivo com o paciente é fundamental.” Para quem busca ajuda, vale lembrar que, a despeito da facilidade digital, às vezes, o melhor remédio é agir à moda antiga. Certa vez, por exemplo, um paciente do infectologista David Uip lhe mandou mensagem de madrugada, que ele não visualizou por estar dormindo. “No dia seguinte, a mãe telefonou avisando que o garoto havia sido internado devido a um processo alérgico grave. Uma ligação teria sido, é claro, o melhor caminho.”
ALÉM DA CLÍNICA
A troca de mensagens não é unanimidade entre especialistas
Nunca usa:
“Logo na primeira consulta, compartilho meu telefone, mas aviso à família que não conversarei por mensagem de texto de nenhuma natureza. Esse tipo de prática pode levar a um erro de diagnóstico. Também atuo na área do direito e sei que essas conversas podem ser usadas como prova contra um profissional.” Claudio Barsanti, pediatra
“Deixei de usar o aplicativo depois que um paciente fez uma pergunta, eu o orientei a procurar um dentista e ele respondeu que esperava mais de mim. Aboli o WhatsApp da minha vida, não falo nem com minha família por esse meio. A palavra escrita corre o grande risco de ser mal interpretada.” Mauricio Wajngarten, cardiologista
Usa pouco:
“Apenas três ou quatro pacientes falam comigo por mensagem. São pessoas que precisam de um cuidado especial, com urgência. Eu prefiro ouvir o paciente pelo telefone, perceber por sua respiração se a pessoa está ansiosa. Em caso de emergência, eles têm um número especial para me ligar.” Antonio Carlos Buzaid, oncologista
“Sou formado há quarenta anos e tenho por hábito não prescrever, não ver exame sem olhar e falar pessoalmente como paciente. Eu não sei dar diagnóstico por imagem de celular, meu trabalho é tocar, ver a característica da lesão. Estou no aplicativo para o caso de alguém precisar de mim com urgência, mas existe um limite.”Artur Timerman, infectologista
Usa bastante:
“Eu prefiro que me passem mensagem do que telefonem. Assim, eu posso selecionar com quem falar imediatamente. O médico precisa dar o tom, impor a dinâmica desse contato. Consigo transmitir segurança a distância, sem fazer a pessoa sair de casa. Isso promove uma fidelização com quem você atende.” Claudio Lottenberg, oftalmologista
“Eu adoro o WhatsApp. É um aplicativo direto e objetivo. Uso para manter contato com as mulheres e ficar mais próximo delas, além de deixá-las mais tranquilas. Recebo cerca de quarenta dúvidas em dias úteis e o fluxo diminui nos fins de semana. Por isso acho que elas sabem usar, não tenho do que reclamar.”José Bento de Souza, ginecologista