As “pegadinhas” da gestão Fernando Haddad
Ciclovia da Faria Lima foi superfaturada em 34,4 milhões de reais. Este é só mais um exemplo das promessas e projetos promissores que colecionam problemas na gestão municipal
Na segunda (16), Fernando Haddad decidiu mentir em sua agenda oficial para armar uma “pegadinha”. Em comunicado, informou que teria apenas “despachos internos” naquele dia. Era uma isca para o historiador Marco Antonio Villa, que costuma criticar a programação de trabalho do político na rádio Jovem Pan. Deu certo: o comentarista ironizou sua suposta falta do que fazer. Na sequência, o prefeito revelou no Facebook que, rá!, tratava-se de uma troça: ele havia substituído seu cronograma pelo de um político de quem Villa, em seus termos, “lambe botas”.
Segundo a lógica de Haddad, foi um golpe de gênio para mostrar como ele é fustigado injustamente pela imprensa. Para grande parte dos paulistanos, no entanto, ficou a incômoda sensação de que o homem sentado no principal gabinete do Edifício Matarazzo não deveria gastar energia com esse tipo de coisa, sobretudo quando está à frente de uma cidade com tantos problemas.
Prefeitura reabre planetário do Carmo, na Zona Leste
Horas depois do trote, a capital vivenciava um trágico choque de realidade. Com a chuva intensa, ao menos 117 árvores vieram ao chão, problema que se repetiu 3 231 vezes em 2015, devido especialmente a lapsos de vistoria e remoção de troncos comprometidos. No Largo da Concórdia, na Zona Leste, uma tora desabou, matou uma mulher e deixou uma criança de 2 anos em estado grave. Chamado de “pseudointelectual” pelo prefeito, Villa, que também é comentarista do site de VEJA, do Jornal da Cultura e articulista do jornal O Globo, não achou graça e o chamou de “irresponsável”. O Ministério Público abriu, na quinta (19), um inquérito para analisar se Haddad cometeu improbidade. Para Silvio Ferreira, professor de direito da PUC-SP, a atitude contraria os princípios constitucionais de divulgação de atos do governo. “Não acho que os promotores devam gastar recursos investigando isso, mas é óbvio que as informações de um prefeito devem ser verdadeiras.”
Haddad não é um fenômeno de popularidade. A pesquisa Datafolha mais recente sobre o assunto, de novembro, apontava parcos 15% de aprovação e 12% de intenção de voto no próximo pleito, contra 34% de Celso Russomanno e 13% de Marta Suplicy. Os números demonstram a insatisfação dos paulistanos com a atual gestão, marcada por projetos que não saíram do papel, obras mal executadas e outros problemas. Confira ao longo desta reportagem algumas das “pegadinhas” da prefeitura que não têm a menor graça para os moradores da cidade.
1 – CICLOVIA DA FARIA LIMA FOI SUPERFATURADA
Em fevereiro de 2015, uma reportagem de VEJA SÃO PAULO mostrou que as ciclovias construídas na cidade, muitas delas mal planejadas e executadas, estavam entre as mais caras do planeta. Na gestão Haddad, a malha total passou de 64,7 para 412,6 quilômetros.
Na média, custavam 650 000 reais por quilômetro, contra os 129 000 reais da erguida em Paris, na França, por exemplo. Se não bastasse, as obras foram realizadas sem licitação. Optou-se por usar atas de registro de preços, um instrumento mais utilizado pelo poder público municipal para compras rotineiras e de menor valor, como a de materiais de escritório e pequenas obras.
Por meio de uma nota ofcial, Haddad tentou refutar as contas e, em entrevista à rádio Jovem Pan, reforçou a defesa. “A revista errou feio”, disse. Segundo ele, junto às principais ciclovias, como as das avenidas Paulista e Faria Lima, estavam sendo realizadas outras transformações urbanísticas que não podiam ser computadas no preço fnal, como o aterramento de fios e o rebaixamento da sarjeta do canteiro no qual estão as pistas.
