Sonhei com Clarice Lispector. As imagens eram tão reais que me lembro delas como um acontecido, não um sonho. Estávamos os dois em um avião, um grande jato que se preparava para decolar, sentados em poltronas lado a lado, ela na janela à minha esquerda, e estava pálida, de repente muito pálida, enquanto o avião taxiava, e murmurou, apenas o suficiente para eu ouvir: “Posso segurar na sua mão?”. Dei-lhe a mão e ela acrescentou: “Geralmente não tenho medo em aviões, mas hoje eu acho que não vou conseguir levantar voo”. reparei: como se fosse ela própria levantar voo, não o avião, ou como se coubesse a ela levantar o avião. Não sei por que estávamos lado a lado, se havíamos combinado, mas acho que não, não éramos íntimos, talvez fôssemos participar de algum evento de escritores — sonhos não entram em detalhes. Na cabeceira da pista ela apertou minha mão com força, o jato acelerou, deu o máximo para subir, saiu do chão, não teve fôlego, baixou, desacelerou, desistiu. Clarice murmurou, fraca: “Eu não disse?”— e acordei.
Sonhos não cumprem efemérides, mas estes meados de novembro em que escrevo seriam propícios para uma lembrança de Clarice,talvez não tão cheia de significados quanto o sonho, que acabou funcionando como subconsciente homenagem. Explico. Nunca procurei saber por que, entre tantos escritores mineiros, me coube jantar com a escritora mais famosa do Brasil naquele 18 de novembro de 1963, e por que me colocaram sentado exatamente ao lado dela no fino restaurante chinês de Belo Horizonte. Éramos seis à mesa, incluindo o editor anfitrião. Minha modéstia me impede de dizer que terá sido ela quem escolheu os convidados e ovizinho à sua esquerda.
Na época, a biografia dela dizia que tinha 18 anos quando publicou seu primeiro romance, nascida em 1925. Mais tarde, já perto da sua morte, em 1977, uma biógrafa apresentou documentação datando 1920 como o ano do seu nascimento. Teria 23 anos quando publicou Perto do Coração Selvagem, e não 18. Naquele nosso jantar, ela teria 43 anos ou 38? Tinha a confiança dos 43 e a beleza dos 38. Era alegre, alta, espontânea, gostava da vida, usava batom com ousadia, tinha cabelos castanhos aparados na altura dos ombros, comia com apetite, sorria, ouvia com atenção e olhos, tinha a fala ornada por sotaques, mais da vida do que de lugares, juntando antepassados ucranianos, um ‘r’ arranhado, um ceceio de língua presa, uns longes de recife — seduzia.
Nesse jantar e na palestra da manhã seguinte, falou de como era ser Clarice. Coisas assim, que anotei para não esquecer: “Escrever é uma maneira de aprender”. “Não escrevo diferente. É como se eu fosse manca e me dissessem: como você consegue fazer isso? Quando todo o esforço é para não mancar.” “Acho que faço mais benfeito o conto, mas me interessa mais o romance. Só o romance dá a sensação de saciedade, de esgotamento.” “Morar definitivamente em lugar nenhum, a não ser no Brasil. Não dá certo, não precisa. Aqui tem do melhor e do pior.” (Ela morou quinze anos fora, na Europa e nos Estados Unidos). “Tenho medo de que toda a minha literatura seja um equívoco. Acho que estou em moda, não sou conivente comigo.” “A verdade é que não me sinto uma profissional. Não me acho obrigada a ler, a acompanhar o movimento literário.” “Dinheiro não é sujo, até certo ponto. Não é preciso que uma pessoa que vive de literatura tenha de pedir perdão por isso.”
Despedimo-nos com afeto; eu, um jovem escritor de província; ela, uma glória nacional. Nunca mais nos vimos.