As artistas que são palhaças, sim senhor
Pouco associada à figura feminina, a arte do picadeiro ganha espaço entre as mulheres e ainda luta para se livrar do estigma machista
Maria Eliza Alves dos Reis (1909-2007), paulista de São José do Rio Pardo, podia ser o que bem quisesse no picadeiro da família. Menos palhaça. Esse papel era exclusivo dos homens. Uma tragédia levou os integrantes do Circo Guarany a rever secretamente a regra.
Uma doença degenerativa impediu que Antônio, irmão de Maria Eliza, seguisse na trupe, e coube a ela, travestida de palhaço Xamego, a missão de estrear na função, em 1940. “Ela carregava o orgulho de ter convencido a todos de que era um homem”, afirma a cineasta Mariana Gabriel, sua neta, que revelou o pioneirismo no documentário Minha Avó Era Palhaço (2016). A artista se apresentou em circos, como o do Bolachinha, até o início dos anos 1970 e tentou, sem sucesso, furar o bloqueio machista na TV.
Só no começo da década de 1990 uma nova geração de paulistanas entendeu que também podia exercer a palhaçaria. Andréa Macera, de 46 anos, na ativa desde então, abraçou a bandeira feminista. Em 2017, ela fundou a Escola de Palhaças de São Paulo, a primeira e única de formação regular para mulheres, que abriu inscrições para um novo módulo, previsto para o período de 17 a 23 de agosto. São imersões de sete dias em Ribeirão Pires. Conhecida como a Palhaça Mafalda Mafalda, Andréa encontrou seu lugar com Sobre Tomates, Tamancos e Tesouras (2009), que fugia de cenas domésticas ou sensualizadas para oferecer uma trama policial. “Coube à minha geração, que veio do teatro e da dança, construir essa dramaturgia”, diz Andréa.
Thais Ferrara, de 64 anos, formou-se como promessa de intérprete densa e trágica na Escola de Arte Dramática (EAD) em 1989. Para aperfeiçoamento, matriculou-se em um curso de máscaras, e sua cabeça deu uma guinada. “Que lugar é esse em que não podemos entrar? Vi como era legal a provocação e ingressei nos Doutores da Alegria”, conta ela, integrante do grupo que apresenta esquetes em hospitais e, até o domingo (11), ainda faz temporada de O Homem que Fala, no Ágora Teatro. Também do Doutores, Vera Abbud, de 53 anos, é bióloga e se descobriu palhaça mais pela afinidade com a ginástica rítmica que por ambições de interpretação. “Encontrei a liberdade de ser verdadeira e trabalhar em uma arte coletiva”, define.
A parceira de Vera é Paola Musatti, de 49 anos, com quem dividiu a cena nas peças Pelo Cano e O Jardim do Imperador. Egressa da EAD, Paola conheceu na época de sua formação as aulas do Circo Escola Picadeiro e lembra-se do figurino da estreia: um terno xadrez, suspensórios e uma camisa masculina. “Nós não tínhamos referência de palhaças, e, sem internet, ficava difícil até se inspirar na composição de Giulietta Masina no filme A Estrada da Vida, de Fellini”, conta Paola, que criou como alter ego a Palhaça Manela. Batizada de Mademoiselle Blanche, Rhena de Faria, de 45 anos, aprendeu a arte na prática. “Não tive um mestre, e quem me ensinou foram os colegas, como Marcio Ballas e a turma do espetáculo Jogando no Quintal, que comecei a fazer em 2004.” Entre as descobertas de Rhena está a de que o palhaço é único. “É diferente de uma personagem, que pode ser até mais bem interpretada por outra atriz porque existe um texto como guia. A matéria-prima são nossas próprias emoções, fraquezas e mesquinharias, coisas que não gostamos de revelar. Debaixo da máscara, nós nos libertamos”, completa. Com elas, o picadeiro fica completo, sim senhor.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 07 de agosto de 2019, edição nº 2646.