O argumento não convenceu os técnicos dos órgãos de controle de contas públicas, que continuaram investigando o caso. Passado pouco mais de um ano, a própria prefeitura reconhece, indiretamente, que, ela sim, errou feio no projeto mais caro da safra, o da Faria Lima (orçamento de 63,8 milhões de reais). O traçado de 18 quilômetros fcou a cargo da empresa Jofege. Iniciada em 2014, a construção encontra-se nos últimos ajustes. Por força de uma série de questionamentos do Tribunal de Contas do Município (TCM), a prefeitura abriu sindicâncias internas a partir de novembro do ano passado. Terminado esse trabalho, chegou à conclusão de que o projeto deveria custar 29,4 milhões de reais, menos da metade do previsto. Ou seja, o negócio estava superfaturado em 34,4 milhões de reais. Desse montante, 6,8 milhões de reais já foram devolvidos aos cofres públicos.
O TCM fará uma averiguação independente do caso (suspeita-se que o superfaturamento pode ser maior e se repetir em outros trechos). A prefeitura deve jogar a culpa nas costas da Jofege no episódio Faria Lima e processar a companhia. Procurada por VEJA SÃO PAULO, a empresa nega irregularidades e diz que “eventuais revisões e ajustes de valores” são normais durante a execução. O vereador Gilberto Natalini (PV) tentou abrir uma CPI para tratar do tema em 2015. Com a ajuda da bancada governista, Haddad conseguiu barrá-lo.
2 – O BOM PROJETO QUE O “DE BRAÇOS ABERTOS” PODERIA TER SIDO. MAS NÃO É
O projeto De Braços Abertos foi lançado em janeiro de 2014 como um sopro humanista na Cracolândia, região do centro que se frma, desde os anos 90, como um monumento da incompetência dos governantes em lidar com o combate às drogas. Em tese, a ideia era retirar os viciados de lá não por força policial, mas oferecendo moradia digna, três refeições diárias e um salário semanal de 130 reais por serviços como a varrição de ruas e praças. Hoje, são 467 benefciários, mas já passaram pelo programa ao menos outras 900 pessoas (mais da metade desistiu). Poderia ter sido algo revolucionário, não fosse a execução tão relaxada.
O descompasso entre teoria e prática foi explicitado em março de 2015, quando a reportagem de VEJA SÃO PAULO flagrou apenas 15% dos usuários da frente de varrição indo trabalhar, outros recebendo o pagamento do dia sem cumprir o expediente, além da insalubridade dos hotéis.
Desde então, a situação pouco mudou. “Agora, a marcação do ponto é feita com um crachá, mas muitos aqui preferem fcar fumando nos hotéis, que estão caindo aos pedaços e com infestação de ratos”, relata uma das atendidas, Franciele Silva, 35, vinda de Cajamar, é moradora há oito anos do pedaço. Desde o começo fo programa, dois estabelecimentos foram descredenciados devido às más condições. A situação das hospedagens é tão crítica que está sendo investigada pelo Ministério Público em função de denúncias. “Vamos iniciar uma averiguação in loco para ver se os quartos podem abrigar essas pessoas”, afrma o promotor da habitação José Fernando Cecchi Junior.
Ainda assim, para a prefeitura, a iniciativa é um sucesso: teria caído de 1 500 para 300 o número de viciados que se concentram nas ruas (uma visita ao local, no entanto, mostra que o contingente não encolheu nessa proporção). Outro dado ofcial: segundo pesquisa dos assistentes sociais municipais, 88% dos benefciários contam ter reduzido drasticamente o consumo de crack, de 42 pedras por semana para a média de dezessete. “Reconheço a intenção do programa, mas faltam trabalhos científcos e independentes para avaliar sua efcácia”, pondera Arthur Guerra, coordenador de estudos de álcool e drogas da USP.
3 – “ARCO DO FUTURO”, TÃO FALADO… APENAS NA CAMPANHA
Um dos destaques da campanha eleitoral, o Arco do Futuro saiu dos holofotes com o início da gestão. Com a ideia de redirecionar o crescimento da capital, a iniciativa ambiciosa e bilionária pressupunha uma série de obras e medidas em uma área delimitada pela Avenida Cupecê, as marginais Tietê e Pinheiros e a Avenida Jacu-Pêssego, até a divisa com Mauá.
Oito meses depois de assumir, Haddad desistiu de um ponto fundamental, alegando que não haveria dinheiro sufciente: a implementação de vias paralelas à Marginal Tietê. A proposta foi ressuscitada no início deste ano de eleição, mas sabe-se que é difícil que ela saia do papel.
O projeto inovador acabou se mostrando mais complicado do que a encomenda, com a (previsível) difculdade de obter apoio na Câmara e da iniciativa privada e com a escassez de verbas estaduais e federais. “Acredito que houve um descompasso entre o desejo do governo e o que era mesmo possível fazer”, afrma o cientista político Rui Tavares Maluf.
4 – DE VINTE CEUS PROMETIDOS, APENAS UM INAUGURADO
Na campanha eleitoral, Haddad garantiu que investiria pesado em educação, colocando a área como uma de suas prioridades no mandato à frente da cidade. De cara, prometeu vinte Centros Educacionais Unifcados (CEUs). A sete meses do fim do mandato, no entanto, apenas um endereço do tipo foi inaugurado, em Heliópolis. A prefeitura informa que há oito unidades em construção, com previsão de entrega até dezembro.
O restante do plano não sairá do papel, fcando sua execução a cargo do próximo titular (ou do próprio Haddad, se ele conseguir a reeleição). Uma questão ainda mais sensível nessa área, a das creches, também andou em ritmo lento. Apenas 38 das 243 unidades prometidas foram feitas, e a fila por uma matrícula soma cerca de 92 000 crianças. Com isso, a família que está no fim da lista pode demorar mais de um ano para conseguir uma vaga, de acordo com estimativa do Sindicato dos Profssionais em Educação no Ensino Municipal.
5 – CADÊ OS TRÊS NOVOS HOSPITAIS?
A pouco mais de um semestre do fim do mandato, o prefeito não completou nenhuma de suas sete metas na área da saúde. Nos bastidores, essa foi sempre uma pasta problemática. Desde o começo, ele deu várias duras no secretário José de Filippi Jr., criticando seu ritmo lento na execução dos projetos. O titular, porém, sobreviveu até agosto de 2015, quando Alexandre Padilha assumiu.
Na lista de promessas, aparecem a inauguração de três hospitais, um em Parelheiros, outro na Brasilândia e o terceiro em Artur Alvim. Até agora, nenhum deles abriu as portas.A administração jura que os dois primeiros serão entregues até dezembro e contabiliza no rol de suas realizações o Hospital Vila Santa Catarina, na Zona Sul, que era privado e foi encampado, em parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein.
Outros programas também patinaram. A Rede Hora Certa, com ambulatórios de especialidade, só teve dezesseis das 32 unidades prontas (e sete delas são móveis). Das 43 novas Unidades Básicas de Saúde (UBS), oito foram entregues e quinze estão em construção. Voltados para pacientes psiquiátricos e dependentes químicos, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) têm marca ainda inferior. Previam-se trinta desses espaços na metrópole até o fim da gestão, mas só quatro viraram realidade. Os outros não saíram do papel.
6 – O PROJETO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA QUE CONTINUA NO ESCURO
Anunciada com destaque em 2014, uma parceria público-privada gigante para a iluminação pública soma uma série de contestações do Tribunal de Contas do Município (TCM) e da Justiça, que apontam irregularidades na contratação e na escolha das empresas envolvidas. Assim, a excelente iniciativa de trocar 580 000 lâmpadas de vapor de sódio por versões de LED (mais econômicas e duráveis), resolvendo um dos problemas urbanos da metrópole, continua em carga baixa.
O último capítulo ocorreu em 29 de abril, quando o conselheiro do TCM João Antonio, ex-vereador do PT e sempre elogioso a Haddad nas redes sociais, mandou mais uma vez suspender o pregão. “Recebi uma representação de uma das empresas questionando a participação de uma concorrente, e não estou convencido da liberação”, informa Antonio. A prefeitura recorreu ao Tribunal de Justiça, que negou o mandado de segurança solicitando a anulação da decisão de Antonio. Segue, então, no escuro o projeto que faria São Paulo economizar o equivalente ao que consome uma cidade com 150 000 habitantes.
7 – CORREDOR DE ÔNIBUS DEVAGAR, DEVAGARINHO
As faixas exclusivas de ônibus se multiplicaram pela cidade: são 500 quilômetros implantados, acima dos 150 prometidos. Já o avanço nos corredores, de efciência bem superior, são uma piada. Dos iguais 150 quilômetros previstos, apenas 39 quilômetros, ou 26%, foram entregues.
É pouco? Pois, desse total, ao menos 22 quilômetros referem-se a reformas e requalifcações de vias existentes (ou seja, há apenas 17 quilômetros novos). Mais 7,8 quilômetros devem ser fnalizados até o fim da gestão, 22,6 permanecem em obras e, em 35,5, não houve uma marretada sequer. Os repasses minguados de Dilma Rousseff fzeram falta, mas parte do fracasso se deve, mais uma vez, a licitações bastante problemáticas. No contrato do corredor Radial Leste Trecho 1, por exemplo, o Tribunal de Contas da União apurou sobrepreço de 64 milhões de reais (30% do valor total), entre outras irregularidades, e recomendou, em outubro de 2015, a paralisação dos trabalhos.
Assim, o governo federal também suspendeu o repasse de recursos. O canteiro de obras na área que interligará a Radial Leste ao Terminal Parque Dom Pedro II virou ponto de usuários de drogas. A prefeitura afrma que prestou os esclarecimentos ao órgão e aguarda análise.
8 – MULTAS RECORDES NO TRÂNSITO USADA PARA FINS NÃO PREVISTOS EM LEI
Nunca se multou tanto em São Paulo. Em 2015, foram aplicados 13,3 milhões de autuações em ruas e avenidas da cidade (70% mais do que em 2014), com uma arrecadação superior a 1 bilhão de reais. Com incremento no número de radares de 593 para 823 (segundo o site Fiquem Sabendo), somam-se 36 000 infrações diárias. Desse montante, 38% (5,1 milhões) referem-se aos apressadinhos.
Pesa na conta a série de reduções de velocidade máxima por toda a metrópole. Apesar de polêmica e muito criticada pelas pessoas que acusam a prefeitura de criar uma indústria de autuações, a política ajudou na diminuição em 20% nas mortes no trânsito, entre 2014 e 2015.
Mais controverso ainda é o uso da verba que entra no caixa. Na última terça, 17, a Justiça acolheu petição do Ministério Público para investigar o prefeito por improbidade. A acusação é por desvio do dinheiro das multas, que deveria ser destinado a sinalização, engenharia, fscalização e educação. De acordo com a denúncia de Marcelo Milani, da Promotoria do Patrimônio Público e Social, o prefeito tem empenhado os valores na construção de ciclovias e no pagamento de salários de funcionários da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), entre outras coisas.
Para a juíza responsável pelo caso, Carmen Oliveira, da 5ª Vara da Fazenda Pública, está claro o incentivo às multas a fim de “elevar a arrecadação municipal e, ato contínuo, desvirtuar a destinação legalmente estabelecida”. Haddad e alguns de seus secretários, se condenados, podem ter de pagar multa e fcar inelegíveis por até oito anos. A administração tem quinze dias para se manifestar.